TEMPLE, Giovana Carmo. Poder e resistência em Michel Foucault: uma genealogia do acontecimento. Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, 2011, p. 124 – 129.
Como afirmamos na seção anterior, a arte de governar é o momento no qual, sobretudo no século XVI, é posta a questão de como ser governado e por quem ser governado. Mas, afinal, quem é o sujeito ou o grupo de sujeitos que dá voz a estas problematizações? Primeiramente, no que concerne ao pastorado cristão, ao governo de individualização, esta questão é formulada por meio de “revoltas” específicas de conduta. Na realidade, Foucault as define, primeiramente, enquanto “resistências”, “insubmissões”, “são movimentos que têm como objetivo outra conduta, isto é: querer ser conduzido de outro modo, por outros condutores e outros pastores, para outros objetivos e outras formas de salvação, por meio de outros procedimentos e de outros métodos”. Não são, portanto, resistências específicas ao poder econômico ou político, mas conflitos que giram em torno da seguinte escolha: por quem ser conduzido e ser conduzido em direção ao que. Entre estas resistências de conduta a maior que o Ocidente cristão conheceu foi, lembra Foucault, a de Lutero contra o cristianismo. Ainda, as resistências de conduta ligadas às lutas entre a burguesia e o feudalismo, no século XII; as relacionadas às lutas das mulheres que já século XII reivindicam por seu lugar na sociedade civil e religiosa. Essas “resistências” terão um sentido mais amplo, e também mais expressivo, quando Foucault passa a defini-las enquanto “contracondutas”, “palavra que só tem a vantagem de possibilitar referir-nos ao sentido ativo da palavra ‘conduta’”, ou seja, que reafirma o sentido de luta contra os procedimentos da arte de conduzir os outros.
As “contracondutas” se mantêm enquanto força de oposição ao pastoral cristão até o fim do século XVII, pois já no final deste século e no começo do século XVIII temos a constituição de um governo que passa a regulamentar a população. É aqui que as “contracondutas” se desvencilham das amarras religiosas para se colocarem enquanto resistências políticas. Entre estas resistências de conduta Foucault cita a “deserção-insubmissão”, contraconduta que se constitui apenas no momento em que ser soldado passa a representar uma conduta política e ética por vincular o indivíduo a “um sacrifício, uma dedicação à causa comum e à salvação comum, sob a direção de uma autoridade pública, no âmbito de uma disciplina bem precisa”. A partir daí a recusa dos indivíduos em exercer o ofício da guerra se multiplica, “uma recusa da educação cívica, como uma recusa dos valores apresentados pela sociedade”. Ainda, como resistência de conduta temos a “dissidência religiosa” representada pela “franco-maçonaria” que no século XVIII constitui seus próprios ritos, dogmas etc.; também a recusa, desde o fim do século XVIII até os nossos dias, da medicina por um grupo de religiosos que se opõe a certo “tipo de racionalidade médica” como as prescrições, prevenções, recusa à vacinação etc.
Com efeito, Foucault também analisa cinco contracondutas da Idade Média que não apenas tentam se desvencilhar da condução cristã, mas, ao fazê-lo, propõem alternativas de como se conduzirem. A primeira é a ascese que, contrariando a idéia de que o cristianismo é uma religião ascética, se organizam de modo diferente da obediência cristã. As práticas ascéticas aparecem, primeiramente, como “um exercício de si sobre si”, por meio do qual o asceta busca superar seus limites sobre si e com relação ao outro, implica, enfim, no desafio “de se vencer, de vencer o mundo, de vencer o corpo, de vencer a matéria ou ainda de vencer o diabo e suas tentações”. O segundo exemplo concerne à formação de comunidades religiosas que buscam
alternativas e formas de conduta divergentes daquelas propostas pelo pastoral cristão, entre as quais temos “a prática da confissão dos leigos” que se institui por desconfiança à confissão feita ao padre. Terceira contraconduta ao pastoral é a “mística”, cujos valores e funcionamento se dissociam em grande medida dos métodos e crenças do pastoral. Também o retorno à leitura da Escritura na Idade Média provoca um distanciamento em relação à pastoral, uma vez que a Escritura “é um texto que fala sozinho e que não necessita do mediador universal”. Por fim, a “crença escatológica” se configura entre as contracondutas que, por acreditar na consumação do tempo e o retorno de Deus, dispensa o pastor cristão do trabalho de guiar suas ovelhas. Temos aqui contracondutas (da religião ascética, da comunidade, da mística, da Escritura e da escatologia) que, embora religiosas, constituíram-se em oposição à conduta do pastoral cristão.
Este espírito questionador que desponta no início do século XVI enquanto contraconduta ao poder pastoral se prolonga no exercício da governamentalidade. Mas aqui, como já sabemos, o Estado não controla súditos, mas governa uma população e, para tanto, institui uma série de estratégias, análises, reflexões, cálculos, estatísticas sobre como governá-la. Assim, ainda na tentativa de esclarecer o uso feito por Foucault dos termos razão de Estado e governamentalidade, talvez possamos reconhecer a razão de Estado como a estratégia de governo que efetua a transição da soberania à governamentalidade. Isso porque, as questões da governamentalidade moderna se concentram, sobretudo, em torno do par “população-riqueza”, já as da razão de Estado em torno da tríade “população- mecanismo diplomático-militar e de polícia”. De fato, o par “população-riqueza” é analisado por Foucault particularmente no curso seguinte, “O nascimento da Biopolítica” (1978-79). Desta maneira, em “Segurança,…” (1977-78) razão de Estado e governamentalidade são termos que se entrecruzam historicamente com a emergência da população, e suas as estratégias de governo não são analisadas a partir das condições de formação da economia política (liberalismo e neoliberalismo), as quais permitirão uma análise mais ampla do conceito de governamentalidade enquanto estratégia de governo do Estado e dos indivíduos.
O que ocorre é que a arte de governar característica da razão de Estado envolve
uma série de racionalidades específicas (como o exame, as estatísticas, os cálculos, as análises) sobre a população para que o Estado esteja apto a governá-la. Estas racionalidades pertencem ao conjunto de procedimentos que caracterizam a arte de governar na governamentalidade, mas não são os únicos. Portanto, ainda que não seja possível tomar um conceito pelo outro, é certo que razão de Estado e governamentalidade são termos relacionados com a emergência da população. Especificamente com relação ao tema das contracondutas na razão de Estado, o interessante é que por ser um Estado que governa uma população consciente de seus desejos, ainda que estes sejam criados pela racionalidade do Estado, é preciso que as estratégias de exercício do poder atuem de maneira sutil e eficiente para garantir a sobrevida do Estado. É por isso que a racionalidade do Estado precisa antecipar os desejos da população, pois ao fazer com que esta deseje a partir da oferta biopolítica o Estado acaba por regulamentar as contracondutas à arte de governar. Daí porque as contracondutas à governamentalidade acabam por auxiliar, ainda que não propositadamente, as estratégias de governo.
Desta maneira, considerando o conjunto de articulações, conexões, que a governamentalidade estabelece entre as práticas de exercício do poder pastoral, da disciplina e da biopolítica, é que Foucault apresenta as contracondutas que se formam na razão de Estado atualizando o debate característico da Idade Média. Assim, se aqui a recusa era à condução do pastoral, na razão de Estado as contracondutas visam, sobretudo, a recusa deste governo. Apoiando-se, para tanto, naquilo que este Estado oferta. Com efeito, como se trata aqui de um governo que regula uma população, eis que a primeira forma de contraconduta se constitui em oposição à historicidade posta pela razão de estado, afirmando “uma escatologia em que a sociedade civil prevalecerá sobre o Estado”. Nos rastros desta contraconduta, temos a segunda forma de contraconduta que reivindica por um momento no qual a população irá romper “todos os vínculos de obediência que ela possa ter com o Estado e, erguendo-se contra ele, dizer doravante: é a minha lei, é a lei das minhas exigências…, é a lei das minhas necessidades fundamentais que deve substituir essas regras da obediência”. Também uma escatologia que, para Foucault, “toma a forma do direito absoluto à revolta”, que prega o direito à própria revolução, ou, ainda, a soberania da população. Por fim, a terceira forma de contraconduta consiste na oposição ao “Estado como detentor da verdade”, a esse ponto as contracondutas irão sustentar que a “nação” deve ser titular de seu saber, é a idéia de que uma sociedade deve ser transparente e verdadeira. Resistências que se apóiam, portanto, nos diferentes elementos constitutivos da transição de uma pastoral da alma para a razão de Estado.
– Giovana Carmo Temple.
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