Da série “Doença Mental e Psicologia“.
Há pouco tempo o Ocidente chama a loucura de doença mental. A medicina entra no jogo do discurso da loucura como o guerreiro libertador de um sujeito doente incompreendido. Afinal, o louco, diz Foucault, segundo os historiadores de sua época, era o possuído. Mas este é um erro fundamental.
Trata-se de um erro de raciocínio, pois o fato do possuído ser louco não implica no louco ser tratado como possuído; mas também num preconceito: considerar que pessoas possuídas eram doentes mentais. Aliás, a possessão, parte de uma história das ideias religiosas, não de uma história da loucura, também precisou de ajuda médica para ser controlada: Foucault mostra casos do século XVI ao XVIII em que médicos foram chamados por instituições da época para provar como casos de possessão demoníaca, êxtase, delírios de pactos com o diabo, entre tantas outras experiências religiosas, eram, na verdade, efeitos de uma imaginação desregrada ou do desequilíbrio dos humores ou dos espíritos. Neste casos, não há um desenvolvimento propriamente médico (não mais que paralelo) na relação do trabalho dos profissionais, do desenvolvimento de uma explicação para a possessão e da igreja, pois o que se percebe é a própria experiência religiosa que necessitou – de um modo secundário – da explicação médica para ter apoio em seus objetivos, sendo os casos descritos por Foucault pedidos de intervenção da medicina em casos de possessão feitos pela igreja católica contra o protestantismo e o paganismo.
Diferente da experiência contemporânea, é fato que a loucura era reconhecida de maneira polimorfa. Já na medicina grega, uma parte do domínio da loucura era classificado como patológico e recebia práticas que patologias deveriam receber. Durante a história é comum encontrar hospitais que reservavam leitos para loucos, com objetivo de enclausurar os furiosos. Mas é importante entender que esta relação com o louco era uma fatia do todo. Sendo que esta característica “era somente um setor restrito, limitado às formas da loucura que se julgavam curáveis (frenesis, episódios de violência, ou acessos ‘melancólicos’). De todos os lados, a loucura tinha uma grande extensão, mas sem suporte médico”[1].
A loucura não tinha um tratamento estável, único. Ela dependia sempre de uma certa integração com a cultura que variava com o tempo e o espaço. Era possível ver livros de moral sobre a loucura, como em O Elogio da Loucura de Erasmo; pinturas como em Bosch com a Nave dos Loucos; espetáculos populares que acontecem em volta de eventos da loucura, como o Navio Azul em Flandres; e, na literatura, o próprio teatro elisabetano e francês com cenas de demência, sonhos e confissão.
Isto não quer dizer que o Renascimento não cuidou dos loucos. Pelo contrário, foi no século XV que se viu abrirem-se na Espanha inicialmente (em Saragossa), depois na Itália, os primeiros estabelecimentos reservados aos loucos. São aí submetidos a um tratamento, sem dúvida, em grande parte inspirado da medicina árabe. Mas estas práticas são localizadas. A loucura e no essencial experimentada em estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do cenário e da linguagem comuns, é para cada um uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar. Há na França, no começo do século XVII, loucos célebres com os quais o público, e o público culto, gosta de se divertir; alguns como Bluet d’Arbêre escrevem livros que são publicados e lidos como obras de loucura. Até cerca de 1650, a cultura ocidental foi estranhamente hospitaleira a estas formas de experiência[2].
No entanto, a segunda metade do século XVII guardava mudanças. Foi neste período que a loucura deixou de ser o estranho habitual e foi encaixada em status de exclusão. Os hospitais de internamento de loucos foram criados por toda a Europa e lá se vê não só loucos, mas sujeitos muito diferentes uns dos outros, pelo menos diferentes para os nossos critérios:
encerram-se os inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, em resumo todos aqueles que, em relação a ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de “alteração”.[3]
Esses hospitais, por sua vez, não têm como objetivo curar ou tratar os internados. Sua motivação médica era nula e o objetivo de sua existência era enclausurar aquilo que a sociedade não queria ver e não poderia lidar a olho nu: a desrazão. A permanência dos asilos está diretamente ligada ao programa de trabalhos forçados (que imita as workhouses inglesas) feitos pelos internos: vários objetos eram fiados e tecidos, depois lançados em mercado com baixos preços para financiarem a própria existência do sanatório. Não obstante, o trabalho tem papel de controle moral,
É que, no mundo burguês em processo de constituição, um vício maior, o pecado por excelência no mundo do comércio, acaba de ser definido; não é mais o orgulho nem a avidez como na Idade Média: é a ociosidade. A categoria comum que agrupa todos aqueles que residem nas casas de internamento, é a incapacidade em que se encontram de tomar parte na produção, na circulação ou no acúmulo das riquezas (seja por sua culpa ou acidentalmente). A exclusão a que são condenados está na razão direta desta incapacidade e indica o aparecimento no mundo moderno de um corte que não existia antes.[4]
Foi a partir do internamento de loucos junto a libertos e criminosos maiores e menores que a loucura foi associada com o mau, o obscuro, aquilo que deve-se afastar. Foi quando esta estabeleceu um paralelo de culpa moral e social com tais infrações: não se fica surpreso, portanto, com o fato da loucura ser muitas vezes a causa e a absolvição do crime, ser o relacionada com os “crimes do amor”. Sua nova posição requer que ela carregue o peso da má conduta e que o sujeito acometido por ela não seja responsável juridicamente sobre si.
Com um século de internamentos e silêncio aos loucos, irrupções da loucura começam a reaparecer em ambiente público. As reformas passam a ser discutidas e o louco como pura culpa passa a ser deslocado para outras esferas: é aqui o momento em que os hospitais passam a ser considerados focos do mal, lugares obscuros e traumáticos.
Mas como os reformadores resolveriam os problemas dos hospitais? O objetivo era acabar com dois problemas de uma só vez: 1) acabar com o internamento como ruptura com a opressão do sistema monárquico pré-revolução francesa e 2) diminuir a assistência hospitalar para escamotear a existência de uma classe miserável.
A ideia inicial, de libertar os loucos, criava o problema dos cuidados: como a família conseguiria tomar conta de um louco agressivo? A resposta foi o isolamento. Os asilos deixaram de aprisionar um número indefinido de tipos de indivíduos e, paulatinamente, passaram a internar somente loucos. Os reformadores, portanto, libertaram todos os outros, menos os loucos, e o internamento passou a ser reconhecido como uma medida de caráter médico. São vários os nomes que ajudaram nessa nova constituição da loucura: Pinel na França, Tuke na Inglaterra, Wagnitz e Riel na Alemanha. São eles os “pais” do humanismo na medicina em conjunto com seu status de ciência positiva.
Ainda assim, as práticas adotadas por Tuke não se diferenciam das já aplicadas antes da Revolução. O louco é confinado num espaço que deve considerar algo parecido a seu lar, é então aplicado castigos como privação alimentar, humilhações, castigos e ameaças para lhe inculcar um sentimento de dependência, humildade e culpa, aquilo que realmente lhe faria curar – o louco é infantilizado e culpabilizado. Em Bicetre, Pinel liberta os acorrentados para, em seguida, lhes dominar por meio de grilhões morais, “que transformava o asilo numa espécie de instância perpétua de julgamento”[5].
As técnicas terapêutica dos manuais médicos do século XVII e XVIII se mantiveram após a reforma. Os tratamentos desses manuais não separava o corpo da alma, a loucura da saúde física. Por isso, os tratamentos eram físicos e psicológicos: “submetia-se o doente a ducha ou ao banho para refrescar seus espíritos ou suas fibras; era-lhe injetado sangue fresco para renovar sua circulação perturbada; procurava-se provocar nele impressões vivas para modificar o curso da sua imaginação”[6].
Quando retomadas por Pinel e seus sucessores, todas essas técnicas perderam seu conteúdo terapêutico de corpo e alma e foram inseridas num contexto repressivo e moral.
A ducha, não refrescava mais, punia; não se deve mais aplicá-la quando o doente está “excitado”, mas quando cometeu um erro; em pleno século XIX ainda, Leuret submeterá seus doentes a uma ducha gelada na cabeça e empreendera neste momento, com eles, um diálogo durante o qual forçá-los-á a confessar que sua crença é apenas delírio. O século XVIII havia também inventado uma máquina rotatória onde se colocava o doente a fim de que o curso de seus espíritos demasiado fixo numa idéia delirante fosse recolocado em movimento e reencontrasse seus circuitos naturais. O século XIX aperfeiçoa o sistema dando-lhe um caráter estritamente punitivo: a cada manifestação delirante faz-se girar o doente até desmaiar, se ele não se arrependeu.[7]
A loucura perde sua característica de fenômeno global, deixa de pertencer ao corpo e a alma e passa a ser algo interior, um fato da alma humana e, consequentemente, recebe um status psicológico. Foucault indica que esta operação encobre uma mais profunda, a da inserção da loucura no sistema de repressões e culpa morais, em que o louco é minorizado e aparentado como um criança, sendo sua conduta classificada como erro (este novo louco nasce, portanto, sob as regras que mais tarde darão luz ao evolucionismo do desenvolvimento psicossexual proposto pela psicanálise).
Até agora, Foucault mostrou as formas como a psicologia analisa a doença mental (o evolucionismo da psicanálise, a história individual e as ambivalências da existência), não é novidade que todas elas se enquadrem nos temas que definem sua problemática desde Esquirol: “relações da liberdade com o automatismo; fenômenos de regressão e estrutura infantil das condutas; agressão e culpa”[8].
A psicologia, assim, precisa do louco para surgir. Ela não classifica, mas necessita do louco: a loucura é classificada na medida em que diz algo sobre a psicologia. Foi na experiência patológica que ela se formou como ciência, como objetividade, como psicologia positiva. “Foi uma análise dos desdobramentos que ocasionou uma psicologia da personalidade; uma análise dos automatismos e do inconsciente que fundou uma psicologia da consciência; uma análise dos déficits que desencadeou uma psicologia de inteligência”[9]. O homem tornou-se sujeito da psicologia no momento em que sua relação com a loucura o permitiu o nascimento da psicologia, ou seja, quando seu corpo passou a ser excluído do convívio, encarcerado em sanatórios e castigado, e quando sua alma passou a ser devedora em âmbito moral, em débito com a culpa.
É sobre a experiência da desrazão, que pede a exclusão e a culpa do sujeito, onde a psicologia vai formar sua base epistemológica. Ela é somente uma camada fina no qual o homem moderno busca sua verdade, diz Foucault.
Nunca a psicologia poderá, dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade da psicologia.[10]
A psicologia da loucura levada ao extremo seria o extermínio de seu corpus, seu desaparecimento, pois a relação essencial que teria espaço para análise (e uma análise não moralizável, já que não seria psicológica) voltaria a ser a da razão com a desrazão.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Traduzido por Lilian Rose Shalders. Título original: Maladie mentale et psychologie (Presses Universitaires de France). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.53.
[2] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.54.
[3] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.54.
[4] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.55.
[5] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.57.
[6] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.57.
[7] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.58.
[8] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.58.
[9] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.59.
[10] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.60.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Muito contributiva esta resenha sobre doença mental e psicologia. As obras de foucault acaba sendo um pouco difícil de entender, principalmente para quem esta começando na vida académica.
Obrigado pelo comentário, Alessandro!
Como leigo, achei bacana. 🙂
Obrigado pelo comentário!