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Introdução
O dispositivo de racialidade construído no Brasil ao longo de sua história desde o período de escravização foi responsável, também, por tornar o sujeito negro um receptáculo da civilidade. Um recipiente vazio que precisa da civilidade para se tornar um cidadão, mesmo que sua cidadania seja indesejada no período pós-abolição.
Após o fim da escravização, o contingente de pessoas negras foi deixado à sua própria sorte por meio de um descaso específico, por meio de um deixar morrer singular produzido pelo Estado brasileiro a partir de uma estratégia, nos termos de Foucault, biopolítica.
O objetivo deste artigo é descrever o processo de epistemicídio negro no Brasil pós-abolição a partir da tese A construção do outro como não-ser como fundamento do ser de Sueli Carneiro.
O dispositivo da racialidade
Sueli Carneiro iniciar suas reflexões sobre a situação negra pós-abolição com o entendimento de que o pensamento de época relacionado às pessoas negras envolvia a tentativa de dirigi-los, de torná-los civilizados na medida em que eram considerados uma massa inculta.
Diante de quadro de insuficiência cultural crônica, a presença maciça de negros colocou, em especial diante da inevitabilidade da abolição da escravidão, o problema do impacto dessa presença sobre as possibilidades civilizatórias do país (CARNEIRO, 2005, p. 106).
Ou seja, a escola foi o aparelho ideológico de Estado designado para interpelar os sujeitos negros em cidadãos integrados com a sociedade moderna (e racista) nascente. O aparelho de Estado é responsável por reproduzir as relações sociais de produção e, segundo Louis Althusser:
A reprodução da força de trabalho exige não só uma reprodução da qualificação desta, mas, ao mesmo tempo, uma reprodução da submissão desta às regras da ordem estabelecida, isto é, uma reprodução da submissão desta à ideologia dominante para os operários e uma reprodução da capacidade para manejar bem a ideologia dominante para os agentes da exploração e da repressão, a fim de que possam assegurar também, “pela palavra”, a dominação da classe dominante (ALTHUSSER, 1980, pp. 21-22).
É possível estender o entendimento de classe proposto por Althusser e compreender que ele também reproduz relações sociais de produção baseadas em raça/etnia. Ao mesmo tempo, Sueli Carneiro propõe que e trata de um dispositivo da racialidade, ou seja, ao utilizar a noção de Michel Foucault, entende-se que dispositivo é
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (FOUCAULT, 2000, p. 244.).
Um dispositivo, ao cruzar relações de poder e discursos, constitui subjetividades. O dispositivo da racialidade, portanto, é aquele que, por meio de relações de poder (como as técnicas de punição de frequentadores de rodas de capoeira, ou as técnicas de segregação de locais para negros e para brancos) e discursos (como o racismo científico) produz a subjetividade negra e a branca, produz, portanto, a própria divisão das raças estabelecendo uma hierarquia situada no centro da ordem social brasileira.
O aparelho escolar, assim, além de ter seu papel enquanto aparelho, também é parte do dispositivo da racialidade que trabalha
na reprodução de uma concepção de sociedade ditada pelas elites econômicas, intelectuais e políticas do país. Nesta concepção, raça e cultura são categorias estruturais que determinam hierarquias que só podem ser plenamente legitimadas, se puderem – por meio da repetição sistemática e internalização de certos paradigmas (dos quais as teorias racistas são decorrentes) -, instituir e naturalizar em uns, uma consciência de superioridade, e em outros, uma consciência de inferioridade (CARNEIRO, 2005, p. 106).
Ou seja, cabe ao aparelho escolar reproduzir uma sociedade de classes racista.
A Inferioridade
O discurso pós-abolição estabelecia uma diferença entre os africanos do centro e sul da africa, com aqueles do norte, em especial do Egito. Por ser inegável a contribuição egípcia ao patrimônio cultural da humanidade, o raciocínio vigente tomava o produto como reflexo da essência: os egípcios seriam, então, povos distintos dos negros, um ramo da raça branca que poderia ser vista justamente em seu potencial de civilização.
Nesta divisão, o povo negro que foi capturado e enviado ao Brasil eram parte da raça negra de facto, ou seja, daqueles que, sem nenhuma ligação com a raça branca, não eram capazes de civilização.
Portanto, verdadeiros negros são incapazes de civilização e, se civilização houve na África, não pode ser atribuída aos povos negros e sim a um ramo da raça branca. O dispositivo de racialidade, assim, demarca e distribui de forma maniqueísta o bem e o mal entre as raças. Tal concepção buscará abarcar toda a experiência negra africana ou da diáspora e relativizar experiências diaspóricas, contrastantes com os princípios irremovíveis que asseguram a incapacidade crônica de africanos e seus descendentes para civilização, sua menoridade e necessidade de tutela (CARNEIRO, 2005, p. 107).
A menoridade e necessidade de tutela eram conclusões frequentes a se tomar tomando como base o racismo da época, na medida em que negros eram entendidos como crianças, como seres no estágio infantil da humanidade, como abobados ou violentos, ou seja, crianças sempre dispostas ao domínio do instinto animal, distantes da vida civil e da educação da burguesia em ascenção ou da corte em decadência.
A desmoralização cultural do Outro realiza a um só tempo a superlativização do Mesmo e a negação do Outro. Daí o estereótipo do negro “verdadeiro”: alegre, brincalhão, infantil, imprevidente, festeiro etc, o negro de verdade! Destinado ao entretenimento do branco. Modelo que, na busca de aceitabilidade, muitos reproduzem (CARNEIRO, 2005, p. 108).
Deste entendimento da infância há uma consequência ao entendimento do negro enquanto animal. A distância do negro com o branco que o torna menos humano, inferior, é a mesma que o aproxima com os animais. A animalidade está relacionada com a resposta dos instintos, com sua manifestação rápida que não dá lugar aquilo que poderia ser uma reflexão civilizada.
Utilizando Pierre Bourdieu como base para compreender esta consideração do pós-abolição, é possível dizer que a animalidade estava contida no senso prático fruto de um habitus fora dos campos legítimos de sociabilidade na sociedade racista. Fruto da falta de integração com estes campos que não os queriam. Ou seja, a própria indesejabilidade do negro como cidadão era produtora daquilo que parecia ser a prova de sua animalidade. Desta forma, a animalidade, na verdade, era branca, na medida em que excluia o sujeito negro da socialização e naturalizava sua inadequação gerada desde cedo por esta exclusão, além, é claro, do próprio ato de captura e escravização desde África.
A animalização será um atributo inerente a uma incompletude humana que se manifesta mais na resposta primeira dos instintos, do que nas exigências de uma racionalidade condutora da ação. Assim Rodrigues reitera Letouneau, para quem: “Para o negro da África, abandonado a si mesmo e vivendo segundo a própria natureza, o impulso dominante parte menos freqüentemente do cérebro do que do estômago. Passar de tal fase de desenvolvimento àquela que caracteriza as nações civis modernas não é coisa por certo factível em um triênio de vida civil: não um triênio, mas séculos e séculos são precisos para que os dotes sociais, adquiridos pelos afro-americanos em seu contato íntimo com os brancos, transmitindo-se de geração em geração, se tornem caracteres da raça negra na América. Na escala da civilização, os afro-americanos ocupam ainda um dos últimos degraus, a raça anglo-saxônica um dos primeiros, senão o primeiro: os americanos têm plena consciência de tal fato e não se podem resolver a tratar de igual para igual com uma gente tão inferior a eles, do mesmo modo que o adulto não trata a criança de igual para igual, nem as classes superiores às inferiores.” (Rodrigues, 1978, p. 269 IN CARNEIRO, 2005, p. 108).
As pessoas negras, no Brasil, são entendidas, então, como infiltradas, como um problema na emergência de uma nação brasileira sob a égide do projeto civilizacional europeu.
Considerações finais
Num contexto em que era patente a presença de Luiz Gama, os irmãos Rebouças, Teodoro Sampaio, Machado de Assis, Juliano Moreira, Mário de Andrade, Cruz e Souza, Lima Barreto e Machado de Assis, como lembra Sueli Carneiro, o entendimento de uma insuficiência civilizatória negra era dominante. Estes exemplos eram amostras da eficiência de uma educação que poderia levar negros a assumirem postos de destaque na sociedade, mas, no olhar sobre o negro, ainda era vigente a essencialização de sua inferioridade. Os exemplares que fogem da regra, assim, não alteram a regra, na medida em que esta regra seria marcada na própria essência biológica.
O discurso sobre a essência inferior negra que produz sujeitos negros inferiorizados retirou, também, a possibilidade de uma boa educação para pessoas negras, destinando escolas de baixa qualidade ou a ausência de escolas para territórios negros.
Em seu processo de desenvolvimento e de produção, de conseqüências nos índices educacionais dos diferentes grupos raciais, o epistemicídio assegura que o gráfico da educação, desagregada por cor, seja duas paralelas sem projeção de se aproximarem no tempo. Assiste-se no pós-abolição a constituição de um padrão de desigualdade entre negros e brancos, consistente e permanente por 80 anos do século passado (CARNEIRO, 2005, p. 110).
Quando as classes altas e médias puderam pagar por escolas privadas que paulatinamente cresciam em número, as escolas de baixa estrutura tendiam a ser destinadas para os alunos pobres e negros. O epistemicídio, assim, acontece na própria exclusão do negro do processo educacional de integração social que tem como consequência um habitus distinto e uma péssima disciplinarização pelos mecanismos que funcionam na esfera do trabalho.
Referências
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.
CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo – USP. Tese de Doutorado, 2005.
FOUCAULT, M. Sobre a História da sexualidade. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 5a ed., 1978.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.