Por José Antonio Ananias de Sillos em colaboração ao Colunas Tortas
Fuga da Morte, de Paul Celan
1. Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
2. nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
3. cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
4. Um homem mora na casa bole com cobras escreve
5. escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
6. escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
7. assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
8. ordena-nos agora toquem para dançar
9. Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
10. nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
11. Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
12. escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
13. Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
14. Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
15. agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
16. cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
17. Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
18. nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
19. um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
20. teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
21. Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
22. ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
23. aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
24. Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
25. nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
26. nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
27. a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
28. acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
29. um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
30. ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
31. eu cabelo de ouro Margarete
32. teu cabelo de cinzas Sulamita
Análise de Fuga da Morte de Paul Celan
Pretende-se aqui desenvolver uma análise do poema Fuga da Morte, de Paul Celan, a partir das observações feitas por Roman Jakobson em seu texto Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia[1]. De antemão, faz-se necessário especificar e delimitar as observações em questão: para Jakobson, a existência de todo signo linguístico implica na inserção deste em um esquema combinatório, um conjunto de relações com unidades linguísticas mais simples e/ou mais complexas e que a seleção de um signo linguístico específico implica na possibilidade de substituição deste signo por outro, de valor diferente em determinados aspectos, mas semelhante em outros. Tentaremos, então, encontrar no poema de Celan um determinado esquema de signos cuja ordenação, forma, seleção e/ou substituição permitam identificar padrões de significação úteis a uma possível interpretação do poema.
“Fuga da Morte” abre seu primeiro parágrafo com a cena de uma pessoa em plural que realiza uma ação em um tempo determinado. Não é, porém, esta pessoa que, de fato, abre o primeiro verso, mas sim o objeto de sua ação, “leite negro da madrugada”. Há, de início, uma elocução cuja ordenação e seleção abre brechas interpretativas interessantes. A ordem da frase, posicionando o que comumente seria objeto direto do verbo “beber” em primeiro plano, transfere o foco do verso não para quem realiza a ação, mas para o teor do que há de ser realizado. “O leite negro é bebido por nós”, em um uso da voz passiva, imediatamente joga luz ao sintagma “leite negro”, signo cuja própria seleção carece de observação mais atenta. O esquema de seleção-substituição aqui presente se faz a partir do que efetivamente já está substituído no signo: ao qualificar “leite” como “negro”, o poema apresenta, de início, uma substituição com o esquema maior de significação do uso comum da linguagem, “leite” aqui recebe a distinção de ser exatamente o oposto daquilo que é no mundo comum, “negro”, de ser seu inverso, a realidade descrita no poema é apresentada, desde seu primeiro momento, como aquilo que não deveria ser. Passemos agora ao tempo da cena, apresentado em fases do dia, cuja organização se dá da seguinte maneira: noite, meio-dia, manhã e noite. O dia é desmembrado e reorganizado de um modo não habitual; o tempo da cena, assim como seu primeiro constituinte, “leite negro”, é algo fora da normalidade. Resta nesta apresentação um “nós”, que não recebe outra distinção além de ser aquele que, em um mundo às avessas, interage com o estranho em um tempo sem sentidos. Este “nós” cava um túmulo nos ares, outro contrassenso, avesso à realidade. No entanto, mesmo com a presumível impossibilidade do mundo, este “nós” age, ele é a âncora, um centro neste mundo em descompasso.
Somos então apresentados a outro habitante deste mundo, o homem que mora na casa e que escreve durante o dia. O homem escreve ou sobre algo indeterminado ou sobre “teus cabelos de Ouro Margarete”. De qualquer maneira, ele não bebe o leite negro, ou cava túmulos no ares, ele simplesmentes escreve. Escrever é um ato que pressupõe, em geral, um certo nível de organização e tranquilidade, temos então, alguém neste mundo que não vive em caos ou incertezas. O homem escreve para a Alemanha e vai para a frente da casa enquanto “estrelas faíscam”, encontramos aqui outro nível de organização ausente na apresentação do poema, a ordem do dia: “escreve […] quando escurece” e “estrelas faíscam” nos sugere uma linearidade do tempo da qual o “nós” da apresentação não desfruta. São dois signos cuja relação de significado com um topo temporal passa por uma posição que os fornece subjetividades temporais distintas, compartilham um mundo, mas possuem tempos do dia diferentes. Em seguida o homem age, ele “assobia para os seus Mastins” e “assobia para os seus judeus”, há aqui o primeiro indício da localização deste mundo, um espaço onde convivem homens livres que escrevem para a Alemanha, cães de guarda e judeus, são pistas que apontam para o campo de concentração nazista. Estas indicações não se dão apenas na triangulação destes três signos, o preparo do terreno para a posição histórico-espacial do poema nos foi dada pelos esquemas de organização linguísticos feitos até então: sabemos que o mundo está às avessas pela combinação dos signos, sabemos que uma parte deste mundo vive em desordem temporal, que interage com objetos impossíveis (o leite negro), que experimenta um tempo desconjuntado e que executa ações aparentemente sem sentido ao cavar o túmulo nos ares, sabemos também que outra parte deste mundo vive em normalidade, pois escreve e passa seu tempo em um dia ordenado. A relação de hierarquia entre os signos nos é dada antes do posicionamento destes em um espaço histórico real, ela nos é dada por meio da forma.
O poema retoma então (verso 9) as mesmas palavras de sua apresentação, com uma sutil mudança na ordenação do dia, o esquema agora apresenta um dia habitual, “noite”, “manhã”, “meio-dia”. Esta ordenação será desfeita mais à frente (verso 17), quando novamente as fases do dia serão desarrumadas. Se paralelismos anteriores, como o entre “Mastins” e “judeus”, nos serviam para posicionar signos em relações entre si através de substituições mais diretas, o paralelismo entre o início destas estrofes e o início do poema se comunicam com uma desordem temporal do mundo como um todo, o tempo é fragmentado e reorganizado, porém de maneira cíclica. O tempo histórico cíclico guarda relações com a inevitabilidade dos eventos em várias tradições, como por exemplo na concepção estóica de Ecpirose, onde o cosmos está fadado a ser destruído e refeito em repetições eternas, ou mesmo na tradição judaica: Eclesiastes 1:9 diz que “O que foi voltará a ser, o que aconteceu, ocorrerá de novo, o que foi feito se fará outra vez; não existe nada de novo debaixo do sol”. No poema, a repetição do tempo de maneira caótica, porém certa, nos remete à sensação de aprisionamento e falta de controle do sujeito sobre o que este experimenta.
No interior deste mundo e do tempo deste mundo o poema traça uma pequena narrativa onde o agente central não é o eu lírico representado pelo “nós”, mas sim a figura do homem que bole com cobras. A posição de autonomia e agência desta figura é reforçada na forma do de outras maneiras para além das discutidas acima, sua aparição no corpo do poema sempre interrompe a apresentação do tempo do dia, nas quatro estrofes ele é o sujeito que de fato age. Na quarta estrofe ele de fato interrompe textualmente a ordem do dia (verso 25). A pequena narrativa pode ser resumida da seguinte maneira:
- Primeira estrofe: o homem que bole com cobras e escreve sai da casa e comanda os judeus para que cavem.
- Segunda estrofe: o homem reforça a ordem para que judeus cavem enquanto os ameaça com sua arma.
- Terceira estrofe: o homem ordena para que os judeus toquem música enquanto cavam.
- Quarta estrofe: o homem atira e mata alguém.
Há um jogo de substituições entre estas quatro estrofes que dizem respeito a esta figura e sua relação com os judeus. A frase “cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado” é dita por duas vezes pelo eu lírico (versos 3 e 13) para depois ser dita pelo homem que bole com cobras (verso 23). A substituição da voz que diz a frase, aliada à crescente dominação do homem que bole com cobras sobre o “nós” do eu-lírico, subordina a fala deste “nós” à fala do homem que bole com cobras. É ele quem informa aos judeus que estes terão túmulos nos ares, o que é apresentado no início do poema como um contrassenso dito pelos judeus é, na verdade, uma ordem dada pelo carcereiro. O uso do verbo “bulir” (“spielen”, no original em alemão) nos aponta para uma relação em vários níveis entre o homem e os judeus, “bulir” não é simplesmente “brincar”, mas sim fazê-lo de modo provocativo. O homem que bole com cobras é quem provoca os judeus ao dizer-lhes, durante o trabalho forçado, que nos túmulos no ares eles não ficarão apertados. A tessitura do poema neste ponto indica uma possível referência ao próprio título, “Fuga da Morte”. Uma fuga é uma composição musical onde duas ou mais vozes variam sobre um tema em tons diferentes, podemos fazer aqui uma analogia onde as vozes são os signos e a as diferentes tonalidades são as posições dos signos dentro da estrutura do poema.
Por fim, outro paralelismo que ocorre durante o poema se dá entre as frases “teu cabelo de ouro Margarete” e “teu cabelo de cinzas Sulamita. A primeira aparição se dá no verso 5, em associação ao homem que mora na casa e escreve sobre ou para Margarete nas suas cartas à Alemanha. A alusão à Margarete enquanto símbolo para a literatura alemã torna-se um pouco mais nítida quando pareado ao “teu cabelo de Cinzas Sulamita”: enquanto Margarete é personagem do Fausto de Goethe, Sulamita é personagem do Cântico dos Cânticos, livro poético da bíblia hebraica. O sentido de referência literária dos versos é reforçado pela inserção em um sistema de pares de oposição, podemos aqui observar outra possibilidade de interpretação dada pelas duas concepções jakobsonianas apresentadas no começo deste texto: os dos signos se comunicam com unidades linguísticas mais complexas e se opõem na medida em que são substituídos textualmente em uma relação de equivalências e diferenças dentro de uma mesma categoria, formam um par de oposição onde o sentido de um só se dá na existência do outro.
Referências
[1] JAKOBSON, Roman. Dois Tipos de Afasia IN Linguística e Comunicação. 24ª Edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2007.
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