Um estudo semiótico dos livros de autoajuda – Modernidade Líquida e Autoajuda

Da série “Modernidade Líquida e Autoajuda”.

homem pensando sobre o direito de dar cabo de si, levemente embruxado, de Susano Correia.
Desenho: Homem pensando sobre o direito de dar cabo de si, levemente embruxado, de Susano Correia.

Os livros de autoajuda de desenvolvimento profissional fazem parte do armamento linguístico para convencer o leitor de que a motivação é a chave para o sucesso e que um profissional motivado é sempre destacado na corporação. Este é o argumento de  Discurso e Motivação: Um Estudo Semiótico dos Livros de Autoajuda, Trabalho de Conclusão de Curso apresentado Carlos Fernandes Vera à Universidade Estadual de São Paulo (UNESP).

Para conseguir o diploma em Comunicação Social, Carlos Vera precisou entender o papel da motivação no ambiente de trabalho e como é abordada por autores cânones na área de desenvolvimento profissional.

A motivação é perdida quando o profissional compreende que seu reconhecimento não virá na mesma velocidade em que as novidades tecnológicas assumem vez em seus bolsos por meio de celulares, ou em suas casas, por meio de computadores, televisores ou utilidades domésticas[1]. Carlos Vera assume, assim, que os profissionais afetados pela falta de motivação que deverá ser solucionada pelos livros de autoajuda de desenvolvimento profissional são os mesmos que vivenciam “com costume” as mudanças tecnológicas, que são, na verdade, parte de uma mudança de época, classificada por Bauman como modernidade líquida.

Apesar de Carlos Vera justificar a produção de sua monografia a partir da necessidade do profissional de relações públicas em perceber quais são os fatores desmotivadores do ambiente de trabalho e promover transparentemente a motivação para seus públicos, há um pedaço de sua justifica que nos interessa, pois, segundo o autor:

pretende-se contribuir para o entendimento do processo de persuasão pelo qual é construído o discurso motivador para os profissionais das organizações, propiciando assim uma percepção dos contratos estabelecidos entre os destinadores e os destinatários. Com isso, buscaremos entender a visão da literatura de autoajuda sobre os anseios dos destinatários, membros de organizações competitivas, que encontram dificuldades em atingir seus objetivos.[2]

Assim, queremos destacar o trajeto de seu trabalho que lida com o entendimento do processo de persuasão que constrói o discurso motivador para profissionais de organizações, ou, o processo de construção do discurso também presente nos livros de autoajuda para desenvolvimento profissional.

Para isso, é necessário entender que a literatura de autoajuda está inserida na cultura de massa, é uma mercadoria cultural. Os livros de autoajuda “são escritos para serem comprados e lidos por pessoas com os mais variados graus de instrução, cultura e das mais diversas classes sociais, por isso é uma literatura massificada e universalizante”[3].

Assim, o autor tende para a conclusão de que a existência dos livros de autoajuda não depende da necessidade das pessoas em ter informações para resolver seus problemas, mas sim da mercantilização deste tipo específico de informação, ou seja, a transformação destas informações – que poderiam ser aproximadas com as práticas de cuidado de si[4] – em cultura de massas. Os autores detêm conhecimento sobre algum assunto e pretendem convencer os leitores de que estão certos, para que consumam mais de suas mercadorias e indiquem para outras pessoas.

A dialética da cultura de massas

Para isso, é necessário se apoiar no argumento de Edgard Morin, de que os produtos da cultura de massa satisfazem uma necessidade mais interior do sujeito médio, ao “grande público”, que representa um grupo para onde conteúdos que se dirigem a todos e, ao mesmo tempo, a ninguém são destinados. Morin usa revistas como “Life ou Paris-Match, grande jornais ilustrados como o France-Soir, superprodução de Hollywood ou grande co-produções cosmopolitas”[5] como exemplos.

E foi a parte mais dinâmica da indústria que criou e ganhou este grande público, que é uma junção de camadas sociais, idades e sexos diferentes. A existência de uma imprensa infantil de massa é tido por Morin como a demonstração de que se trata da mesma estrutura industrial comandando a imprensa infantil e a adulta, liquefazendo as diferenças entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças.

A imprensa adulta é composta por diversos conteúdos infantis, como o uso de quadrinhos, desenhos, fotos em demasia, ou seja, o uso de estímulos imediatamente inteligíveis. A imprensa infantil, no que lhe diz respeito, treina o olhar da criança para a cultura de massas. “Pode-se considerar que quatorze anos é a idade de acesso à cultura de massa adulta: é a idade em que já se vai ver filmes de todos os gêneros (exceto, evidentemente, os censurados), em que já se fica apaixonado pelas revistas, em que já se escutam os mesmos programas de rádio ou de televisão que os adultos”[6].

A aglutinação dessas idades faz se sobressair um tipo dominante: o juvenil. A cultura de massa valoriza o adulto jovem, o adolescente jovem, pois além de serem seus principais consumidores, também são suas temáticas centrais. Dito isso, Morin concebe a cultura industrial como o grande terreno de comunicação entre patrões e operários, entre as diferentes classes, que estão separadas por seus gostos particulares, mas unidas pelo programa de TV, de rádio, ou pelo jornal e a unidade da cultura de massa é justamente isso: o consumo. Ela adapta todos os temas locais ou folclóricos que pode para torná-los cosmopolitas, como o samba, o jazz, o mambo.

E a dialética principal da cultura de massa e dos sujeitos que dela tomam parte é a definição de quem determina quem. É claro que uma resposta para esse problema não pode ser quadrada, não pode apontar para um lado e esquecer o outro, isso porque justamente a dialética é assim, a interrelação incessante dos polos que trocam de lugar, se submetem e dominam, causam mudanças em seus opostos.

Mas Morin vai terminar seu argumento afirmando que a cultura constrói os sujeito que, depois, irá vender seus produtos, no entanto, ela também entra em contato com um tronco comum humano que representa esse público de massa, assim, sua produção é determinada pelo mercado, na medida em que o mercado que a determina não foi somente constituído por ela, como também é uma amostra de um fundo comum humano.

Por isso, a cultura de massa entra em contraste com as outras culturas. Ela não se impõe como norma, não é autoritária. Ao contrário, ela serve perfeitamente para seus consumidores. O mercado não impõe seus produtos, ele propõe modelos e esse é seu trabalho: elaborar propostas para o grande público.

Sincronia entre consumidor e produto

Daí sua grande aceitação materializada na literatura de autoajuda, nosso objeto de estudo. Ela não só propõe soluções para os problemas contemporâneos, como também constrói esses problemas em seus detalhes, apesar deles terem um modelo geral no “tronco humano comum” presente no público de massa, conforme dito anteriormente.

A partir do saber-fazer, o enunciador cria uma ligação com o enunciatário, que o coloca como a ajuda necessária para resolver os problemas de sua vida profissional (que são problemas com o mesmo modelo daqueles que ele também observa na vida pessoal). Além disso, a literatura de autoajuda também é afetada pela infantilização dos conteúdo adultos: apesar de não ser feita de quadrinhos, ainda é recheada de imagens, esquemas facilitadores ao leitor, capítulos curtos, linguagem sempre simples e um subtítulo autoexplicativo. Esses elementos facilitam o entendimento do leitor e criam entre ele e o livro, uma ligação também de confiança, pois se aquilo que o escritor fez e está escrevendo a respeito é tão fácil de ler e é escrito de maneira tão simples, então o livro pode ser aplicado por qualquer um, então não é necessário conhecimento teórico, horas de estudos, dias de reflexão: o saber-prático que o livro já está explicando é o suficiente para alcançar o sucesso.

A presença de proposições com verbo no modo ativo denota a autoridade do enunciador, que se coloca como alguém que dá ordens, mas que não são absolutas, mas sim fruto de sua experiência, que foi traduzida em forma de manual para o livro escrito, embalado perfeitamente para que seu consumidor, ao obedecer as propostas do livro, tenha sucesso em sua vida profissional.

É claro que o livro precisa, a todo instante, oferecer sanções positivas para seu interlocutor, é só assim que ele vai conseguir a aceitação implícita do leitor, que irá obedecer o que é dito, identificar as melhoras da sua vida como resultado da aplicação das propostas do livro e indicar para seus amigos.

Além disso, o público da literatura de autoajuda é imenso, amplo: são profissionais de qualquer nível hierárquico que desejam ascender profissionalmente, que se sentem travados, fracassados ou subestimados em sua vida profissional.

A fragilidade na situação dos profissionais que buscam a literatura de autoajuda é explicada através da nova configuração que a contemporaneidade tomou. O profissional que recebe a injunção de ser um bom profissional, destacado, também precisa lidar com o péssimo relacionamento que este imperativo gera aos funcionários, sempre competindo entre si. Esta característica é marcante e pode ser observada no poder cada vez menor dos sindicatos, portanto, da consciência de classe que definha, já que a vida profissional tornou-se atomizada, junto com a vida pessoal.

O mercado de trabalho é dinâmico e exige inovação de seus participantes, ao mesmo tempo, o indivíduo precisa de segurança para manter-se motivado, para conseguir trabalhar bem. É necessário entender que o trabalho não é fátuo para poder se dedicar rotineiramente e os livros de autoajuda com foco em desenvolvimento profissional atuam como mediadores neste sentido: eles dão as ferramentas que os profissionais precisam para seguir o fluxo dinâmico do mercado, porém não perder a motivação necessária para o bom trabalho.

Os livros analisados por Vera Neto carregam todas as características necessárias para atender a demanda dos profissionais carentes de estratégias para adequação ao mercado de trabalho. São livros que se esforçam para mostrar a autoridade não formal do autor, que é uma autoridade na medida em que tem experiência e, portanto, pode ser um bom conselheiro, não um cientista – isso é expresso pelo próprio autor, que inicia seus livros contanto suas experiências gerais dentro do assunto que trata ou dando a introdução para que outro profissional diga o quão experiente o autor é para poder falar a respeito do que fala.

Os livros também ensinam a motivar outras pessoas, para que façam aquilo que você quer que elas façam, são livros feitos para pessoas que desejam ou que estão em posição de liderança, o que revela o caráter não associativo dele, afinal, a posição de liderança não é ampla e o livro pretende preparar o indivíduo para vencer seus companheiros de trabalho e alcançar a posição almejada, no entanto, sem perder a amizade que precisará para dar ordens aos liderados. A motivação, assim, assume uma forma que depende do sucesso na motivação do outro, mas a análise de Vera Neto também mostra a motivação como valor individual em parcela da literatura que analisou.

O que nos interessa é que a motivação é central para o alcance do sucesso e o último, por sua vez, é dependente da motivação. O sucesso e a motivação tem relação direta com a liderança, afinal, os livros são feitos para líderes que querem utilizar a ferramenta do livro como meio de motivar seus liderados ou como instrumento para alcançar a liderança. A definição de líder, nos livros de autoajuda com foco em desenvolvimento profissional, é aquela que o mostra como alguém que sabe motivar as pessoas, assim, buscando quebrar os limites e resolver problemas que não poderiam ser resolvidos sozinho.

Também, como já dito a respeito das sanções positivas, os livros se focam em associar suas propostas com a euforia do sucesso, somente a menor parte tenta convencer a leitura e aplicação a partir do medo do fracasso. Reforço positivo contra reforço negativo.

O livro de autoajuda para desenvolvimento profissional é uma ferramenta para adequação dos trabalhadores com a nova dinâmica do mercado de trabalho que revela outras transformações sociais: a transferência da responsabilidade pelo motivação do patrão para o próprio empregado (portanto, a privatização de responsabilidade sociais), a atomização da vida (e a competição como fator associativo entre trabalhadores), a naturalização da hierarquia de trabalho e a aceitação dos métodos de motivação e de liderança, que quando lidos na literatura de autoajuda por pessoas que ainda não são líderes mas desejam ser, as faz cúmplices dos métodos ensinados e, elas próprias, auxiliares da eficiência dos líderes.

Referências

[1] VERA NETO, Carlos Fernandes. Discurso e Motivação: Um estudo semiótico sobre livros de autoajuda de desenvolvimento profissional. Trabalho de Conclusão de Curso – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual de São Paulo, 2011, p.11.

[2] VERA NETO, Carlos Fernandes. Discurso e Motivação… p.12.

[3] VERA NETO, Carlos Fernandes. Discurso e Motivação… p.16.

[4] LIMA, Vinicius Siqueira. Livros de autoajuda e o consumo de conselhos – Modernidade e Autoajuda. Revista Eletrônica Colunas Tortas. Acessado em 16 de janeiro de 2017. Para acessar, clique aqui.

[5] MORIN, E. Cultura de massas no século XX: O espírito do tempo. Trad. Agenor Soares Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. v. 2, p.35.

[6] MORIN, E. Cultura de massas no século XX: O espírito do tempo… p.39.

*Imagem destacada de Susano Correia, “Homem saboreando a parte mais amarga de si”.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. Um estudo semiótico dos livros de autoajuda – Modernidade Líquida e Autoajuda. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/um-estudo-semiotico-dos-livros-de-autoajuda-modernidade-liquida-e-autoajuda/>>.

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