Em minha última coluna, tive o esforço de explicar como a loucura é vista hoje numa perspectiva histórica e por meio da discussão atual entre a área médica concentrada na psiquiatria e a área da saúde, eminentemente multidisciplinar. Nesta coluna, compreendo que o corpo do dito louco é mortificado por processos que anulam sua subjetividade, ou seja, por processos que o inserem numa lógica em que sua loucura tem local privilegiado, enquanto sua humanidade é perdida neste processo.
Hoje, pretendo escrever sobre este processo de dessubjetivação e desumanização no próprio local de trabalho por meio da prática da psicofobia. Para isso, é necessário delimitar o que é a psicofobia: “o preconceito ou discriminação contra pessoas com transtornos ou deficiências mentais”[1]. Não se trata de um termo utilizado na clínica médica, justamente por ser um conceito próprio de trabalhos realizados em pesquisas sociais e psicossociais.
Na psicofobia, o mais importante é entender que este preconceito acontece através de uma relação imaginária que se tem com o outro em que, seja de maneira explícita ou implícita, se reconhece uma inadequação específica que o relaciona com a loucura. Ou seja, aquele outro que pode ser categorizado como louco é discriminado ou sofre preconceitos (seja através de xingamentos ou de microagressões) que tem como base a suposta loucura.
É importante citar os dados recolhidos por Vasconcelos[2]:
De acordo com os dados divulgados pela Fundacentro (2007), entre 2000 e 2005 foram registradas 144.789 doenças relacionadas ao trabalho, e pesquisas do Laboratório de Saúde do Trabalhador da Universidade de Brasília demonstram um aumento de 260% do número de afastamentos por doenças mentais entre os anos de 2000 a 2006. Atualmente, 83 mil brasileiros se afastam do trabalho todo ano por problemas de Saúde Mental. Em 2006, os transtornos de humor representaram o segundo motivo de ausência de trabalho e, nesse mesmo ano, o custo do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) com auxílio-doença para quem sofria de transtornos neuróticos e relacionados ao estresse foi de R$ 90 milhões (Mello, 2008).
No ambiente de trabalho, é possível escrever sobre a loucura através de um ponto de vista interindividual, que terá como base aqui o trabalho de Victória Alves e colaboradores[3], em que a pesquisadora em conjunto com seus colaboradores entrevistam profissionais de recursos humanos para compreender a postura que apresentam perante um entrevistado que apresenta comportamentos ligados à ansiedade e declara ter acompanhamento psiquiátrico em relação à ansiedade e depressão.
Psicofobia numa abordagem interindividual
Das respostas analisadas, todas foram categorizadas entre “empáticas”, “imparciais” e “tendência à psicofobia”. O trabalho pode ser visto por completo neste link. Para mim, o mais importante é que, independentemente da resposta, todas elas são invasivas ou excludentes.
As respostas empáticas são aquelas em que a pessoa responsável pela entrevista gostaria de entender o choro e o nervosismo apresentado pelo entrevistado, ou seja, rejeitando aceitar que este choro aconteceu, mas que a entrevista poderia continuar apesar dele. Uma invasão à privacidade e à intimidade do entrevistado no lugar da aceitação de que a entrevista é uma situação tensa. A anormalidade do choro precisaria ser explicada.
As respostas imparciais e com tendência à psicofobia demonstram a preocupação com os possíveis problemas que o candidato apresentaria num cotidiano de trabalho.
Independentemente da postura do entrevistador, o sujeito que apresenta uma característica dita anormal na situação da entrevista está em débito. Resta a ele se explicar ou simplesmente ser calado.
Psicofobia enquanto fato social
Em relação às microagressões, como enunciados passivo-agressivo ou até xingamentos enquadrados como brincadeira que servem para dar destaque à “lerdeza” do sujeito, o chamando de “lesado”, “ele tem seu próprio ritmo”, destacando que “cada um tem seu tempo”, ou que a vítima é “confusa”, que lhe falta “agilidade” e etc. Tais expressões são utilizadas para além da eficiência prática do funcionário: sua função é de enquadrá-lo como um inadequado social.
Digo isso para propor que a psicofobia não é um fenômeno meramente interindividual. Psicofobia é um fenômeno social, um fato social que relaciona a loucura, a adequação e a punição. Em sua forma de microagressões, a exclusão ou o isolamento são os caminhos concretos previsíveis:
A exclusão faz com que os indivíduos com transtornos mentais sintam-se inferiorizados e envergonhados de si mesmos. O preconceito sofrido provoca agravo do quadro psicopatológico devido ao aumento da carga emocional resultante dos traumas. Consequentemente, esses indivíduos reagem em relação ao seu meio social, na maioria das vezes, de forma negativa, isolando-se.[4]
O isolamento, enquanto elemento do fato social, é um resultado da sanção satírica e da anulação da subjetividade do dito louco. Exclusão e isolamento são duas consequências de um mesmo processo de desumanização. Ambos são elementos sociais, embora o primeiro parta de uma ação dos outros indivíduos enquanto o segundo acontece por uma ação do próprio dito louco.
No entanto, na posição de louco dentro desta dinâmica psicofóbica, tanto a exclusão como o isolamento são faces de um mesmo processo. Ananda Silva e Victória Hora salientam esta rede complexa de relações econômicas, sociais, culturais e políticas:
O processo de afastamento, embora atingindo o sujeito e sua subjetividade, não pode ser visto como um modelo individual de culpabilização do indivíduo, mas, numa perspectiva mais ampla, envolvendo as várias formas de relações econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade. Ela inclui não apenas a pobreza, mas também a discriminação, a subalternidade, a não equidade, a não acessibilidade e a não representação pública.[5]
A exclusão e o isolamento, assim, tem como característica subjetiva o sofrimento do indivíduo excluído, mas tem sua explicação alocada na história e na sociedade.
O método exclusivo de pessoas com transtornos mentais é um processo sócio histórico, que se configura pela repercussão em todas as esferas da vida social, mas sobressai como necessidade do eu, como sentimentos, significados e ações subjetivas. Destaca ainda que existem diferentes dimensões da exclusão, como a dimensão objetiva da desigualdade social, a dimensão ética da injustiça e a dimensão subjetiva do sofrimento. O próprio excluído e a sociedade de naturalização cria uma aceitação que gera uma atmosfera social de conformismo, compreendendo a condição de exclusão como fatalidade.[6]
Ou seja, o ambiente de trabalho, que aqui chamarei como espaço social de trabalho, é um locus da exclusão do louco assim como a escola, a família e outras instituições sociais. Para além da suposta baixa produtividade do louco ou da possibilidade desse louco gerar problemas interpessoais, a exclusão é pressuposta, gerando um viés de confirmação sobre o inadequado de tal maneira que sua inadequação é um ponto a ser buscado, seja com uma intenção de suposto cuidado ou de pura hostilidade.
É importante dizer que a psicofobia é crime. A Lei 236/12 criada pelo senador Paulo Davim, prevê como crime de discriminação cometer abuso ou desrespeito contra transtornados ou deficientes mentais com pena de até três anos para quem praticar injúria contra pessoas com transtorno mental.
Entretanto, o texto da lei não se aplica à prática da discriminação, mas ao alvo comprovadamente deficiente ou “transtornado”. Ou seja, as agressões que transformam a inadequação social em estigma para pessoas que não necessariamente possuem algum transtorno não necessariamente se enquadram de maneira direta com a lei.
A psicofobia enquanto fenômeno social não depende de um laudo que comprove que a vítima tem o direito de ser alvo. O fenômenos social acontece através de uma relação imaginária em que o outro é visto sob o estatuto de louco, seja diretamente e explicitamente ou não.
Resta à legislação brasileira proteger indivíduos a formas de preconceito ou discriminação pela própria suposição da loucura enquanto fator estigmatizante.
Referências
[1] Psicofobia – Seu preconceito causa sofrimento. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/informacoes/programas-projetos-e-acoes/pro-vida/dicas-de-saude/pilulas-de-saude/psicofobia-seu-preconceito-causa-sofrimento>.
[2] VASCONCELOS, A. DE .; FARIA, J. H. DE .. Saúde mental no trabalho: contradições e limites. Psicologia & Sociedade, v. 20, n. 3, p. 453–464, set. 2008.
[3] ALVES, Victoria et al. PSICOFÓBICO?! EU!?: UMA ANÁLISE DA PSICOFOBIA NA PERCEPÇÃO DE RECRUTADORES ORGANIZACIONAIS. Métodos e Pesquisa em Administração v. 5, n.1, p. 2-14, 2020.
[4] SILVA, Ananda; HORA, Victória. PSICOFOBIA: ENFRENTANDO OS TRANSTORNOS MENTAIS E O PRECONCEITO NO BRASIL. Revista v. 6 n. 1 (2022): Edição Especial: Comunicação e Produção Textual.
[5] SILVA, Ananda; HORA, Victória. PSICOFOBIA: ENFRENTANDO OS TRANSTORNOS MENTAIS E O PRECONCEITO NO BRASIL…
[6] SILVA, Ananda; HORA, Victória. PSICOFOBIA: ENFRENTANDO OS TRANSTORNOS MENTAIS E O PRECONCEITO NO BRASIL…
[7] A luta da psiquiatra Natália Quireza contra a psicofobia. G1, 2022. Disponível em <<https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/especial-publicitario/quireza/noticia/2022/08/03/a-luta-da-psiquiatra-natalia-quireza-contra-a-psicofobia.ghtml>>.
Já sou velho, mas olho para o mundo a partir de seu ineditismo, nunca sob o ranço interminável dos anciãos.