O nascimento da população – Michel Foucault

A população emerge como novo personagem político da modernidade. Ela é caracterizada como resultante de diversas variáveis: climáticas, urbanas, econômicas, psicológicas, culturais, tributárias, etc. Não se trata mais de ter na população a expressão da força de um soberano: a população, na modernidade, é o fluxo de desejo que pode ocupar o espaço público. Entende-se, assim, que a nova forma de governo trabalha para confluir os desígnios do poder e a vontade geral da população captada através de uma certa liberalização com objetivo de tornar livre o movimento dos desejos de cada indivíduo.

Da série “Biopoder“.

Índice

Introdução

Os dispositivos de segurança atuam sobre um conjunto de multiplicidades, um conjunto de indivíduos. As ações biopolíticas, por sua vez, estão sempre em relação aos que governam e aos que são governados. Aqueles que são governados, os conjuntos de unidades humanas administrados segundo os desígnios do poder, fazem parte de um tipo bem específico de fenômeno que surge XVIII, que emerge alterando a dicotomia coletivo/indivíduo, totalidade/fragmentação.

Este tipo específico de fenômeno se refere a um novo personagem político que permite ao biopoder conceituar, elaborar, construir e aplicar estratégias de regulamentação. Acima de tudo, permite um novo tipo de controle, mas também de criação, de positividade. Trata-se da população: de elemento surdo e mudo, após o século XVIII passou a ser elemento primário de observação e tomada de decisão política e administrativa[1].


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A negatividade da população

Michel Foucault admite que o uso da palavra população não é novo: a população já era um problema de governo e já demandava técnicas e procedimentos específicos. No entanto, o uso do termo era de maneira essencialmente negativa:

O que se chamava de população era essencialmente o contrário da depopulação. Ou seja, entendia-se por “população” o movimento pelo qual, após algum grande desastre, fosse ele a epidemia, a guerra ou a escassez alimentar, depois de um desses grandes momentos dramáticos em que os homens morriam numa rapidez, numa intensidade espetacular, o movimento pelo qual se repovoava um território que tinha se tornado deserto.[2]

Aqui, tem-se um uso negativo da noção de população: um uso que depende de uma injunção catastrófica: a população entra em cena quando é necessário recuperar um posto perdido, quando é necessário retomar a ocupação de espaço, o nascimento de corpos e seu desenvolvimento. O problema da população relacionava-se ao deserto, à desertificação. Um exemplo: o recolhimento das taxas de mortalidade nem sempre existia ou era contínuo. A Inglaterra, durante o século XVI, estabeleceu a feitura de tabelas de mortalidade (com todas as ressalvas já ditas na frase anterior) em períodos de grandes epidemias, quando se queria saber exatamente quantas pessoas morreram e qual foi a causa da morte. O olhar para a população não considerava sua positividade e generalidade, era dramático e “se colocava a questão de saber o que é a população e como se poderá repovoar”[3].

“A população em Michel Foucault”. Veja aqui:

Foucault expõe como exemplo a localização da população nos escritos cameralistas e mercantilistas no século XVII: a população como elemento fundamental que condiciona os outros elementos que fortalecem o soberano e o Estado. É da população que surgem os braços à agricultura, que emerge a produtividade da colheita e mantém os cereais e produtos agrícolas a preços baixos; também é da população que surgem os braços à manufatura, de tal maneira que as importações tendem a diminuir com a alta produção manufatureira. Uma alta população tende, por sua vez, a gerar excedente de mão-de-obra, diminuir os salários e, assim, o preço das mercadorias e possibilidade de exportação, garantindo o exercício e fortalecimento do poder exercido a partir do Estado.

A população estar assim na base tanto da riqueza como do poderio do Estado é algo que só pode ocorrer, claro, se ela é enquadrada por todo um aparato regulamentar que vai impedir a emigração, atrair os imigrantes, beneficiar a natalidade, um aparato regulamentar que também vai definir quais sãos as produções úteis e exportáveis, que vai estabelecer também os objetos a serem produzidos, os meios de produzi-los, os salários também, que vai proibir o ócio e a vagabundagem. Em suma, todo um aparato que vai fazer dessa população, considerada portanto princípio, raiz, de certo modo, do poder e da riqueza do Estado, que vai garantir que essa população trabalhará como convier, onde convier e em que convier.[4]

População como força produtiva, mas desde que fosse submetida à mecanismos disciplinares de repartição, esquadrinhamento e distribuição de corpos, espaços e tempos.

A positividade da população

No século XVIII, a partir das iniciativas intelectuais dos fisiocratas, vê-se uma remontada do sentido de “população”: não se tratava mais um conjunto de súditos que, no seu acúmulo, estabeleceria um certa consistência no poder monárquico; não se tratava mais da população com alvo passivo de ordens superiores que, a partir de uma imposição de cima, os comandavam e estabeleciam suas leis, o que deveriam fazer, como deveriam fazer.

Ora, acredito que, com os fisiocratas – de uma maneira geral, com os economistas do século XVIII -, a população vai parar de aparecer como uma coleção de súditos de direito, como a coleção de vontades submetidas que devem obedecer à vontade do soberano por intermédio de regulamentos, leis, decretos, etc. Ela vai ser considerada um conjunto de processos que é preciso administrar no que têm de natural e a partir do que têm de natural.[5]

Há três maneiras que caracterizam essa nova faceta natural da população, que a retiram do olhar jurídico-político e a colocam como um objeto técnico-político de governo[6]:

  1. “Primeiramente, a população, tal como é problematizada no pensamento, mas [também] na prática governamental do século XVIII, não é a simples soma dos indivíduos que habita um território”. Não é mais um dado primeiro que as mãos do soberano irão moldar: ela depende. Depende dos meios de subsistência no território, depende das leis, dos valores morais, ela pode variar com o clima, com a intensidade do comércio, com a incidência dos impostos, etc. A população já é, aqui, vista como o resultado de uma série de variáveis que a coloca fora da relação voluntarista e direta com as ações do soberano. Se o soberano manda, há a possibilidade de se dizer o não; quando a população deixa de fazer parte deste tipo de laço, quando passa a ser vista como produto de uma série de variáveis, o não ou o sim de um indivíduo não é mais importante nem determinante para a eficiência da estratégia de poder. O trabalho sobre a população, assim, deve ser feito em toda uma série de elementos que, num primeiro momento, parecem distantes das noções mais simples e relacionadas à necessidade de se reproduzir, aumentar o número populacional, noções praticadas pelos tradicionais soberanos na relação voluntarista soberano-súdito. “Não se trata de obter a obediência dos súditos em relação à vontade do soberano, mas de atuar sobre coisas aparentemente distantes da população, mas que se sabe, por cálculo, análise e reflexão, que podem efetivamente atuar sobre a população”.
  2. “A naturalidade da população aparece de uma segunda maneira no fato de que, afinal de contas, essa população é evidentemente feita de indivíduos, de indivíduos perfeitamente diferentes uns dos outros, cujo comportamento, pelo menos dentro de certos limites, não se pode prever exatamente”. Há um elemento central e essencial no movimento que as populações seguem a partir de seus indivíduos: o desejo. O desejo enquanto atributo individual, mas como atributo, de certa maneira, natural, essencial. O desejo que movimenta, que faz agir. O que, por sua vez, está de acordo com um novo tipo de olhar para a população: não se trata de saber como o soberano deverá dizer não sobre o desejo dos indivíduos, de tal maneira que ao dizer esteja, ainda, fundado na vontade dos próprios indivíduos. O problema é saber como dizer sim! Como favorecer o desejo e seus movimentos para governar, com eficiência, a vontade geral (resultante não da repressão, mas da liberação do desejo dos indivíduos) deste novo personagem político. “Temos aí portanto a matriz de toda uma filosofia, digamos, utilitarista”, afirma Foucault. Este utilitarismo que embasou a nova prática do governo das populações.
  3. “O público, noção capital do século XVIII, é a população considerada do ponto de vista das suas opiniões, das suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, dos seus hábitos, dos seus temores, dos seus preconceitos, das suas exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da educação, das campanhas, dos convencimentos. A população é portanto tudo o que vai ser estender do arraigamento biológico pela espécie à superfície de contato oferecida pelo público”. Este é o momento da emergência da população em espaço público, da noção de democracia de massa exercida em locais superpopulosos, daqui vem a emergência dos sistemas de votos, das discussões acerca do sufrágio universal, do clima geral daquilo que hoje nós chamamos de espaço público e partir dele, da maneira como entendemos a cidadania.

A população não é simplesmente submetida, como eram os súditos. A população carrega consigo um tipo de configuração de poder que insere o governo como técnica.

Considerações finais

O governo tem como objetivo guiar, agindo sobre a conduta do outro e, acima de tudo, o governo não é concentrado numa figura. O rei pode até reinar, mas ele não é quem governa, pois o governo não passa por um quem, mas por um como. O problema político que a noção de governo procura lidar não é mais aquele dos súditos a serem punidos violentamente, mas se transfere para a população, personagem novo e múltiplo, variado, resultado de variáveis, constituído pelo mundo e alvo de regulamentações do bipoder.

Na medida e que o governo é muito maior que a soberania, que o reino, que o império, pois é formado, construído a partir de malhas de regulações, distribuído e coordenado, mas sem um coordenador concreto, centralizado, específico, na medida em que coloca formas de exercício de poder eficientes, Foucault considera que o problema político moderna está ligado à população. Assim, é necessário analisar a série segurança-população-governo e a abertura do campo denominado política.


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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.87-88.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.88.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.89.

[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.90.

[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.92.

[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.92-97.

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