Dentro de um discurso, há dois tipos de relações discursivas possíveis: o primeiro tipo nós chamamos de relações reais, que são aquelas formadas as instituições, normas, técnicas e são independentes de qualquer discurso; já o segundo, chamamos de relações reflexivas, são aquelas que expressam a visão dos sujeitos do enunciado sobre o próprio discurso.
Eu preciso começar o texto com esse parágrafo para que você entenda o trigger warning. A função dada pelos participantes do discurso da internet ao trigger warning é de proteger pessoas com algum trauma que poderia ser ativado com algo específico contido dentro de uma postagem num grupo do Facebook, no Tumblr, blog e etc. É um conceito, assim como apropriação cultural (que eu já falei aqui) e local de fala (que eu tratei aqui), diretamente relacionado com a internet.
Na prática, segundo os sujeitos dos enunciados da internet, quando uma vítima de estupro visse o aviso “TW: estupro”, ela evitaria ler o post e seria poupada de uma crise psicológica.
Esta é parte das relações discursivas reflexivas que fazem parte do discurso da internet: o trigger warning como proteção, como ferramenta da construção de um espaço seguro.
A primeira dúvida é: até que ponto é possível saber o que é um gatilho mental?
Essa dúvida é crucial porque não há como saber se o que vai ativar o stress específico do estupro é ler o conteúdo sobre estupro ou a própria palavra “estupro” contida dentro do TW.
Não podemos ser burros: o fato de “estupro” ser só uma palavra não anula a sua capacidade de ativar qualquer tipo de gatilho, isso porque a palavra estupro é um símbolo que, por qualquer contingência, pode carregar para a vítima de estupro o suficiente para que ela lembre dos acontecimentos, assim como a descrição detalhada.
De certa forma, não é possível prever o que especificamente ativa gatilhos, a única que é possível fazer neste sentido é chutar o que pode ativar um gatilho e o que não pode. Para o discurso da internet, um gatilho deve ser ativado com a descrição, com o caso, com o exemplo, mas não deve ser ativado com o selo, com a palavra, com a classificação. Positivamente, o discurso da internet marca o sujeito, lhe indicando o que pode servir como gatilho e o que não pode. Quem define que a descrição, o caso ou o exemplo ativam um gatilho é o próprio discurso da internet, que também limita a palavra como mero classificador com significado de distância. O verdadeiro significado do símbolo é “passou por isso? Afaste-se”.
No entanto, não é necessário muitas pesquisas para afirmar que as vítimas de qualquer forma de abuso ou violência se encontram em campos sociais muito mais variados do que o da militância da internet. Vistas fora do computador, não faz sentido limitar as reações possíveis de uma vítima de estupro ao caso, exemplo ou descrição e deixar de fora a própria classificação, a palavra solta. Isso porque a palavra solva passa a ter um significado que não pede referência ao discurso da internet.
Isso significa que a única função do TW é servir ao discurso da internet, sendo assim, constituir seus sujeitos. A função do TW é criar um espaço seguro que, na verdade, é um espaço limitado. O espaço seguro do TW é o espaço onde as regras do discurso da internet valem: nos grupos de Facebook, no Tumblr, em blogs (e, ultimamente, em universidades).
Talvez isso delimite o campo específico de atuação do discurso da internet, no entanto, não expressa uma característica fundamental que faz o TW se tornar mais que um classificador: o trigger warning não só diz como as pessoas devem se sentir, mas é pressuposto do trigger warning a incapacidade do sujeito de superar um trauma. A existência do trigger warning está fincada na incapacidade do sujeito de lidar com algo traumático.
Eu arrisco afirmar que esta incapacidade deve ser eterna para o trigger warning, levando em consideração os outros mecanismos que evitam o contato entre opiniões diversas que poderiam causar o contato da vítima com o trauma: por exemplo, a vivência é uma maneira de evitar que pessoas que não sofreram algo possam falar a respeito, assim como o local de fala. Este dois conceitos funcionam como protetores não das pessoas que sofreram, mas do próprio trauma.
O local de fala e a vivência são conceitos que protegem o trauma de qualquer embate, enquanto o TW explica como o trauma deve se relacionar com o sujeito. A função do TW é guardar o trauma, é explicar a medida de suas reações possíveis garantindo sua existência. O trigger warning, portanto, não só diz como o trauma deve ser disparado, como também garante sua existência, amparado pelos conceitos de vivência e local de fala.
Nosso panorama atual é o seguinte: o trigger warning garante a existência do trauma ao dizer aos sujeitos quando o trauma deve ser lembrado e quando os sujeitos devem expressar os sentimentos a respeito do trauma, também entendemos que a relação do trigger warning com o local de fala e a vivência é próxima: a impossibilidade de alguém que não está traumatizado falar sobre o trauma (por não ter vivência ou por não ter local de fala) impede que o trauma seja enfrentado.
O único momento em que ele pode ser enfrentado, a marcação de TW evita que o sujeito traumatizado o enfrente.
Me parece que essas são as relações discursivas reais que envolvem o TW dentro do discurso da internet. É com esta normatização específica e a partir destas técnicas de controle que ele opera.
No entanto, quais são as consequências disso? Talvez o que devemos procurar são desdobramentos, não consequências. Quando o trigger warning assegura a imobilidade do trauma, ele garante algo que eu já observo nos enunciados da internet mas acredito que nunca tratei em minha coluna: o sofrimento é um símbolo de distinção. O local de fala e a vivência são mecanismos de possibilitar a expressão e, quanto mais oprimido dentro das tabelas de opressão que o discurso da internet fabrica, mais locais para falar o sujeito tem e mais vivências ele também terá.
É preciso observar o discurso da internet em seus locais de fluxo: os grupos de Facebook, blogs, Tumblrs e demais redes sociais. Este locais específico em que ele mantém um fluxo contínuo também são constituídos por hierarquias específicas. E é exatamente por isso que existe um conceito mal formulado no discurso da internet chamado estrutura. A função da estrutura é eliminar a hierarquia local para dar vazão à hierarquia global.
O que eu quero dizer com isso? Você precisa me ler com atenção: as relações de poder existem aos montes, elas ultrapassam o arquétipo do poder, em que o homem, branco, hetero e cristão está na ponta enquanto o restante é oprimido por ele. Isso porque o poder se configura de maneiras específicas em locais específicos. Isso é o que estamos falando: o poder se configura de maneira específica em locais específicos, o discurso da internet age em um local específico, que é a esfera da internet (e também de universidades, mas não a universidade acaba sendo somente uma extensão da internet). Dentro da esfera da internet, então, há uma hierarquia específica que o discurso da internet visa manter e essa hierarquia tem como princípio a dominação dos sofredores sobre os não sofredores.
É claro que o conceito de sofrimento utilizado pelo discurso da internet vale como anulação do sofrimento real das pessoas. Não interessa o quanto você sofreu com a morte de seu pai se você for branca. Não é só de sofrimento existencial que estão falando. O sofrimento existencial, as angústias de um eu abandonado, a solidão de um eu a procura de outras pessoas (e as ambivalências das relações sociais) só são chanceladas a partir de marcas mais ou menos imóveis que expressam uma opressão: por isso os militantes da internet precisam dizer a qual raça pertencem, de qual religião participam, qual gênero se identificam, qual sexo, orientação sexual, quais problemas psicológicos têm, enfim, qual a posição específica que ocupam no discurso da internet. Sobre esse essencialismo eu já falei neste texto.
Desta forma, repetindo, a função do conceito de estrutura, no discurso da internet, é manter a hierarquia local intocável, direcionando a visão para a estrutura supostamente universal. Quando faz isso, o conceito de estrutura garante a permanência da hierarquia local, garante a permanência das relações sociais já postas na esfera específica da internet. Ao mesmo tempo, o trigger warning (amparado pelo local de fala e pela vivência) garante a formação do sujeito sofredor específico deste discurso.
O sofrimento, que merece uma atenção especial, tem papel-chave de escada para a dominação no campo de atuação do discurso da internet. É por isso que toda comunicação entre militantes da internet acontece pisando em ovos, com acusações de opressão, silenciamento, exposição e etc. O motivo não é a desqualificação do outro (tão somente), mas sim a classificação de si como sofredor. Ao mesmo tempo em que o outro é opressor (e perde prestígio no campo em que o discurso da internet atua), o sujeito do enunciado é sofredor e ganha capital simbólico para exercer poder.
Já sou velho, mas olho para o mundo a partir de seu ineditismo, nunca sob o ranço interminável dos anciãos.
Olha, cara, preguiça de ler um texto tão grande se ele começa com um erro crasso.
Trigger Warnings não são pra pessoa DEIXAR de ler um texto, mas pra ela SABER de seu conteúdo e pelo menos poder se preparar com certa antecedência.
É uma tempestade em copo d’água que cheira àqueles discursos conservadores quanto à educação – “porque na minha época não tinha dessas frescura”.
É, tipo, só um pouquinho de decência.
Se as pessoas usam isso pra _não_ ler ou _não_ participar de alguma coisa, aí são outros quinhentos. Mas me parece algo mais individual e, francamente, inevitável – assim como pessoas que evitam ver filmes de terror porque têm pesadelos, ou, sei lá, evitam a seção de famosos num portal porque a considera fútil (e sim, cada uma dessas coisas têm proporções sociais, mas enfim)
Não, Peterson.
A única funcionalidade prática do TW é fazer com que a pessoa traumatizada não leia o conteúdo em questão. Saber do que é feito o conteúdo não faz diferença para quem não tem trauma ativado pelo conteúdo, a única diferença real do TW está, então, em quem não deve ler o conteúdo.
E não considero isso algo meramente individual, na medida em que o individual não é descolado do coletivo. Da mesma forma, não acho que a função do TW seja igual das classificações dos filmes, exatamente porque acredito que o TW é parte de um discurso específico, conforme disse no restante do texto, mas você preferiu para de ler no segundo parágrafo.
Olá Valter. Gostei bastante do texto. Continue assim.
Eu sofri um estupro em 2013 e comecei a falar disso na internet lá por 2015, como forma de dar coragem pra outras meninas denunciarem e tudo mais. Não fiz isso antes porque estava com estresse pós-traumático, o que me fazia ter medo de entrar no face. Eu tinha mania de perseguição, as pessoas que ficaram sabendo que denunciei me olhavam torto e eu tinha medo de saber o que pensavam. Eu passava as notícias sobre estupro e machismo sem ler porque me machucavam. Quando me recuperei e postava sobre isso com naturalidade, uma menina veio no meu face por inbox e me pediu pra eu colocar o tal TW, que eu mal sabia o que era, nas minhas postagens, pq ela também tinha sido estuprada. Aquilo me incomodou muito. Discordei, me recusei, falei que não achava o TW relevante pelos mesmos motivos que vc explicou no texto. Ela disse que não tinha culpa de não ser “forte como eu” e me deletou. Essa “militância” está destruindo a empatia e a união realmente transformadora dos oprimidos. É como se ninguém mais tivesse capacidade de sair da internet por uns tempos, enquanto se recupera de um trauma. Como se fôssemos obrigados a estar sempre aqui pra sobreviver, como se recebêssemos um salário por isso. A pessoa não quer deixar de me seguir, ela quer que EU me ajuste aos valores dela, sendo que eu passei pelo mesmo. É bizarro. A impressão que dá é que a pessoa está mentindo, porque ocorre uma clara inversão da gravidade das situações. Eu não tinha como me preocupar com TW quando estava traumatizada, nem como exigir que os meios se adequassem a uma situação que eu queria superar o mais rápido possível. Porque o problema não era estarem falando sobre estupro, muito pelo contrário. O problema era eu ter sido estuprada(e culpada por isso) porque não se fala o suficiente.