Elementos internos e externos da língua – Saussure e a AD

O artigo abaixo visa mostrar a classificação feita por Saussure entre os fatos correspondentes à linguística da língua e à linguística da fala. Para o autor, somente faz parte da análise da língua aquilo que pode afetar seu sistema interno e todo o restante deve ser eliminado das observações de um cientista da língua. Após os desenvolvimentos sobre a linguística interna e externa de Saussure, é colocado uma aproximação de Pêcheux e da análise do discurso (AD) sobre este tema, demonstrando que parte do nascimento da AD envolve a negação de tal separação proposta pelo autor suíço.

Da série “Saussure e a AD”.

elementos internos e externos da lingua - Saussure

Elementos internos e externos da língua

Curso de Linguística Geral.
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Ferdinand de Saussure realiza um corte entre língua e fala para, posteriormente, atribuir maior importância ao primeiro termo. Segundo o autor, enquanto a língua é o elemento coletivo da linguagem, a fala é o elemento individual; enquanto a língua é essencial na execução da linguagem, a fala é acessório (já que qualquer outro tipo de suporte que não o vocal poderia ser utilizado para materializar a língua).

A língua é “um sistema de signos distintos correspondentes a ideias distintas”[1], é produto da coletividade, registrada passivamente pelo indivíduo, que não controla suas mudanças, somente a utiliza para expressar ideias e tem na sua ordenação a segurança de expressar aquilo que gostaria a partir de seus signos, já a fala é “é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor”[2].

O objeto da nova ciência linguística deve ser, então, a língua.

A definição de Saussure da língua (com sua separação da fala) exige que, na análise do linguista, tudo que é externo a ela seja eliminado. Os elementos estranhos à língua, exteriores a ela, compõe o que o autor chama de “linguística externa”, enquanto os elementos internos à língua integram a “linguística interna”.

A linguística externa deve ser eliminada da língua em sua nova definição, no entanto, ela ainda tem seu papel na linguística. Ela deve:

  1. observar as relações da etnologia com a linguística, “todas as relações que podem existir entre a história duma língua e duma raça ou civilização […] Os costumes duma nação tem repercussão na língua e, por outro lado, é em grande parte a língua que constitui a Nação”[3];
  2. entender as relações entre a língua e a história política: Saussure cita as conquistas romanas como influência sobre fatos linguísticos, mas vai além, também constatando a colonização como influência, “que não é senão uma forma de conquista, transporta um idioma para meios diferentes, o que acarreta transformações nesse idioma”[4]. O autor também entende que o grau de civilização favorece o “desenvolvimento de certas línguas especiais (língua jurídica, terminologia científica etc.)”[5].

Um terceiro ponto nasce após a elaboração dos dois primeiros, no parágrafo anterior: a relação da língua com as instituições sociais. Segundo o linguística suíço, instituições como a igreja, a escola, os salões, a corte e as academias são centrais na hora de entender o desenvolvimento literário de uma língua.

Tudo que é relacionado à extensão geográfica do alcance das línguas e seus fracionamentos dialetais está no âmbito da linguística externa e,

sem dúvida, é neste ponto que a distinção entre ela e a Linguística interna parece mais paradoxal, de tal modo o fenômeno geográfico está intimamente associado à existência de qualquer língua; entretanto, na realidade, ele não afeta o organismo interno do idioma.[6] 

Ou seja, apesar de ser um campo importante de análise, com sua relevância local, o estudo dos fenômenos linguísticos não é essencial para entender o organismo interno da língua.  Saussure cita dialetos localizados em vales longínquos que não permitiram nenhuma entrada de idiomas externos e do uso ínfimo de palavras estrangeiras praticado. “Em geral, não é nunca indispensável conhecer as circunstâncias em meio as quais se desenvolveu uma língua”[7], afirma o autor.

Ao mesmo tempo, apesar da importância menor para o estudo da língua, Saussure considera essencial separar ambas as áreas de estudo devido ao método que elas aplicam. O linguista considera que a linguística externa não precisa se preocupar com a sistematização de fatos sobre a expansão (ou diminuição) de uma língua. Seu foco seria nos agrupamento de fatores que foram importantes para acompanhar um certo desenvolvimento, sem a pressão de ter que sistematizá-los.

Pelo contrário, na linguística interna não há chance de criatividade metodológica. A língua é um sistema e não pode ser estudada fora de sua ordem.

É possível visualizar de maneira simples a atuação da linguística interna e externa a partir do jogo de xadrez:

O fato dele ter passado da Pérsia para a Europa é de ordem externa; interno, ao contrário, é tudo quanto concerne ao sistema e às regras. Se eu substituir as peças de madeira por peças de marfim, a troca será indiferente para o sistema; mas se eu reduzir ou aumentar o número de peças, essa mudança atingirá profundamente a “gramática” do jogo.[8]

Conclui-se que: 1) é externo tudo aquilo que tem relação à língua, mas não altera seu sistema; 2) é interno toda mudança que resulta em alteração do sistema.

Aproximação com Pêcheux e a AD

É sabido que o quadro epistemológico da Análise do Discurso é formado por três bases fundamentais:

  1. O materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;
  2. a linguística, como teoria dos mecanismo sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo;
  3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.[9]

As três cortadas por uma teoria da subjetividade com base psicanalítica.

Percebemos que os pontos 1 e 2 se referem justamente a estudos com ligação direta com a história (elementos externos à língua, conforme classificado por Saussure). As formações sociais, suas transformações e a maneira como a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos, assim como a teoria do discurso, que observa a determinação história dos processos semânticos, ambos devem sua existência à análise histórica.

Já a linguística que Michel Pêcheux toma como base, que tem início em Saussure, é problematizada. O autor francês observa que o corte entre fala e língua recoloca o sujeito na análise: se na língua há um sistema rígido que não depende dos falantes, a fala é “subjetividade em ato, unidade ativa de intenções que se realizam pelos meios colocados a sua disposição”[10] já que ela é descrita como a maneira do sujeito utilizar a língua.

Pêcheux também problematiza a possibilidade virtual de se formular um número extenso de frases desde que sejam obedecidas as regras da língua, conforme supõe Saussure. Para o criador da Análise do Discurso Francesa, o elemento histórico não deve ser separado das combinações possíveis permitidas pela língua, na medida em que é ele o responsável por tornar uma possibilidade virtual em possibilidade prática. Antes de Copérnico, diz Pêcheux, não seria possível formular a frase “a terra gira”, apesar dela ser normal e possível segundo as regras da língua.

Considerações finais

A divisão entre linguística interna e externa é importante para o estudo da língua no modelo saussuriano, na medida em que a língua é um “sistema de signos que exprimem ideias”[11] e seu uso se dá tomando como base que “a língua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos”[12].

Sendo assim, o fato social da língua é de interesse no modelo de estudo linguístico proposto por Saussure e a língua “é o produto que o indivíduo registra passivamente”[13].

Recapitulando: já que a língua é 1) um sistema, 2) existe na coletividade como sinais depositados nos indivíduos, e 3) é o produto dessa coletividade que o indivíduo registra passivamente, então a maneira científica de se estudar a língua é através de um modelo fechado e delimitado pelas relações que existem dentro da própria língua, entendendo sua ordenação interna, não sua relação com o mundo, já que não é o resto do mundo que vai definir as relações existentes dentro da língua.

É necessário ter em mente que o objetivo de Saussure é fazer linguística, não análise social, daí seu foco na língua e em suas relações internas, porque são exatamente elas que vão dar um objeto específico à ciência da língua dentro dos estudos linguísticos.

Pêcheux, por sua vez, está mirando na análise do discurso que é uma linha interdisciplinar de pesquisa que tem como objeto o discurso, não a língua.

Referências

[1] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Tradução: Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blinkstein. 32ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2010, p.18.

[2] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.21.

[3] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.29.

[4] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.29.

[5] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.30.

[6] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.30.

[7] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.31.

[8] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.32.

[9] PÊCHEUX, Michel; FUCHS, Catherine. A propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspectivas (1975) IN GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, 163-164.

[10] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69) IN GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p. 71.

[11] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.24.

[12] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.27.

[13] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.22.

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