Esta nova edição do Big Brother Brasil me obrigou a trazer alguns temas já antigos nesta coluna que mantenho no Colunas Tortas. Praticamente, esta edição do BBB ratifica aquilo que eu já havia falado sobre local de fala, apropriação cultural, gatilhos e etc.
No entanto, há algo diferente aqui. E acredito que a figura da Karol Conká pode ser a referência perfeita para representar esta característica nova que eu gostaria de dissecar. Estou falando da conduta avaliadora.
Antes, é necessário dizer que considero parte dos participantes do BBB 21 como a encarnação das redes sociais em seres humanos, não mais em perfis virtuais. Num mundo de cancelamento, a regra do jogo social é aquela mesma das redes sociais: Karol Conká, por exemplo, é um perfil de Twitter em carne, um perfil de rede social no corpo de um humano. Ela pode ser utilizada como exemplo para se entender a postura, a conduta avaliadora própria dos sujeitos das redes sociais. Dos sujeitos que nascem no discurso das redes sociais.
Em sua figura debochada, exagerada, soberba, arrogante e avaliadora, Karol Conká é o resultado da união de conceitos próprios deste discurso, como o local de fala, que permite a soberba da verdade; como o academicismo, que permite a ignorância em prol da vivência. É só através, por exemplo, da união destes dois conceitos, amparados pelo conceito de vivência, que Karol Conká tem a condição material de humilhar Lucas Penteado seguidas vezes sem ser confrontada. É só através desta união combinatória que se torna possível a humilhação de Juliette, participante da Paraíba que teve seus trejeitos e sotaque caracterizados como uma maneira má educada de ser, como fora da civilização que Curitiba, cidade de Karol, seria representante.
Emerge disso a conduta própria da militante de redes sociais: a avaliação. A avaliação não é uma escolha, é uma injunção, pois a avaliação é condição do uso dos conceitos acima exemplificados. É somente na proatividade da avaliação que a militante de redes sociais consegue dar vida ao seu sujeito próprio, sujeito que move relações da esfera moral, muito mais do que da esfera política.
A luta político-racial declarada por Karol Conká é uma luta moral. Não tem qualquer efeito político institucional para a população negra, mas sim um efeito moral dentro do discurso das redes sociais. A conduta avaliadora move relações dentro da dicotomia entre o certo e o errado, entre a virtude e o vício, como quando Caio usou maquiagem por brincadeira e se viu em uma situação em que foi obrigado a se desculpar por algo que ele nem sabe o que é, como se o objeto maquiagem tivesse um único fim, uma única função, que seria a representação de mulheres de trans no mundo. Como se a maquiagem não pudesse ser só pintura do corpo.
O local de fala permite dizer a verdade, mas nunca uma verdade profunda: permite dizer verdades banais. O local de fala, da maneira como se move no discurso das redes sociais, nunca será mote para uma revolução social. A avaliação é a injunção básica de exposição de si e do outro: aqui, temos a característica fundamental das redes sociais: a exposição é uma regra. É necessário que se exponha, que se diga qual é sua sexualidade, sua orientação, seu gênero, sua cor, sua história, sua família. A verdade vem da essência, não da relação entre o dito e a realidade, desta forma, a intimidade é anulada, a introspecção é condenada.
Eu gostaria de deixar claro como a conduta avaliadora é um operador de transformação da realidade fora da internet em realidade de redes sociais. Como a militância das redes sociais precisa que a realidade fora das redes sociais siga as mesmas regras das redes sociais para que, assim, se possa agir também fora do perfil do Twitter, fora do Instagram. A avaliação permite que se diga que Gilberto não é negro. A avaliação permite que se diga que Lucas deve ser cancelado e humilhado. A avaliação permite que se diga que Juliette é má educada, incivilizada. E essa avaliação só pode surgir daquela que ocupa o local de fala mais privilegiado no discurso da internet: a mulher negra não heterossexual. O local inquestionado. O local cuja fala emana verdade, pois tem no sofrimento sua essência e distinção.
É evidente que, de um ponto de vista político, sociológico e econômico, a mulher negra, no Brasil, está em uma posição de constante tensão em suas relações sociais, interpessoais. Mas aqui, eu não estou falando de pesquisa social prática, de análise política da realidade. Aqui, estou falando sobre o discurso das redes sociais, discurso esse que não engloba a mulher negra faxineira, a caixa de supermercado, a esposa abusada pelo marido. O discurso das redes sociais, na prática, engloba a Karol Conká, artista pop endinheirada que produz músicas com letras que declaram sobre seu sucesso comercial. Engloba Lumena, a Psicóloga DJ que humilha momento após momento o participante Lucas por ter se excedido numa festa e que pede o silêncio do outro sob o signo da escuta. Cale a boca e me escute, aprenda comigo.
Repito aqui, não estou falando da Karol Conká (ou da Lumena). Estou a utilizando como referência para falar do discurso das redes sociais. Estou mostrando como ela é um sujeito deste discurso.
No entanto, o mais interessante disso tudo é que o público em geral não consegue se relacionar com este discurso. Num país em que metade da população não tem acesso à internet e grande parte daquela metade que tem acesso só o tem a partir de pacote de dados que permite a utilização unicamente do Whatsapp ou Facebook, o discurso das redes sociais não tem muito espaço para reprodução. O tiro sai pela culatra.
Já sou velho, mas olho para o mundo a partir de seu ineditismo, nunca sob o ranço interminável dos anciãos.
Valter, achei seu texto muito bom! Acho que você em poucos parágrafos explicou de forma muito concisa o comportamento dessa nova “militância” da minha geração. Eu conheço algumas pessoas próximas que se sentem desconfortáveis com essas ações supostamente políticas de julgar moralmente como as pessoas devem agir/falar. Mas, ainda sim existe uma passividade gigantesca em relação a esses grupos em diversos espaços, principalmente na universidade. É muito gratificante ver que apesar de todos os males que aconteceram esse ano no BBB, essa edição pode servir de exemplo para que consigamos melhorar a qualidade dos discursos progressistas. Tanto que agora, mais do que nunca estou vendo mais pessoas criticando abertamente essas ações dos avaliadores.
O comentário me pareceu que: nas redes sociais, a pessoa tem a ‘fala’ mas não tem a ‘escuta’, ou seja, ela se absorve há um mundo em que prevalece apenas o seu discurso, em detrimento ao diálogo; próprio do relacionamento pessoal, social, não virtual. E quando o encontro se dá no real, são desveladas as falsas posturas acadêmicas, sociais, políticas e de lisura as;as quais só são aparentemente possíveis na sombra das redes sociais. Seria isso?