Televisão, indústria da informação – Pierre Bourdieu

Entender a televisão como uma indústria permite que olhemos para seu processo de produção da informação e entender como ela funciona.

Pierre Bourdieu (1930-2002) foi professor e sociólogo francês, fortemente influenciado pelas teorias de Marx, Weber e Durkheim. Sem cair no dogmatismo daqueles que o influenciaram, propôs saídas para os impasses dicotômicos que sua área enfrentava na época, permitindo uma abordagem absolutamente original da sociedade.

Neste artigo, buscaremos recortar a influência de Marx em seu livro Sobre a Televisão, a fim de tornar evidente o que poderia ficar ofuscado pela hibridez de seu pensamento. Em primeiro lugar, para uma análise econômica da televisão, é preciso superar um “vício” comum, que confunde o denuncismo com uma análise da realidade, com o primeiro substituindo o segundo:

Por exemplo, não se pode explicar o que se faz na TFI apenas pelo fato de que essa emissora é propriedade  de Bouygues. É evidente que uma explicação que não levasse em conta esse fato seria ao menos insuficiente. E o seria talvez ainda mais porque teria a aparência de ser suficiente. Há uma forma de materialismo curto, associado à tradição marxista, que não explica nada, que denuncia sem esclarecer nada. [1]

Utilizando como ponto de partida uma série de práticas que alimentam o campo jornalístico – como a busca pelo “novo”, a preferência de uma notícia pela outra, o sensacionalismo – e analisando a lógica interna dessa ações, Bourdieu encontra uma causa – de base econômica – que impõe esse habitus ao campo jornalístico: o índice de audiência:

O universo do jornalismo é um campo, mas que está sob a pressão do campo econômico por intermédio do índice de audiência. E esse campo muito heterônomo, muito fortemente sujeito às pressões comerciais, exerce, ele próprio, uma pressão sobre todos os outros campos, enquanto estrutura [2]

O índice de audiência alimenta uma série de ações cristalizadas (habitus); na descrição desse modus operandi, ele parece fazer comparações com relações de competição que se associam ao modelo empresarial [3] e, à medida em que aprofunda sua análise, percebemos que é possível traçar paralelos entre a fábrica e a mídia, fazendo nascer o conceito da “indústria” da informação, que irá transformar a versão de um acontecimento em uma mercadoria.

Pressão econômica e suas consequências na produção da notícia

Na medida em que a produção da noticia passa por um processo semelhante ao de uma mercadoria em uma indústria, cujo trabalho socializado vai da coleta de informações às seleções conscientes e inconscientes para sua formulação, até a exibição da noticia (em jornal, rádio ou televisão), seu consumo e consequente extração da mais-valia, é preciso pensar na produção da informação como uma linha de produção; a busca pelo lucro impõe um habitus (nocivo) da busca pelo furo, da produção de informações de forma desenfreada (como se toda informação pudesse ser mercadorizada), na diluição de um programa para que ele possa ser assistido por mais pessoas:

Para ser o primeiro a ver e a fazer ver algumas coisa, está-se disposto a quase tudo, e como se copia mutuamente visando a deixar os outros para trás, a fazer antes dos outros, ou a fazer diferente dos outros, acaba-se por fazerem todos a mesma coisa,  e a busca da exclusividade, que, em outros campos, produz a originalidade, a singularidade, resulta aqui na uniformização e na banalização [4]

Assim, a concorrência, na indústria da informação, ao contrário de outros tipos de produção, termina por homogeneizar as notícias, uma vez que qualquer espécie de parcialidade demasiado evidente por parte da empresa de comunicação pode criar dissenso com o espectador:

Uma parte da ação simbólica da televisão, no plano das informações, por exemplo, consiste em atrair a atenção para fatos que são de natureza, a interessar a todo mundo, dos quais se pode dizer que são omibus – isto é, para todo mundo. Os fatos-ônibus são fatos que, como se diz, não devem chocar ninguém, que não envolvem disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam a todo mundo, mas de um modo tal que não tocam em nada de importante [5]

Nesse momento, a informação – em seu formato de mercadoria – adquire, inclusive, o fetichismo de uma mercadoria comum, onde “[…] essas palavras fazem coisas, criam  fantasias, medos, fobias ou, simplesmente, representações falsas” [6] uma vez que o telespectador médio, participando – direta ou indiretamente – ou não da produção daquela notícia, olha para a televisão (ou para o jornal) acreditando ver o fato-em-si, e não um produto de escolhas e seleções na produção que envolvem gestos específicos, som ao fundo, técnicas de filmagem, escolha lexical, legenda que diz não “o que se vê”, mas “o que se quer que seja visto”: a notícia aparece pronta, imparcial, autônoma.

Os perigos inerentes ao uso ordinário da televisão devem-se ao fato de que a imagem tem a particularidade de poder produzir o que os críticos literários chamam o efeito do real, ela pode fazer ver e fazer crer no que faz ver [7]

Essa credibilidade dada à televisão torna-se perigosa, por exemplo, quando os canais de televisão concedem espaço para conteúdos racistas (vestidos de “humor”),  quando a televisão se coloca como porta-voz dos anseios populares ou mesmo quando vende (como verdade) senso-comum e ideologia dominante – e, assim, na busca por aumentar seu público – e ganhar seus pontos de audiência – o jornal tende a homogeneizar suas notícias: elas não dividem ou causam furor; é um jornal que não levanta problemas ou leva à reflexão: ele conformiza, despolitiza, banaliza o fato e esconde a forma com que fora produzido.

Tomemos o mais fácil: as notícias de variedades, que sempre foram o alimento predileto da imprensa sensacionalista: o sangue e o sexo, o drama e o crime sempre fizeram vender, e o reino do índice de audiência devia alçar à primeira página, à abertura dos jornais televisivos, esses ingredientes que a preocupação de respeitabilidade imposta pelo modelo da imprensa escrita série levara até então a afastar ou relegar [8]

A indústria do também reproduz o moralismo burguês ao perceber que é altamente vendível: cria-se um espetáculo em cima de casos de família, de perseguições policiais, da Justiça – questionam, de forma cínica, a moralidade da mulher que trai, as motivações do bandido que rouba, a falta de “justiça” (leia-se: vingança) na lei: o apresentador – junto do telespectador – é o bastião da moral num mundo incurável.

Mas o que torna os jornalistas – e o campo jornalístico – tão estimados naquilo que realizam? Para o autor:

Os jornalistas – seria preciso dizer o campo jornalístico – devem sua importância no mundo social ao fato de que detém um monopólio real sobre os instrumentos de produção e difusão em grande escala da informação e, através desses instrumentos, sobre o acesso dos simples cidadãos, mas também dos outros produtores culturais, cientistas, artistas, escritores, ao que se chama por vezes de espaço público. isto é, a grande difusão. […]  eles exercem uma forma raríssima de dominação: têm o poder sobre os meios de se exprimir publicamente, de existir publicamente, de ser conhecido de ter acesso à notoriedade pública (o que, para os políticos e para certos intelectuais, é um prêmio capital). [9]

Isso legitima que eles coloquem sua visão de mundo – ou a visão de mundo da emissora – em grande escala. Assim, a televisão se torna um instrumento ideológico de dominação, que arbitra sua censura pelo índice de audiência,  impondo um gosto e uma mercadoria – a informação rápida – ao grande público, que não reflete sobre aquilo que consome.

O índice de audiência é essa medida da taxa de audiência de que beneficiam as diferentes emissoras […] Há, hoje, uma “mentalidade-índice-de-audiência” nas salas de redação, nas editoras etc. Por toda a parte, pensa-se em termos de sucesso comercial. […] Ele dava como veredito absoluto, como julgamento definitivo, o veredito das cifras de vendas. Por meio do índice de audiência, é a lógica do comercial que se impõe às produção culturais [10]

O fenômeno mais importante (e que era bastante difícil de prever), é a extensão extraordinária da influência da televisão sobre o conjunto das atividades de produção cultural, aí incluídas as atividades de produção científica ou artística.

Quero falar da contradição entre as condições econômicas e sociais nas quais é preciso estar inserido para poder produzir certo tipo de obras (citei o exemplo da matemática porque é o mais evidente, mas isso também é verdade para a poesia de vanguarda, a filosofia, a sociologia etc.), obras que são chamadas de “puras” ( é uma palavra ridícula) digamos, autônomas com relação às pressões comerciais, etc. e, por outro lado, as condições sociais de transmissão dos produtos obtidos nessas condições; contradição entre as condições nas quais é preciso estar para poder fazer matemática de vanguarda, poesia de vanguarda etc; e, as condições nas quais é preciso estar para poder transmitir essas cosias a todo mundo. A televisão leva ao extremo essa contradição na medida em que sofre mais que todos os outros universos de produção cultural, a pressão do comércio, por intermédio do índice de audiência. [11]

Pressão econômica e suas consequências econômicas em outras esferas de produção

Bourdieu aponta uma série de influências que a televisão (o campo do jornalismo) impõe aos outros campos, como o jurídico, o acadêmico, o cultural; e de como ele interfere e ameaça as instituições democráticas e geopolíticas. No entanto, iremos delimitar neste texto a descrição de sua interferência apenas na produção dos outros campos.

O campo jornalístico age, enquanto campo, sobre os outros campos. Em outras palavras, um campo, ele próprio cada vez mais dominado pela lógica comercial, impõe cada vez mais suas limitações aos outros universos. Através da pressão do índice de audiência, o peso da televisão sobre o jornalismo, ele se exerce sobre a televisão, e, através da televisão no jornalismo, ele se exerce sobre os outros jornais […] E, da mesma maneira, através do peso do conjunto do campo jornalístico, ele pesa sobre os campos de produção cultural [12].

Na medida que a lógica de mercado interfere na mídia e na indústria da informação, este campo termina por influenciar outros campos com sua força econômica de exposição – o “tornar público” – primeiramente, elegendo ou desmerecendo intelectuais ou artistas, interferindo no campo cultural e acadêmico, conferindo autoridade aos fast-thinkers (“pensadores” em um formato “fast-food”) que trocam a reflexão, a ciência e a filosofia por pensamentos pré-digeridos, como no caso dos astrônomos-jornalistas, pretensos historiadores “politicamente incorretos” e geneticistas de grau menor (geralmente, deterministas); o que termina por resultar – em segundo lugar – em uma forma mercadológica do conhecimento e da cultura, substituindo a Arte pela produção cultural de pior espécie (mas altamente vendável), terminando por criar a exclusão de discursos não-vendáveis (mas intelectualmente superiores) e os substituindo pelos vendáveis.

De fato, penso que a televisão através dos diferentes mecanismos que me esforço por descrever de maneira rápida – uma análise aprofundada e sistemática teria exigido muito mais tempo – expõe a um grande perigo as diferentes esferas da produção cultural, arte, literatura, ciência, filosofia, direito […] ela expõe a um perigo não menor a vida política e a democracia [13].

É preciso entender a relação que se estabelece entre a interferência da televisão na produção dos âmbitos culturais e acadêmicos e essa mesma produção com a televisão – forma-se um ciclo onde a busca pelo lucro e pelo índice de audiência se completam e se reproduzem:

[…] e é bem verdade que, não podendo se fiar muito em sua obra para existir com continuidade, eles não têm outro recurso senão aparecer tão frequentemente quanto possível no vídeo, escrever, portanto, a intervalo regulares, e tão breves quanto possível, obras que, como observava Gilles Deleuze, têm por função principal assegurar-lhes convites na televisão. [14]

Pondo em risco, assim, a autonomia e a liberdade dos demais campos de produzirem uma pesquisa que caibam em suas visões de mundo.

Possibilidades emancipatórias

Ao ler Bourdieu, é possível encontrar duas formas de emancipação desse habitus:

a) transgredir

b) assumir do controle dos meios de produção

No primeiro, para Bourdieu, fazer evidente aquilo que se encontra inconsciente é função do sociólogo: expondo as consequências da mentalidade índice-de-audiência imposta aos jornalistas e trabalhadores da televisão para eles mesmos, a fim de que se deem conta daquilo que reproduzem em seu cotidiano, poderia dar a eles a chance de escolher continuar a jogar as regras do jogo ou a transgredirem o seu habitus.

Por exemplo, elevando a consciência dos mecanismos, ele pode contribuir para dar um pouco de liberdade a pessoas que são manipuladas por esses mecanismos, quer sejam jornalistas quer telespectadores. Penso – é um parênese – que os jornalistas que possam sentir-se objetivados, como se diz, se escutarem bem o que eu digo serão levados a dizer-se – pelo menos o espero – que, explicitando coisas que eles sabem confusamente mas das quais não querem saber muito, eu lhes dou instrumentos de liberdade para dominar os mecanismos que evoco. [15]

Assim, jornalistas, apercebendo-se de que convidar – por exemplo – políticos que dirão discursos racistas e xenófobos só para aumentar o índice de audiência através da “polêmica” causada, eles poderiam recusar-se a chamá-los e evitar esse tipo de prática.

Porém, o sociólogo aponta que a transgressão do jornalista ou da emissora pode acarretar em três fins:

  1. O conformismo pela autocensura para a transgressão, uma vez que a precariedade do emprego e a existência de um enorme exército de reserva para o trabalho na televisão facilitam a opressão patronal;
  2. A opressão patronal ou dos outros trabalhadores em cargos mais elevados ao trabalhador (ou ao conjunto de trabalhadores) da televisão se resistirem de forma isolada dos demais;
  3. A transformação da transgressão em uma mercadoria, tornando-a inócua em suas pretensões, tendo sua capacidade de resistência engolida pelo mercado e servindo, se este conseguir pegar uma fatia do mercado, ao índice de audiência;

No caso b), quando Bourdieu cita,  logo no início do livro [16] que só pode falar o que está dizendo porque domina os meios de produção, ele parece sugerir que, tornando conscientes os mecanismos estruturais que geram as faltas de moral, uma ação consciente visando controlá-los se tornaria possível; assim, a tomada dos meios de produção informação – ou seja, os próprios trabalhadores assumirem a televisão – poderia garantir não só uma nova organização do trabalho, mas uma revolução simbólica, em que a televisão serviria à redução da opressão simbólica, permitindo uma nova forma de democracia.

Embora eu tenha todas as razões para temer que elas sirvam sobretudo para alimentar apenas a complacência narcisística de um mundo jornalístico muito propenso a lançar sobre si próprio um olhar falsamente critico, espero que possam contribuir para dar ferramentas ou armas a todas aqueles que, enquanto profissionais da imagem, lutam para que o que poderia ter se tornado um extraordinário instrumento de democracia direta não se converta em instrumento de opressão simbólica. [17]

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Referências

[1] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.56.

[2] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.77.

[3] ↑ “No campo dos empreendimentos econômicos, por exemplo,  uma empresa muito poderosa tem o poder de deformar o espaço econômico quase na totalidade; ela pode, baixando os preços, impedir a entrada de novas empresas, pode instaurar uma espécie de barreira à entrada. Esses efeitos não são necessariamente produto da vontade” (página 56-57).

[4] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.27.

[5] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.23.

[6] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.26.

[7] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.28.

[8] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.22.

[9] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.  pp.65-66.

[10] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. pp.37-38.

[11] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.  p.52.

[12] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.  p.81.

[13] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.  pp.9-10.

[14] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.  p.17.

[15] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.  p.79.

[16] ↑ É uma situação inteiramente particular já que, para empregar uma linguagem fora de moda, tenho um domínio dos instrumentos de produção que não é costumeiro”, grifo nosso. p.16.

[17] ↑ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.  p.13.

1 Comentários

  1. Meu irmão. Eu assino embaixo!
    Obrigado aos algoritmos do facebook por me fazerem chegar até aqui.
    O seu texto reflete exatamente o que eu penso. Acabei de me “libertar”da cultura, graças a Bourdieu, e enxergo todo este movimento de forças e jogo simbólico de forma similar a você.
    Seu texto refinou uma tese que eu ainda não tinha dado corpo, mas que inquietava os meus dias.
    Favoritado! Quero ler tudo o que você escreve.

    Grande abraço.
    Quando quiser fazer mestrado, me procura lá no http://www.cepecc.com.br.
    Vai ser um prazer colaborar.

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