Disse Saramago que o grande problema do nosso sistema democrático é permitir fazer coisas nada democráticas democraticamente. Disso, não há dúvida. Um sistema de governo representativo, bem como abarca o sentido literal da palavra, há de realizar atos incompatíveis com os esperados por aqueles a quem representa, trata-se de uma questão lógica e humanística: não existe meio para o ato individual representar fielmente os interesses do seu eleitorado coletivo – composto de milhares, quiçá milhões. Logo, a suspensão da percepção de ser dignamente representado torna o governo impopular, e, consequentemente, almeja-se substituí-lo.
Todavia, cabe identificar quais são os motivos que causam o fracasso desta representação previamente acreditada, escolhida. Em suma: o povo desacreditou da intenção do governo, ou o povo desacreditou da aptidão do governo. Como a intenção antecede o ato, mudá-la em um cenário consequencial como a política é praticamente utopia. Já a aptidão, dentro do próprio processo governamental, pode ser aprimorada. Portanto, pensando nas duas formas que arruínam a representação política, cabe dizer que tanto o agente político que mente e falha na intenção, como o que fere a representação pública desapontando na falta de domínio do ato político, ou no despreparo em prever consequências negativas pelas presentes escolhas tomadas; ambos são passíveis de substituição. O sistema democrático quando utilizado com plenitude pelo povo que o constitui permite criar uma estrutura de seleção onde a maior expectativa de bem público toma o poder. Esse ato é a eleição.
Pensemos em um regime totalitário: o poder tomado não depende da aceitação da representação de um desejo majoritário, pois o povo, desprovido da principal ferramenta pública de mudança da vontade política, que é o voto (eleição), se encontra em conjuro, acossado e isolado.
O totalitarismo, ciente do desamparo de uma ferramenta democrática que legitime o seu poder, se preservará interferindo nos processos que possibilitem a formação de uma oposição coletiva, pois, após ganhar corpo, vontade e comoção, o estado sucumbirá diante à legião urbana; seu grau de coerção tornar-se-á irrelevante, pelo fato deste depender do segundo para existir. Sendo assim, para que o ponto revolucionário jamais chegue, e, se possível, nem mesmo o descontentamento ganhe representatividade, o totalitarismo irá subjugar a liberdade de expressão, manipulará a realidade, coibirá a manifestação de qualquer pensamento contrário à ordem estabelecida pelo governo representativo de si mesmo, raramente, do povo.
Atualmente, dentro de estados democráticos constituídos, encontram-se agentes políticos incutindo o início; retorno; intervenção do totalitarismo, próprias ditaduras, na concepção terminológica e historicamente cruel da palavra. A réplica comum é a de que através de um processo democrático onde o povo elegeu representantes políticos, estes defenderem posições ditatoriais e fascistas está democraticamente correto. É de compreensão comum que a democracia, para ser considerada democracia, deve dar voz a todos. Todavia, dar voz aqueles que a desejam calar, em primeira análise, soa equivocado.
Contudo, aceitaremos este argumento, alegando que o processo democrático também deve dar voz para que, democraticamente, a democracia seja findada. Consequentemente deduzimos que a democracia deve aceitar sua extinção para coroar-se democracia. Afirmaremos que sim. Trabalharemos com a hipótese de que experimentamos a democracia e concluímos que desejamos voltar, ou mudar, para a ditadura. A resultante é um governo que tolhe qualquer nova mudança de opinião ou evolução da percepção social e política após a instalação do seu regime. Então temos uma insustentável contradição:
Posições ideológicas opostas não se transmutam com posições ideológicas equânimes.
Não podemos derrubar uma ditadura com a ditadura. Milhões de pessoas nas ruas exigindo voz não é um ato ditatorial, é uma comoção popular, o poder está amplamente descentralizado, democratizado. Da mesma maneira, a democracia não pode ser derrubada com a democracia. Esta precisa libertar-se da idiossincrasia passiva de dar “voz a todos”, pois isso acaba por criar um amplo terreno permissivo para fascistas enrustidos de “todos” fazerem política antidemocrática da pior espécie. Em suma: uma voz que deseja silenciar é uma voz que não deve ser ouvida. Se isto não é respeitado, deve ser imposto.
Vale lembrar que esta mesma voz que proclama a volta do estado ditatorial só pôde ser ouvida por ter participado de um processo democrático cujo qual legitimou e garantiu a ressonância das suas palavras. Este indivíduo ou partido, uma vez eleito democraticamente, não pode exigir, via democracia, seu fim. Há uma grande mentira na intenção. Cabe silenciar quem quer silêncio. Cabe represar quem quer repreensão. Cabe expulsar da democracia todo indivíduo que conluia o seu fim fazendo uso de direitos que a própria democracia lhe garante. Não há progresso na contradição. Nossa condição de humano nos permite muito mais que escolher não escolher. Quem quer uma nação sem voz que seja calado com a mordaça da liberdade.
Muito oportuno e reflexivo o argumento de Saramago: “Que o grande problema do nosso sistema democrático é permitir fazer coisas nada democráticas democraticamente”.No entanto, o que hoje é muito claro, é o vislumbramento da ética e das ideologias tanto partidárias quanto pessoais, que, de forma perversa e ambiciosas mudaram o real sentido das obrigações do poder em benefícios do povo. Neste sentido, percebe-se, no entanto, que os princípios morais ficaram muito remotos independente de regimes: democráticos, comunistas, monarquistas etc. já que todos são compostos por “pessoas”, as quais nem sempre agem com o pensamento no bem comum. Desta forma podemos dizer que o pensamento de Saramago hoje, é aplicável não apenas às democracias, mas em qualquer regime que comandado por pessoas, cuja ética satisfaça apenas os interesse próprios, tanto hegemônicos como financeiros, dificilmente se chegará a um governo equânime.