Nessa obra, Friedrich Engels desvia um pouco de suas discussões políticas usuais, no contexto da Europa da época, e adentra em uma discussão mais acadêmica, um de seus trabalhos adjacentes (com as ciências naturais) voltada para a ciência biológica e uma das discussões mais relevantes entre a comunidade científica da época: a evolução e seus efeitos na formação do ser humano. Como o título indica, o teórico pretende examinar como o exercício do trabalho gerou a transformação (evolução, cientificamente falando) do macaco no Sapiens Sapiens. Engels começa por afirmar que o trabalho é a condição básica e fundamental de toda a vida humana, “Em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem.” [1]
Conforme as necessidade de sobrevivência apareciam, as espécies de macacos precisavam encontrar formas de perpetuar-se e de não se tornarem alvos fáceis na estrutura predatória de suas regiões, surgindo desta forma a necessidade de construir ferramentas para tornar-se capaz de defender-se quando atacado ou mesmo de predar quando necessário. É dessa forma que o macaco – generalizando em um termo diferentes espécies de descendentes e ascendentes semelhantes que viveram em regiões diferentes – passou a exercer diferentes funções com as suas mãos e passou a ter expertise no uso das mesmas não só como patas, bem como exercitou a sua criatividade para a formação das ferramentas, estimulando também o pensamento cognitivo e a união/correlação de informações. O teórico marxista aponta esse argumento na obra:
Por isso, as funções, para as quais nossos antepassados foram adaptando pouco a pouco suas mãos durante os muitos milhares de anos em que se prolongam o período do macaco ao homem, só puderam ser, a princípio, funções sumamente simples. […] Mas havia sido dado o passo decisivo: a mão era livre e podia agora adquirir cada vez mais destreza e habilidade; e essa maior flexibilidade adquirida transmitia-se por herança e aumentava de geração em geração. Vemos, pois, que a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele. Unicamente pelo trabalho, pela adaptação […] foi que a mão do homem atingiu esse grau de perfeição que pôde dar vida, como por artes de magia, aos quadros de Rafael, as estátuas de Thorwaldsen e à música de Paganini. [2]
O trabalho – as mãos – e a criatividade – o cérebro – desenvolveram-se dessa forma enquanto os macacos e os primeiros homens tinham a necessidade de locomover-se constantemente para não serem extintos. A revolução agrícola gerou a possibilidade de manter-se por mais tempo em diferentes locais, e dessa forma começou a desenvolver-se o que já existia antes: a comunicação interpessoal, princípio fundador das linguagens que utilizamos atualmente. Engels também aponta isso:
Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano – que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição. […] O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos ao seu serviço, a crescente clareza de consciência, a capacidade de abstração e de discernimento cada vez maiores, reagirem por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu desenvolvimento. Quando o homem se separa definitivamente do macaco esse desenvolvimento não cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em diferentes sentidos entre os diferentes povos e as diferentes épocas, interrompido mesmo às vezes por retrocessos de caráter local ou temporário, mas avançando em seu conjunto.[3]
Contextualizando as contribuições de Engels às descobertas e evidências modernas, vemos algumas confirmações do uso das mãos e do trabalho como elemento construtor de uma “ontologia do homem”, como quando chimpanzés produzem ferramentas e passam esse conhecimento adiante, dessa forma preservando-o.
Conforme afirma Michel Silva, Os homens se acostumaram a explicar tudo como obra do cérebro. “Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o cérebro dos homens (…) e continua ainda a dominá-lo” (ENGELS, s.d., p. 275). Para Engels, nem mesmo os mais materialistas dos teóricos da evolução humana, como Darwin, conseguiam chegar a uma idéia precisa sobre a origem do homem em função de não ver a importância desempenhada pelo trabalho no processo de evolução. Para Engels, nem mesmo os mais materialistas dos teóricos da evolução humana, como Darwin, conseguiam chegar a uma idéia precisa sobre a origem do homem em função de não ver a importância desempenhada pelo trabalho no processo de evolução. [4]
Apesar dessas críticas comuns à visão extremamente materialista do marxista, Engels baseou-se profundamente em Darwin, citando-o extensamente. A atualidade do pensamento de Charles Darwin é também a atualidade da obra de Friedrich Engels.
O biólogo estava errado sobre as gêmulas, e o gradualismo em algumas espécies de fósseis ainda não foi comprovado pela pesquisa científica. A teoria biológica, também, não é tão linear quanto Engels parece querer indicar. Existem evoluções lentas e evoluções rápidas, contextos diferentes onde não só o trabalho é relevante para a formação de novas espécies (isolamentos reprodutivos ou integração a ecossistemas também são pontos relevantes nessa questão). [5]
A evolução assemelha-se, dessa forma, mais a ramos de uma árvore – ou mesmo fluxos internos de um rio – do que a linhas sucessórias. Pontos seguem desenvolvimentos diferentes por estarem em locais e contextos diferentes, mesmo que partam do mesmo descendente. A simples atuação do trabalho e o uso das mãos não formam um homem. Apesar de tudo, a contemporaneidade do trabalho de Engels é impressionante exatamente por ter sido uma obra talhada na vanguarda da época. Politicamente falando, é uma mostra de que o pensamento materialista-histórico não deve estar atado a dogmas cunhados em séculos que já passaram: deve constantemente adaptar-se ao que a realidade demonstra; a realidade é a eterna pauta da política.
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Referências:
[1] ENGELS, 1876, p.1
[2] ENGELS, 1876, p.3
[3] ENGELS, 1876, p.6
[4] Para mais, leia o artigo de Michel Silva sobre o tema: “O macaco e o trabalho”.
[5] Para mais, leia o artigo de David Quammen: “Darwin estava errado?”
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