Da série “A Arqueologia do Saber“.
Primeiramente, foi necessário entender o que o enunciado não era[1] para depois entender a sua função específica [2].
Agora, sabemos que o enunciado não dá um sentido específico para os signos que o constitui, não se identifica com uma frase ou uma proposição: ele está num nível mais profundo das regras gramaticais ou lógicas, já que sua existência abre possibilidades para a formação das frases e das proposições, ao mesmo tempo em que coloca o enunciado num campo de relação com outros domínios, outros objetos e outros enunciados.
O enunciado coloca unidades (enunciativas) que podem ou não conter frases, proposições ou atos de fala em relação de coexistência e coordenação, ou seja, em vez de limitá-las, abre espaço para suas potencialidades. Não se tem, portanto, um enunciado atômico, com um sentido, uma origem e uma individualidade clara, mas sim o campo de exercício da função enunciativa.
O enunciado, portanto, é um exercício, uma prática, sempre relacional.
Foucault, neste ponto do livro – terceira seção do capítulo 3 -, percebe que é necessário dar passos atrás e voltar o foco à análise discursiva. Para tanto, se pergunta, como pode o conhecimento dos enunciados ajudar no projeto de arqueologia?
São duas perguntas diretas que o autor propõe e explica:
A) “O que devemos entender, daqui pra frente, pela tarefa, inicialmente proposta, de descrever enunciados”?[3]
Para responder essa questão, é necessário pontuar tudo o que foi feito até agora. Foucault identifica como performance verbal ou performance linguística, todo conjunto de signos produzidos por uma língua; classifica como formulação o ato de botar esse conjunto de signos num material qualquer – a formulação tem um lugar e um tempo específico, assim como tem um autor a quem se imputa sua origem -; frase e proposição são conjuntos de signos reconhecidos por regras gramaticais ou lógicas; já enunciado é uma modalidade de existência própria desses conjuntos de signos: é esta modalidade que permite a correlação entre diferentes enunciados determinados, que proporciona a localização de diferentes sujeitos, que enseja a repetição.
Discurso, segundo Foucault, pode ser rapidamente definido como “conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação”[4].
Desta forma, o enunciado não se mostra como unidade elementar, aquilo que está no mesmo nível das unidades dos gramáticos ou dos filósofos analistas (a frase e o ato de linguagem, respectivamente). Isso porque
descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos (não sendo esta forçosamente gramatical nem logicamente estruturada) uma existência, e uma existência específica[5].
E não se trata de encontrar uma origem autoral ou uma ação individual que o fez aparecer, mas sim de descrever o jogo de posições que indiferentes sujeitos podem ocupar. Não há nada para se procurar no não dito, ao mesmo tempo, não se pode parar a análise na consistência dos signos, mas sim em suas regras para existência. É por isso que o enunciado é, ao mesmo tempo, “não visível e não oculto”, diz Foucault.
É difícil defender este ponto, afinal, há frases com diferentes significados, com sentidos ocultos. Tudo aquilo que não é dito faz parte, no mesmo nível, da significação daquilo que é dito (e vice-versa), temos inclusive um saber próprio do não dito (a psicanálise). Todavia, independentemente de quantos significados possam existir para uma dada frase, o enunciado se mantém o mesmo, isso porque o enunciado, para a arqueologia foucaultiana, não é uma unidade passível de interpretação semântica.
A análise do enunciado, a arqueologia, é histórica, mas não oferece sentidos. Ela se localiza no nível das condições de possibilidade, das regras de construção. Ela, desse modo, está na profundidade do dito. A análise do enunciado está na superfície porque analisa aquilo que foi dito, ao mesmo tempo em que está nas profundezas por buscar pelas regras que possibilitam a existência do dito.
A descrição do enunciado, portanto, trata de
interrogar a linguagem, não na direção a que ela remete, mas na dimensão que a produz […] se deter no momento – logo solidificado, logo envolvido no jogo do significante e significado – que determina sua existência singular e limitada [6].
B) “Como a descrição dos enunciados, assim definida, pode ajustar-se à análise das formações discursivas [já esboçados ao longo do livro]“? [7]
Para responder essa pergunta, é necessário voltar ao conceito de enunciado. O que foi definido até então?
1) O enunciado não se confunde com a frase ou a proposição, nem mesmo segue seus padrões de aceitabilidade;
2) Ele precisa de um referencial (não um objeto ou um fato, mas sim um princípio de diferenciação);
3) Ele compreende a existência de um sujeito (que não é uma consciência, mas sim uma posição);
4) Ele está anexado a um campo de coexistência (que não é um campo real, mas um campo de enunciados a serem relacionados);
5) Ele contém materialidade (que vai além de qualquer substância, mas é um status, uma possibilidade de repetição).
A formação discursiva, por sua vez, compreende um grupo de enunciados ligados entre si no nível enunciativo (portanto, não pelo nível gramatical, não pelo nível proposicional e menos ainda pelo nível psicológico das formulações). Sendo assim, pressupõe-se que será possível definir o regime geral da emergência dos objetos[8], a dispersão dos temas, todo o sistema de referenciais do discurso.
A isso, também está ligada a definição dos modos de enunciação[9], do sistema de conceitos[10], ou das estratégias possíveis para se apropriar do discurso[11]. Da mesma forma, também será mais claro a separação dos enunciados conforme seus status, com a definição do regime geral do discurso, e todos os mecanismo de uso dos enunciados.
Descrever enunciados, descrever a função enunciativa de que são portadores, analisar as condições nas quais se exerce essa função, percorrer os diferentes domínios que ela pressupõe e a maneira pela qual se articulam é tentar revelar o que se poderá individualizar como formação discursiva […] a formação discursiva é o sistema enunciativo geral ao qual obedece um grupo de performances verbais[12].
Para concluir esta análise, após definir o papel derradeiro da descrição dos enunciados, Foucault formula quatro proposições:
1) A formação discursiva permite perceber o nível específico dos enunciados, da mesma forma, a análise dos enunciados nos leva à formação discursiva. Essa relação dupla, essa via de mão dupla, não poderá resistir quando a arqueologia deixar de ser um procedimento e se tornar então uma teoria. Será necessário demarcar a ordem dedutiva.
2) O enunciado pertence à formação discursiva assim como uma frase pertence ao texto ou a proposição pertence ao conjunto dedutivo. A diferença é que enquanto a frase é regida pelas leis gramaticais e a proposição pela lógica, o enunciado é regido pela própria formação discursiva, isso porque a formação discursiva não é uma condição de possibilidade do enunciado, mas é uma lei de coexistência.
3) O sentido pleno de discurso deverá ser:
um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência[13].
4) Prática discursiva, por sua vez, não pode ser definida como o exercício individual da fala, mas sim
um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa[14].
Ao término da relação entre formação discursiva e enunciado, resta a Foucault partir para outro lado da análise arqueológica. Antes de tomar seu novo rumo, ainda tratará sobre algumas características do enunciado no discurso, na seção Raridade, Exterioridade, Acúmulo, da Arqueologia do Saber.
Referências
[1]↑ Definir o Enunciado IN: A Arqueologia do Saber: resenha detalhada. Colunas Tortas, acessado em 04/02/2016.
[2]↑ A Função Enunciativa IN: A Arqueologia do Saber: resenha detalhada. Colunas Tortas, acessado em 04/02/2016.
[3]↑ FOUCAULT, Michel. A Descrição dos Enunciados IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.130.
[4]↑ FOUCAULT, Michel. A Descrição dos Enunciados… p.131.
[5]↑ FOUCAULT, Michel. A Descrição dos Enunciados… p.132.
[6]↑ FOUCAULT, Michel. A Descrição dos Enunciados… p.136.
[7]↑ FOUCAULT, Michel. A Descrição dos Enunciados… p.139 – observação entre chaves nossa.
[8]↑ A Formação dos Objetos IN: A Arqueologia do Saber: resenha detalhada. Colunas Tortas, acessado em 04/02/2016.
[9]↑ A Formação das Modalidades Enunciativas IN: A Arqueologia do Saber: resenha detalhada. Colunas Tortas, acessado em 04/02/2016.
[10]↑ A Formação dos Conceitos IN: A Arqueologia do Saber: resenha detalhada. Colunas Tortas, acessado em 04/02/2016.
[11]↑ A Formação das Estratégias IN: A Arqueologia do Saber: resenha detalhada. Colunas Tortas, acessado em 04/02/2016.
[12]↑ FOUCAULT, Michel. A Descrição dos Enunciados… p.141-142.
[13]↑ FOUCAULT, Michel. A Descrição dos Enunciados… p.143.
[14]↑ FOUCAULT, Michel. A Descrição dos Enunciados… p.144.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.