O ritual da verdade, por Michel Foucault – DROPS #36

FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2014, p. 6-8. Negritos meus.

[Em primeiro lugar] me parece – e mais uma vez, fiquemos com o exemplo de Sétimo Severo – que esse verdadeiro cuja manifestação acompanha o exercício do poder extravasa amplamente os conhecimentos que são úteis para o governo.


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ritual da verdade em Foucault

Afinal, essas estrelas que Sétimo Severo mandou representar acima da sua cabeça e da cabeça daqueles a quem ministrava a justiça, essas estrelas, que necessidade imediata, racional podia haver nelas? Não se deve esquecer que o reinado de Sétimo Severo também foi a época de certo número de grandes juristas como Ulpiano e que o conhecimento jurídico, a reflexão jurídica nem de longe estavam ausentes da política de Sétimo Severo. Além mesmo do conhecimento, do saber de juristas como Ulpiano, ele necessitava dessa manifestação suplementar, excessiva, eu ia dizendo não-econômica, da verdade. Em segundo lugar, o que me parece deva ser frisado é que a própria maneira como essa verdade, essa verdade um tanto luxuosa, um tanto suplementar, um tanto excessiva, um tanto inútil, a maneira como essa verdade é manifestada não é exatamente da ordem do conhecimento, de um conhecimento formado, acumulado, centralizado, utilizado. Nesse exemplo do céu estrelado, vê-se uma espécie de manifestação pura do verdadeiro: manifestação pura da ordem do mundo em sua verdade, manifestação pura do destino do imperador e da necessidade que preside a ele, manifestação pura da verdade em que se fundamentam, em última instância, as sentenças do príncipe. Manifestação pura, manifestação fascinante que é essencialmente destinada, não propriamente a demonstrar, a provar alguma coisa, a refutar o falso, mas a mostrar simplesmente, a desvelar a verdade. Em outras palavras, não se tratava para ele de estabelecer, por certo número de procedimento, a verdade desta ou daquela tese, como a legitimidade do seu poder ou a justiça desta ou daquela sentença. Não se tratava, portanto, de estabelecer a exatidão do verdadeiro em oposição a um falso que seria refutado e eliminado. Tratava-se essencialmente de fazer surgir o próprio verdadeiro, contra o fundo do desconhecido, contra o fundo do oculto, contra o fundo do invisível, contra o fundo do imprevisível. Não se tratava propriamente, portanto, de organizar um conhecimento, não se tratava da organização de um sistema utilitário de conhecimentos necessário e suficiente para exercer o governo. Tratava-se de um ritual de manifestação da verdade, que mantinha com o exercício do poder certo número de relações que não podem certamente se reduzir à utilidade pura e simples, mesmo que o cálculo não esteja ausente dele, e o que eu queria tentar apreender um pouco é a natureza das relações entre esse ritual de manifestação da verdade e o exercício do poder.

Digo “ritual de manifestação da verdade” porque não se trata pura e simplesmente do que poderíamos chamar de uma atividade mais ou menos racional do conhecimento. Parece-me que o exercício do poder, tal como podemos encontrar um seu exemplo da história de Sétimo Severo, se faz acompanhar por um conjunto de procedimentos verbais ou não verbais, que podem por conseguinte ser da ordem da informação recolhida, da ordem do conhecimento, da ordem do armazenamento, por quadros, fichas, notas, de certo número de informações, que também podem ser rituais, cerimônias, operações diversas de magia, de mancia, de consulta aos oráculos, aos deuses. Trata-se portanto de um conjunto de procedimentos, verbais ou não, pelos quais se traz à luz – pode ser tanto a consciência individual do soberano, quanto o saber de seus conselheiros ou a manifestação pública – algo que é afirmado, ou antes, posto como verdadeiro, seja evidente em oposição a um falso que foi eliminado, discutido, refutado, mas também talvez por arrancamento ao oculto, por dissipação do que é esquecido, por conjuração do imprevisível.

Assim, eu não diria simplesmente que o exercício do poder supõe, nos que [governam] algo como um conhecimento, um conhecimento útil e utilizável. Diria que o exercício do poder se faz acompanhar com bastante constância de uma manifestação de verdade entendida nesse sentido bem lato. E, para procurar encontrar uma palavra que correspondesse, não portanto ao conhecimento útil para os que governam; procurando pois pelas palavras, encontrei uma que não é muito honorável, já que só foi empregada uma vez, e mesmo assim de outra forma, por um gramático que se chama Heráclides e que emprega o adjetivo αληθουργη para dizer que alguém diz a verdade. αληθουργη é o verídico. E, por conseguinte, forjando a partir de αληθουργη a palavra fictícia alêthourgia, aleturgia; poderíamos chamar de “aleturgia” o conjunto dos procedimentos possíveis, verbais ou não, pelos quais se revela o que é dado como verdadeiro em oposição ao falso, ao oculto, ao indizível, ao imprevisível, ao esquecimento, e dizer que não há exercício do poder sem algo como uma aleturgia. Ou ainda – pois vocês sabem que adoro palavras gregas e que o exercício do poder se chama em grego de “hegemonia”, não no sentido que damos hoje a essa palavra: simplesmente, a hegemonia é o fato de se encontrar à frente dos outros, de conduzi-los e de conduzir de certo modo a conduta deles -, direi: é verissímil que não haja nenhuma hegemonia que possa se exercer sobre algo como uma aleturgia; Isso para dizer, de uma maneira bárbara e áspera, que o que se chama de conhecimento, isto é, a produção de verdadeiro na consciência dos indivíduos por procedimentos lógico-experimentais, não é mais que, no fim das contas, uma das formas possíveis de aleturgia. A ciência, o conhecimento objetivo, não é mais que um dos casos possíveis de todas essas formas pelas quais podemos manifestar o verdadeiro.

 – Michel Foucault.

 

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