Os seis princípios da heterotopologia, por Michel Foucault – DROPS #38

Da série “As heterotopias“.

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 21-29. 

A sociedade adulta organizou, e muito antes das crianças, seus próprios contraespaços, suas utopias situadas, esses lugares reais fora de todos os lugares. Há, por exemplo, os jardins, os cemitérios, os asilos, as casas de tolerância, há as prisões, as colônias de férias do Clube Mediterrâneo.


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Pois bem, sonho com uma ciência – digo mesmo uma ciência – que teria por objeto esses espaços diferentes, esses outros lugares, essas contestações míticas e reais do espaço em que vivemos. Essa ciência estudaria não as utopias, pois é preciso reservar esse nome para o que verdadeiramente não tem lugar algum, mas as hetero-topias, espaços absolutamente outros; e, forçosamente, a ciência em questão se chamaria, se chamará, já se chama “heterotopologia”.

É preciso fornecer os primeiríssimos rudimentos dessa ciência que está em vias de nascer. Primeiro princípio: não há, provavelmente, nenhuma sociedade que não constitua sua heterotopia ou suas heterotopias. Está é, sem dúvida, uma constante de todo grupo humano. Na verdade, porém, essas heterotopias podem assumir, e assumem sempre, formas extraordinariamente variadas e talvez não haja, em toda a superfície do globo ou em toda a história do mundo, uma única forma de heterotopia que tenha permanecido constante. Poder-se-ia talvez classificar as sociedades, por exemplo, segundo as heterotopias que elas preferem, segundo as heterotopias que elas constituem. As sociedades chamadas primitivas, por exemplo, têm lugares privilegiados ou sagrados ou proibidos – como nós mesmos, aliás,; mas estes lugares privilegiados ou sagrados são, em geral, reservados aos indivíduos “em crise biológica”. Há casas especiais para os adolescentes no momento da puberdade; há casas especiais reservadas às mulheres na época das regras; outras para as mulheres em trabalho de parto. Em nossa sociedade, as heterotopias para os indivíduos em crise biológica pouco a pouco desaparecem. Observemos que ainda no século XIX havia colégios para os rapazes, havia também o serviço militar que, sem dúvida, desempenhavam esse papel: era preciso que as primeiras manifestações da sexualidade viril ocorressem em outro lugar. E, para as jovens, pergunto-me se, afinal, a viagem de núpcias não constituía, ao mesmo tempo, uma espécie de heterotopia e de heterocronia: era preciso que a defloração da jovem não ocorresse na mesma casa onde ela nascera, era preciso que esta defloração ocorresse, de certo modo, em parte alguma.

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Segundo princípio da ciência heterotopológica: no curso de sua história, toda sociedade pode perfeitamente diluir e fazer desaparecer uma heterotopia que constituíra outrora, ou então, organizar uma que não existisse ainda. Por exemplo, há cerca de vinte anos, a maioria dos países da Europa tentou fazer desaparecer as casas de prostituição, com sucesso reduzido, como se sabe, pois o telefone substituiu a velha casa de nossos avós por uma teia fina e bem mais sutil. Em contrapartida, o cemitério, que é para nós, em nossa experiência atual, o mais evidente exemplo da heterotopia (o cemitério é absolutamente o outro-lugar), nem sempre desempenhou este papel na civilização ocidental. Até o século XVIII, ele ficava no centro da cidade, disposto lá no meio, bem ao lado da igreja; na verdade, não se lhe atribuía nenhum valor solene. À exceção de alguns indivíduos, o destino comum dos cadáveres era muito simplesmente serem jogados na vala, sem respeito ao despojo individual. Ora, é curioso que, no mesmo momento em que nossa civilização tornou-se ateia, ou ao menos, mais ateia, isto é, no final do século XVIII, começou-se a individualizar os esqueletos.

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[Terceiro princípio da ciência heterotopológica]: em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis. O teatro, que é uma heterotopia, perfaz no retângulo da cena toda uma série de lugares estranhos. O cinema é uma grande cena retangular, no fundo da qual, sobre um espaço de duas dimensões, projeta-se um novo espaço de três dimensões. Porém, o mais antigo exemplo de heterotopia seria talvez o jardim, criação milenar que tinha certamente no Oriente uma significação mágica. O tradicional jardim persa é um retângulo dividido em quatro partes que representam os quatro elementos de que o mundo é composto, no meio do qual, no ponto de junção dos quatro retângulos, encontrava-se um espaço sagrado: uma fonte, um templo. E, em torno do centro, toda a vegetação do mundo, toda a vegetação exemplar e perfeita do mundo devia estar reunida. Ora, se considerarmos que os tapetes orientais eram, na origem, reprodução de jardins – no sentido estrito de “jardins de inverso” – compreenderemos o valor lendário dos tapetes voadores, tapetes que percorriam o mundo. O jardim é um tapete onde o mundo inteiro vem consumar sua perfeição simbólica e o tapete é um jardim móvel através do espaço. Era parque ou tapete aquele jardim descrito pelo narrador das Mil e Uma Noites? Vê-se que todas as belezas do mundo acabam por se juntar nesse espelho. O jardim, desde os recônditos da Antiguidade, é um lugar de utopia. Temos a impressão talvez de que os romanos se situam facilmente em jardins: é fato que os romanos nasceram, sem dúvida, da própria instituição dos jardins. A atividade romanesca é uma atividade jardineira.

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[Quarto princípio da ciência heterotopológica]: Ocorre que as heterotopias são frequentemente ligadas a recortes singulares do tempo. São parentes, se quisermos, das heterocronias. Sem dúvida, o cemitério é o lugar de um tempo que não escoa mais. De modo geral, em uma sociedade como a nossa, pode-se dizer que há heterotopias que são heterotopias do tempo quando ele se acumula ao infinito: os museus e as bibliotecas eram instituições singulares; eram a expressão do gosto de cada um. Em contrapartida, a ideia de tudo acumular, a ideia de, em certo sentido, parar o tempo, ou antes, deixá-lo depositar-se ao infinito em certo espaço privilegiado, a ideia de constituir o arquivo geral de uma cultura, a vontade de encerrar todos os tempos em um lugar, todas as épocas, todas as formas e todos os gostos, a ideia de constituir um espaço de todos os tempos, como se este próprio espaço pudesse estar definitivamente fora do tempo, essa é uma ideia totalmente moderna: o museu e a biblioteca são heterotopias próprias à nossa cultura.

Em contrapartida, há heterotopias que são ligadas ao tempo, não ao modo da eternidade, mas ao modo da festa: heterotopias não eternitárias, mas crônicas. O teatro, seguramente, mas também as feiras, estes maravilhosos sítios vazios à margem das cidades, por vezes mesmo no centro delas, e que se povoam uma ou duas vezes por ano com barracas, exposições, objetos heteróclitos, lutadores, mulheres-serpentes e profetisas da boa fortuna. Mais recentemente, na história da nossa civilização, há colônias de férias; penso, principalmente, nas maravilhosas colônias polinésias que oferecem, às margens do Mediterrâneo, três curtas semanas de nudez primitiva e eterna aos habitantes de nossas cidades. As cabanas de Djerba, por exemplo, são parentes, em certo sentido, das bibliotecas e dos museus, pois são utopias de eternidade – os homens são convidados a reatar com a mais antiga tradição da humanidade – e, ao mesmo tempo, são a negação de qualquer biblioteca e de qualquer museu, pois não se trata mais, através delas, de acumular o tempo mas, ao contrário, de apagá-lo e voltar à nudez e à inocência do primeiro pecado.

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Por fim, gostaria de propor como quinto princípio da heterotopologia, o seguinte fato: as heterotopias possuem sempre um sistema de abertura e de fechamento que as isola em relação ao espaço circundante. Em geral, não se entra em uma heterotopia como em um moinho, entra-se porque se é obrigado (as prisões, evidentemente), ou entra-se quando se foi submetido a ritos, a uma purificação. Há até mesmo heterotopias inteiramente consagradas a esta purificação. Purificação meio-religiosa e meio-higiênica, como nos hammams do mulçumanos, ou como nas saunas dos encadinavos, purificação somente higiênica, mas que carrega consigo todo tipo de valores religiosos ou naturalistas.

[…]

[Sexto princípio da ciência heterotopológica]: elas são a contestação de todos os outros espaços, uma contestação que pode ser exercida de duas maneiras: ou como nas casas de tolerância de que Aragon falava, criando uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como ilusão, ou, ao contrário, criando outro espaço real tão perfeito, tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado; é como este último que funcionaram, ao menos no projeto dos homens, durante algum tempo – principalmente no século XVIII – as colônias. Seguramente, as colônias tinham uma grande utilidade econômica, mas existiam valores imaginários que lhes eram agregados e, sem dúvida, estes valores eram devidos ao prestígio próprio das heterotopias. Foi assim que, nos séculos XVII e XVIII, as sociedades puritanas inglesas tentaram fundar na América sociedades absolutamente perfeitas; foi assim que no final do século XIX e ainda no começo do século XX, nas colônias francesas, Lyautey e seus sucessores sonharam com sociedades hierarquizadas e militares. Sem dúvida, a mais extraordinária dessas tentativas foi a dos jesuítas no Paraguai. Com efeito, no Paraguai, os jesuítas fundaram uma colônia maravilhosa onde a vida por inteiro era regulamentada, onde reinava o regime mais perfeito do comunismo, pois as terras e os rebanhos pertenciam a todos. Apenas um pequeno jardim era atribuído a cada família, as casas eram dispostas em fileiras ao longo de duas ruas que se cruzavam em ângulo reto. Ao fundo da praça central do vilarejo havia uma igreja; em um lado, o colégio; no outro, a prisão. Do entardecer ao amanhecer, do amanhecer ao entardecer, os jesuítas regulamentavam meticulosamente toda a vida dos colonos.

 – Michel Foucault.

Figuras do desatino

 

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