A doença e a evolução – Doença Mental e Psicologia

Da série “Doença Mental e Psicologia“.

Michel FoucaultApós entender que existe uma metapatologia rondando tanto as patologias mentais quanto as orgânicas, Foucault admite como tarefa libertar a psicologia de qualquer método que não seja adequado às doenças mentais. O objetivo de Foucault, no segundo capítulo de Doença Mental e Psicologia, é encontrar as condições específicas que tornaram possível o status da loucura como doença mental irredutível a qualquer outra.

Para isso, é necessário entender a doença da mente como algo produtora, além de delimitadora. O que isso significa? Aqui, Foucault toma como base os princípios de observação da doença que Canguilhem trabalhava, colocando em evidência sua ação positiva ao lado da negativa. Em que se constitui a negatividade da patologia mental? No apagamento de aptidões, amnésias, ações impossíveis para a personalidade doente. No entanto, o estudo até então da patologia mental esqueceu de considerar sua dimensão positiva: “a doença apaga, mas sublinha; abole de um lado, mas é para exaltar do outro; a essência da doença não está somente no vazio criado, mas também na plenitude positiva das atividades de substituição que vem preenche-lo”[1].

No entanto, a plenitude positiva das atividades que substituem o vazio criado pela doença não estão no mesmo nível das atividades anteriormente executadas. É possível separá-las em dois tipos: 1) as funções que desapareceram após o estabelecimento da doença são de tipo complexo, ou seja, envolvem a consciência, a noção do tempo e do espaço, tensões voluntárias; enquanto as condutas que permaneceram são 2) segmentares, simples, dissociadas, incoerentes.

A síntese complexa do diálogo é substituída pelo monologo fragmentário; a sintaxe através da qual se constitui um sentido é quebrada, e só subsistem elementos verbais dos quais escapam sentidos ambíguos, polimorfos e lábeis; a coerência espaço-temporal que se ordena no aqui e agora desmoronou-se, e só subsiste um caos de aqui sucessivos e de instantes insulares. Os fenômenos positivos da doença se opõem aos negativos, como o simples ao complexo.[2]

A patologia, inclusive, exagera os fenômenos estáveis, que são aqueles conservados pela doença, que contém solidez psicológica superior à instabilidade das estruturas abolidas, como a intencionalidade voluntária ou as condutas intersubjetivas, sempre atrapalhadas pelo sono, sonhos e sugestões hipnóticas. Ainda, as funções acentuadas pela patologia são as mais involuntárias, desta forma, a passividade do doente se expressa de tal forma que ele não consegue mais articular uma frase como resposta a uma pergunta, mas somente repetir as últimas palavras do interlocutor, toda sua iniciativa é substituída por um automatismo de repetição. “Digamos, então, resumindo, que a doença suprime as funções complexas, instáveis e voluntárias, exaltando as funções simples, estáveis e automáticas”[3].

Desta forma, e utilizando a psicologia de Jackson e Freud como referência para crítica, quando entendemos que a doença tem sua negatividade e positividade, quando ela apaga algumas funções para dar mais atenção a outras, quando suprime o complexo para dar lugar ao simples, quando anula o variável para possibilitar o reinado do estável, precisamos também observar a trajetória em que essas supressões e conservações mantém sua dinâmica. O caminho observado tem como guia a própria natureza (mas inversa), na medida em que a evolução da personalidade se dá através de uma linha progressiva de supressão de condutas arcaicas e obtenção de condutas maduras, pois a doença traça esse caminho ao contrário.

Ou seja, seria o papel da patologia guiar a personalidade de volta para patamares anteriores de sua evolução (lembremos que, para Freud, há um caminho natural no desenvolvimento psicossexual de fases oral, anal, fálica, um período latente e a fase genital). Desta forma, a doença não é como um mal aleatório que atinge indiscriminadamente as funções psicológicas do sujeito: ela tem um caminho a percorrer e, assim, objetos específicos para atingir. Há um caminho em seu desenvolvimento em que é preciso saber ler:

A doença não é uma essência contra a natureza, ela é a própria natureza, mas num processo invertido; a história natural da doença só tem que restabelecer o curso da história natural do organismo são. Mas nesta lógica única, cada doença conservará seu perfil singular; cada entidade nosográfica encontrará seu lugar, e seu conteúdo será definido pelo ponto onde pára o trabalho da dissociação; as diferenças de essência entre as doenças, é preciso preferir a análise segundo o grau de profundidade da deterioração, e o sentido de uma doença poderá ser definido pela estiagem em que se estabiliza o processo de regressão.[4]

C. Jackson e Freud deram extrema importância para a evolução em psicopatologia. A evolução da personalidade sadia e a regressão da personalidade doente. Em Freud, destaca Foucault, é evidente o papel chave que esta interpretação ocupa. É possível descrever a evolução da psique da criança tendo como contraposto a própria patologia mental do adulto:

  1. Na primeira fase, denominada como fase oral, a criança tem nos alimentos seus primeiros objetos de manipulação. O instrumento de prazer é a boca, que toca o peito da mãe, que envolve a comida e que, frequentemente, é alvo de brinquedos que são colocados sem qualquer preocupação. É nessa fase em que o desmame deve acontecer e a ligação quase biológica com a mãe se desfaz para dar lugar a uma relação entre eu e o outro;
  2. A segunda fase, chamada de anal, acontece com o desenvolvimento da dentição e da musculatura. A criança pode dominar seus objetos e, ao mesmo tempo, precisa dominar suas funções: é aqui em que as fezes se tornam objeto de manipulação, fase em que a criança precisa controlar a saída das fezes, determinar quando a evacuação é possível e quando deve ser evitada. Melanie Klein diz que nesta fase há o aparecimento dos objetos “bons” e “maus”, ambivalentes em sua definição e é nesta fase que cristaliza as síndromes obsessivas;
  3. A terceira fase, fálica, é ligada às primeiras atividades eróticas, já num momento em que a criança consegue se identificar no espelho, entender os limites de seu corpo e, assim, transformá-lo em objeto sexual privilegiado. Aqui, a integridade corporal assume maior importância na vida da criança e seus medos da castração podem desequilibrar essa corda já fina de seu desenvolvimento psicossexual;
  4. A última fase envolve a escolha objetal. Finalmente, a criança resolve seu complexo de édipo, que implica em uma fixação heterossexual. O ciúme da mãe é superado pela lei da cultura que impede sua expressão como tal, a rivalidade com o pai é superada pela castração e a criança tem sua psique constituída completamente.

Mas o mecanismo de apontamento da doença depende totalmente desta linha do tempo, o que a faz ser por si uma idealidade da doença. “Todo estágio libidinal é uma estrutura patológica virtual. A neurose é uma arqueologia espontânea da libido”[5].

Dito isso, podemos detalhar as condutas complexas e simples, já ditas acima. Foucault toma como exemplo o psicastênico: acreditar na realidade que o cerca é uma conduta difícil, mas o que é esse difícil? O difícil é uma conduta que, apesar de parecer uma só, apesar de parecer, portanto, simples, é a superposição de várias condutas. Foucault relata a ação de contar sobre uma caçada para amigos:

Matar um animal na caça é uma conduta; contar, depois do fato, que se matou um animal, é uma outra conduta. Mas no momento em que se espreita, em que se mata, contar-se a si mesmo que se mata, que se persegue, que se espreita, para poder, em seguida, contar a epopéia aos outros; ter simultaneamente a conduta real da caça e a virtual do relato, é uma dupla operação, muito mais complicada do que cada uma das duas outras, e que só é mais simples aparentemente: é a conduta do presente, germe de todas as condutas temporais, na qual se superpõem e se imbricam o gesto atual e a consciência de que este gesto terá um futuro, isto é, que mais tarde poder-se-á narrá-lo como um acontecimento passado.[6]

A doença, ao tornar o doente passivo, ao reforçar as condutas estáveis e manter sua simplicidade, o impede de estabelecer diálogos. A dualidade do diálogo envolve a palavra dita por si e a interpretação do outro sobre a palavra, portanto, uma posição dupla de dizer (e isso enquanto se pensa no que é dito e que, portanto, não está acessível concretamente de imediato, mas somente num mundo distante) e de ser ouvido e entendido, portanto, de dizer algo que pode ser entendido. Essa troca simples de palavras envolve a crença no passado, engajamento com o futuro e uma certa sincronia entre os pontos de vista.

A interpretação evolucionista da patologia mental, portanto, indica a perda de certas condutas que foram conseguidas devido à própria evolução da sociedade (e do desenvolvimento individual psicossexual), as substituindo por condutas arcaicas. Foucault nos traz três exemplos[7]:

  1. O diálogo, identificado como forma suprema de evolução da linguagem, é substituído pelo monólogo, pelo balbucio de frases soltas em que o sujeito conta a si próprio ou a um interlocutor imaginário suas ações. É demasiado difícil agir sob o olhar dos outros e é por isso que apresentam tiques, mímicas e mioclonias diversas quando observados;
  2. Perda do domínio do universo simbólico, ou seja, o sujeito é corrompido pelo delírio e todo tipo de perseguição começa a brotar de seu cotidiano, já que os símbolos fundamentais de rituais cotidianos, como o sorriso de um cumprimento, passam a ter significados enigmáticos;
  3. Patologia da crença: na medida em que o mundo deixar de ser consistente e passa a ser recheado de delírios e alucinações, a patologia se parece como uma quebra da crença básica garantidora das relações inter-humanas. O doente, vai dizer essa interpretação psicológica, é regressado a formas arcaicas da crença, num momento antes da solidariedade comunal que possibilita a estabilidade dos símbolos e criação de um critério da verdade.

São, assim, duas possibilidades de se entender o sujeito: ou nos rendemos a interpretação jacksoniana e consideramos que ele é feito de camadas e, quando a doença ataca o cérebro, uma dessas camadas é suprimida e a nova personalidade é o resultado da psique do sujeito menos a camada suprimida; ou extrapolamos esta interpretação para indicar que a camada suprimida não só foi subtraída da psique, mas gerou um tipo qualitativamente diferente, pois não existe desintegração pura na doença, pois há formação de condutas, a partir de um organismo que busca o equilíbrio perturbado.

Admitindo a segunda opção, a doença deixa de ser negatividade e passa a ser (também) positividade. “Então, não se trata mais de personalidades arcaicas; é preciso admitir a especificidade da personalidade mórbida; a estrutura patológica do psiquismo não é originária; é rigorosamente original”[8].

Se, ao mesmo tempo, é inútil dizer que o homem volta a ser criança quando doente, não é possível desconsiderar que ele de fato tenha condutas análogas a de uma criança. A diferença posta na crítica de Foucault a essa tipo específico de interpretação da patologia mental está no fato de que essa conduta observável não pode ser tida como um regresso a uma idade anterior. O homem não retorna ao passado, somente conduz suas práticas de maneira análoga, ou seja, a regressão só deve ser vista como um aspecto descritivo da doença, não como uma dinâmica interna do doente.

Após a crítica, Foucault indica que “Uma descrição estrutural da doença deveria, então, para cada síndrome, analisar os sinais positivos e negativos, isto é, detalhar as estruturas abolidas e as estruturas realçadas. Não significaria explicar as formas patológicas, mas somente colocá-las numa perspectiva que tornasse coerentes e compreensíveis os fatos de regressão individual ou social relevados por Freud e Janet”[9].

A título de exemplo, a paranoia precisaria de uma explicação de funções suprimidas e conservadas. Ela, portanto, como distúrbio geral do humor, libera uma estrutura passional que se configura como exagero de condutas constumeiras. Uma etapa adiante, já com estados oniróides, a consciência passa a ser afetada e a lógica do universo simbólico, suprimida, gerando alucinações e delírios profundos.

Foucault ainda identifica duas insuficiências na explicação psicológica tratada no capítulo agora em foco:

  • A interpretação com base na evolução da personalidade se esquece de descrever a organização própria da personalidade doente, afinal, tirando no caso da demência, ela nunca desaparece completamente. Como a regressão não é feita de elementos dispersos, mas sim de elementos específicos em etapas do desenvolvimento psicossexual; nem é resultado de um retorno cronológico da personalidade, já que a personalidade não regressa, mas somente há modificação da sucessão das condutas, então ainda existe um ponto cego na explicação: falta de explicação das estruturas originadas através da doença;
  • A análise regressiva não explica a origem da doença: ela descreve a regressão, mas sem explicar a doença em particular, sem explicar o sintoma específico, o tema específico dos sonhos do doente, os delírios com temáticos próprias que se repetem, enfim, a doença se expressa somente como virtualidade arrancada do desenvolvimento psicossexual. Para responder essas questões colocadas acima, a análise regressiva precisa da avaliação da histórica individual do doente.

Desta forma, é necessário caminhar de uma análise evolutiva e estrutural para uma análise significativa e histórica, segundo a própria vida do indivíduo em sua particularidade.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Traduzido por Lilian Rose Shalders. Título original: Maladie mentale et psychologie (Presses Universitaires de France). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.16.

[2] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.17.

[3] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.17.

[4] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.18.

[5] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.20.

[6] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.21.

[7] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.22-23.

[8] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.24.

[9] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.24.

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