Por Vinicius Mendes, do site Arimandía, em colaboração com o Colunas Tortas.
Uma leitura atenta de alguns comentadores da obra do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss é suficiente para encontrar, entre tais observações, a ideia de que as estruturas encontradas por ele nas bases das sociedades são, em um caráter geral, uma espécie de inconsciente da sociedade. Os também franceses Maurice Merleau-Ponty e Phillipe Descola, por exemplo, se valem largamente do termo “inconsciente” para analisar a fundamentação que Lévi-Strauss desenvolveu em seu método estruturalista, sem deixar de associá-lo com a influência de Sigmund Freud que, dezenas de anos antes, formulou uma teoria científica sobre o funcionamento da psique humana construída por três elementos: o inconsciente, o pré-consciente e o consciente. Essa formulação seria, para a história, o início de uma nova ciência humana: a psicanálise.
Descola, em uma breve introdução ao trabalho de Lévi-Strauss, chega a dizer que Freud era uma das “três amantes” do antropólogo francês, complementado pela geologia e pelos textos do filósofo alemão Karl Marx (DESCOLA, 2009). Para o autor, o estruturalismo moldado por seu conterrâneo se vale, principalmente de elementos latentes – e não manifestos – das sociedades:
A ciência social não se constrói a partir da realidade manifesta, mas sim elucidando a ordem inconsciente na qual se revela a adequação racional entre as propriedades do pensamento e as do mundo. (DESCOLA, 2009)
Merleau-Ponty, por sua vez, acredita que a ideia de um inconsciente da sociedade na obra de Lévi-Strauss está atrelada a uma característica primeira do homem cuja ideia foi a base para o advento da cultura e uma das dobradiças da passagem de um estado natural para o cultural. Diz ele que
…no fundo dos sistemas sociais aparece uma infraestrutura formal, somos mesmo tentados a falar num pensamento inconsciente, uma antecipação do espírito humano, como se nossa ciência já estivesse feita nas coisas, e como se a ordem humana da cultura fosse uma segunda ordem natural, dominada por outros invariantes. Mas, mesmo que estes existam […] a ciência social encontraria abaixo das estruturas uma meta- estrutura com que eles se conformam, o universal a que se chegaria dessa maneira não substituiria o particular.(MERLEAY-PONTY, 1984, p. 198)
O inconsciente individual, para Freud, é o processo mais antigo entre os três elementos psíquicos existentes na esfera humana, responsável por herdar informações desde o nascimento do sujeito e que, assim como os outros, recebe impulsos exteriores que moldam sua forma e, portanto, também o aparelho psíquico como um todo (FREUD, 2015, p. 48). Segundo o autor, os outros elementos – pré-consciente e consciente – se desenvolveram a partir do inconsciente por influência dessas informações oriundas do exterior, tornando-se paralelos a este. (FREUD, 2015, p. 83).
Chegamos então, de maneira inicial, à ideia de que o método de Lévi-Strauss se propôs a estudar a estrutura enquanto base inconsciente da sociedade, pois é nela que, de certa forma, se situam as regras apreendidas racionalmente pelos homens para dar cabo ao funcionamento do sistema social.
Assim sendo, a proibição do incesto – a primeira instituição encontrada pela psique humana, para Freud, constituindo-se um trauma, e a lei residente na passagem do estado de natureza para o estado da cultura, segundo Lévi-Strauss – é uma regra cuja existência permitiu que a sociedade se construísse e que, ainda que possua essa funcionalidade, é um elemento estrutural.
Em suma, seria o reconhecimento da existência de uma estrutura que se faz presente inconscientemente sobre os indivíduos, direcionando-os a reproduzir suas regras e seu funcionamento. Os homens vivem em sociedade com base em aspectos que lhes são inconscientes e que se adequam racionalmente no mundo. Os exemplos de Lévi-Strauss, como os fonemas, dão uma dimensão melhor dessa conclusão.
Neste caso, trata-se de uma estrutura inconsciente de oposições entre sons em que as pessoas apreendem racionalmente – por meio da educação – mas que lhes aparece em uma estrutura não alcançável enquanto sistema em funcionamento. Lembra Werneck que
…assim que entrou em contato com a teoria freudiana, Lévi-Strauss percebeu que o etnólogo lidava, no plano coletivo, com o mesmo elemento que o psicanalista no plano individual, ou seja, um fenômeno aparentemente impenetrável, cujo deciframento não poderia jamais ser buscado em sua realidade mais evidente. (WERNECK, 2002)
O mesmo se encaixa na proibição do incesto – tema tratado com vigor por Freud e Lévi- Strauss: pelo lado da psicanálise, o tabu enquanto expressão externa da supressão de um desejo natural humano, o de praticar o ato incestuoso, não deixa de servir como um agregador da sociedade na medida em que ele é regulado – no caso dos povos primitivos – pelo sistema totêmico.
Pelo lado da antropologia estrutural, a proibição é a passagem de um estado social humano para outro, em que a regra é apreendida e colocada na estrutura para que a sociedade possa existir. Seria, portanto, a relação entre a natureza e a cultura. Como afirma Werneck,
… se o tabu do incesto está presente em todas as sociedades humanas, não deixa de assumir, em cada uma delas, uma configuração particular, ditada por um regime de trocas matrimoniais regulado por estruturas que escapam à consciência individual. (WERNECK, 2002)
Nessa afirmação se encontra uma das várias junções possíveis entre as ideias de Freud e Lévi-Strauss, porque considera o tabu do incesto como uma regra universal, sendo, portanto, uma característica da psique humana, mas também lembra que as sociedades possuem regras diferenciadas que se expressam por meio de sistemas, como os de parentesco, ainda que elas possuam a mesma funcionalidade.
Esse apontamento é feito por Lévi-Strauss em Estruturas elementares do parentesco, onde diz que a raiz da proibição está na natureza, mas é apenas como regra social que se torna possível vê-la. Nos vários grupos em que a regra existe, apresenta-se uma extrema variedade tanto na sua forma como na sua aplicação (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 69).
Lévi-Strauss demonstra sua argumentação por meio de exemplos variados em que o incesto nem sempre envolve a totalidade de laços parentais, sendo até mesmo às vezes “recomendável” que a sobrinha case com o tio, por exemplo, enquanto em outras sociedades tal fato configuraria o mesmo “horror do incesto” (LÉVI-STRAUSS, 1982).
Esse caráter inconsciente das estruturas sociais é o que aproxima Lévi-Strauss de Freud: seu método tentou iluminar as regiões obscuras, as “leis escondidas” (WERNECK, 2002) de onde se originam toda organização do pensamento humano.
Ainda sobre este tema, Pontes faz a seguinte observação:
O tabu é para o homem a expressão de como ele cria um conjunto de meios, mecanismos e estratégias para lidar com a natureza desde um ponto de vista amplo, ou seja, sua relação com o meio ambiente, até a sua dimensão mais individual, fisiológica, biológica, que tem como consequência a explicitação do ser social que constrói uma ética, uma moral, regras, leis e instituições, ou seja, toda uma estrutura para objetivar-se em suas relações. (PONTES, 2004, p. 8)
O tabu se torna aqui a expressão mais próxima do que Lévi-Strauss se valeu para o método estruturalista. Publicado em 1913 (portanto, 36 anos antes do antropólogo francês lançar Estruturas elementares do parentesco), Totem e tabu foi uma das tentativas do criador da técnica psicanalítica de engrossar sua ciência também aos estudos da sociedade. Nele, há uma passagem definitiva sobre o papel que a regra do incesto cumpre sobre o desejo inato humano de praticá-lo.
Para Freud, a proibição do incesto consegue reprimir essa manifestação quando se ampara em forças internas suficientemente fortes para serem aceitas pela psique humana. No entanto, essa regra não consegue abolir o instinto, mas apenas jogá-lo no inconsciente individual (FREUD, 2013, p. 57).
Desta forma, o motivo da proibição do incesto se torna desconhecido pelo indivíduo, mas a lei é reproduzida na esfera consciente. Em resumo: os homens seguem desejando inconscientemente se relacionar com seus consanguíneos, mas mantêm a proibição vigente por causa da existência da lei. Lévi-Strauss explicaria a sua vigência, como já foi visto, pela necessidade de uma base para a sociedade por meio da reciprocidade entre os diferentes grupos (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 98), retirado da obra de Marcel Mauss.
Ainda segundo Freud, o desejo natural de praticar o incesto se move pelo inconsciente individual em busca de uma saída para o cerco que a lei promove em seu aparelho psíquico, de forma que a proibição também precisa se mover a cada avanço dessa manifestação inconsciente (FREUD, 2013, p. 59). Analisando essa movimentação nos povos primitivos, diz ele:
Não faz sentido perguntar aos selvagens pelo verdadeiro motivo de suas proibições, pela gênese do tabu. De acordo com nossa premissa, eles são incapazes de informar algo acerca disso, pois tal motivo lhes é inconsciente. (FREUD, 2013, p. 60)
Ou então, em outro momento:
O desejo original de fazer o proibido continua a existir nos povos em que há o tabu. Eles têm, em relação a tais proibições, uma atitude ambivalente; nada gostariam mais de fazer, em seu inconsciente, do que infringi-las, mas também têm receio disso; receiam justamente porque querem, e o temor é mais forte do que o desejo. […] O desejo é inconsciente em cada indivíduo. (FREUD, 2013, p. 61, grifos meus)
Ora, a apresentação dos sistemas de parentesco feita por Lévi-Strauss está exatamente no cumprimento dessa função social: suas diferentes aplicações e nomeações simbólicas se dão para controlar a movimentação da proibição do incesto nos aparelhos psíquicos humanos que se constituem em grupos variados.
A lei exterior se adequa à recepção interior que ela produz nos indivíduos. A proibição do incesto cumpre, então, as funções encontradas por Freud e por Lévi-Strauss: reprime o desejo natural de praticar o incesto e serve como estrutura para que os grupos sociais se relacionem e formem, então, a sociedade.
A proibição do incesto, no entanto, não é apenas negativa enquanto obrigação, mas também positiva, porque é a partir daí que se estabelece um grupo que se alia a outros (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 94). Por esse ponto de vista, ela é um ponto chave para compreender a sua função principal: favorecer a troca e, portanto, a integração social.
É nesse estabelecimento de filiações que a antropologia francesa encontrou o papel do cunhado, o irmão da mulher tomada por um homem, ou seja, o ator que renunciou à irmã em favor de outrem e que espera que, da mesma forma, alguém renuncie à uma irmã ou filha para que ele a despose.
Freud, em Totem e tabu, tratou brevemente do tema que Lévi-Strauss que debruçaria anos mais tarde: a desagregação da sociedade com a quebra da proibição do incesto. Para ele, a desobediência à lei significaria um “perigo social” que “prejudicaria a todos” (FREUD, 2013, p. 63). Diz ainda:
Se substituímos os desejos inconscientes pelos impulsos conscientes, tal perigo existe realmente. Ele consiste na possibilidade da imitação, em virtude da qual a sociedade logo se desagregaria. Deixando impune a violação, os outros se dariam conta de querer agir da mesma forma que o transgressor. (FREUD, 2013, p. 63)
Os sistemas de parentesco encontrados por Lévi-Strauss, amparados na estrutura social, são diferentes mecanismos criados conscientemente para darem conta da movimentação do desejo inconsciente do incesto descrito por Freud.
Estando ancorados na estrutura – o inconsciente da sociedade – os sistemas são formas racionais de dar conta da proibição do incesto em suas diversas manifestações e necessidades subjetivas – do ponto de vista da psicanálise – e objetivas, do ponto de vista da antropologia, que fazem parte da mesma lei: a de não praticar o ato incestuoso.
Assim, entendemos que o horror ao incesto é universal, mas que as leis que o regem são distintas ao redor do mundo por dois aspectos, um interno e um externo ao homem: o primeiro diz respeito à movimentação do desejo reprimido pela repressão social de praticar o ato incestuoso, descrita por Freud, e o segundo às diferentes necessidades de agregação social existentes entre os grupos humanos que, tendo a proibição como base, criam sistemas de parentesco adequados às suas condições.
Nos dois aspectos, encontramos, enfim, o mesmo momento da história humana: o da dobradiça entre um estado natural para outro, com apreensão de lei, chamado por Lévi- Strauss de cultural.
Melhor conclusão para a ideia apresentada neste presente trabalho nos fornece o próprio Lévi-Strauss, ao sugerir que, às particularidades dos grupos humanos, o método
desejável – e que é uma das premissas do estruturalismo – é justamente tocá-las de alguma forma:
Se, como cremos, a atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas a um conteúdo, e se essas formas são fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos, primitivos e civilizados (como mostra tão claramente o estudo da função simbólica tal como expressa na linguagem), é necessário e suficiente atingir a estrutura inconsciente, subjacente a cada instituição e a cada costume, para obter um princípio de interpretação válido para outras instituições e outros costumes, contanto, evidentemente, que se avance suficientemente na análise. (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 35)
Referências
DESCOLA, Phillipe. Claude Lévi-Strauss, uma apresentação. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 23 n. 67, 2009.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. In: Sigmund Freud: Obras Completas. (Vol. 11). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 14-244. Trabalho original publicado em 1912.
FREUD, Sigmund. Compêndio da Psicanálise. Tradução de Renato Zwick. São Paulo, Editora LPM, 2015. Trabalho original publicado em 1940.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Edusp, 1982. Trabalho original publicado em 1949.
LÉVI-STRAUSS, Claude. História e etnologia. In: Antropologia Estrutural. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss a Claude Lévi-Strauss. In: Textos selecionados (Os Pensadores). (Vol. 4). Tradução de Marilena Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
PONTES, A. Mello. O tabu do incesto e os olhares de Freud e Lévi-Strauss. Trilhas, Belém, v. 4, n. 1, p. 7-14, 2004.
WERNECK, M. M. F. O trabalho do mito: diálogos entre Freud e Lévi-Strauss. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 64 n. 1, 2002.
É jornalista e cientista social. Atualmente é mestrando do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Escreve também no blog Arimandia.