Texto de Fabiana Mathias, publicado originalmente n’O fato e a história.
A organização familiar e o próprio conceito de família, não só no Brasil, mas em muitos territórios do mundo como França, Rússia, EUA, têm sido motivo de muitas lutas e discussões, geralmente, dominados por discursos religiosos que buscam essencialmente manter seu poder sobre seus fiéis e criar um mundo de negação à realidade para manter seus dogmas, poder financeiro e controle vivos.
A partir da segunda metade do século XX, novos pensamentos políticos propunham questionar a hegemonia de um único formato de família e relações afetivas e sexuais, a discussão deixou de ser um conto constrangido sobre algum parente obscuro ou tornar-se piada para mais abertamente ser criticado. A discussão tornou-se mais plural e dividiu-se entre aqueles que defendem que família é uma instituição formada por homem, mulher e geralmente de sua prole, os que acreditam que a família pode ser apenas organizada por relações afetivas entre seres humanos que não depende de laços de sangue, outros que a família pode ser o conjunto de pessoas afetivamente e sexualmente ligadas e independentes das combinações de gênero, com ou sem filhos, ainda há os que defendem que a família independe de gênero e número de pessoas afetivamente e sexualmente ligadas, como no caso dos poliamoristas, e ainda, não podemos esquecer, daqueles que acreditam que qualquer forma de família está sempre pautada pela opressão. Como afirmam Simionato e Oliveira (2003):
“Em todo o mundo, o conceito de família nuclear e a instituição casamento intimamente ligada à família, passaram por transformações. A expressão mais marcante dessas transformações ocorreu no final da década de 60: cresceu o número de separações e divórcios, a religião foi perdendo sua força, não mais conseguindo segurar casamentos com relações insatisfatórias. A igualdade passou a ser um pressuposto em muitas relações matrimoniais. (SIMIONATO; OLIVEIRA, 2003, p. 60)”
Fica a dúvida: como pode um direito humano ser discutido sob o critério de filosofias que se embasam em seres invisíveis, dogmas inatingíveis, planos superiores de duas ou três religiões que se propõem a ser a verdade universal? Torna-se bastante problemático, pois falamos de pessoas, tratamos de algo material quando discutimos afetividade, direito ao cuidado, relações humanas e sexualidade, estamos pautando com isto a organização de vidas e o empoderamento de direitos, ou seja, condições e direitos mínimos para pessoas que participam de qualquer sociedade.
Participar de uma sociedade, por mais que o discurso liberal proponha o contrário, não se trata de cumprir com suas missões tarifárias, seu quinhão no trabalho assalariado e na alienação, adquirir alguns bens necessários e outros completamente inúteis. O fazer parte é também tomar posse daquilo que é comum, é uma necessidade humana universal, é uma reação à alienação, por isso tão impedida e temida. Entretanto, esvaziou-se de seu real conceito e prática, como forma de selecionar alguns, reificando-os, e manter o poder hegemônico de outros. De modo simplificado podemos compreender essa reificação como:
a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo e das coisas. A reificação é um caso ‘especial’ de alienação, sua forma mais radical e generalizada, característica da moderna sociedade capitalista. (PETROVIC, 2001, p.314)
Há muito tempo, a reificação é um instrumento ideológico de várias instituições, como algumas igrejas e suas religiões, a exemplo das igrejas cristãs, ou outras de mesmo fundo dogmático. Estas contribuíram ao aprimoramento da reificação. Digo, se pensarmos que cada religião propõe de um modo ou outro o controle do corpo, a docilização do corpo como diria Michel Foucault. Seja pelo discurso da libertação do corpo, uma prática que leva a dor e ao sacrifício, além de por inúmeras formas de viver que são uma prisão, seja pelo discurso do Ser Supremo que vigia a todos, sofreu por nós, nos criou, um deus masculino capaz de criar vida e que tem posse sobre nossos corpos. Tornamo-nos objetos de algo imaterial, algo etéreo, intocável e inatingível, por isso, dificilmente questionável por aqueles que se tornam cegos e viciados em estar sobre seu controle.
Para Foucault, em sua obra Vigiar e Punir “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.” (FOUCAULT). Portanto, nada mais útil ao controle religioso que seres esvaziados de desejos ou pulsões, formatados apenas para necessidades básicas humanas e “aperfeiçoados” para pensar e agir de acordo com uma série de dogmas intermináveis. Poderia esta frase enfim ser aplicada a qualquer outra máquina de repressão de nossa história como as ditaduras militares, a escravidão, o nazismo, o fascismo, mas hoje, no que se refere à resistência a outro olhar sobre o direito as múltiplas visões e práticas de família, a religião caminha de mãos dadas com essas outras formas de controle e produção de senso comum citadas anteriormente.
Entretanto, por mais que seja inegável o direito às várias formas de famílias apropriarem-se dos direitos que por tanto tempo lhes é negado, é necessário visitar alguns conceitos e críticas sobre a família, seu sistema e história, analisando como esta pode ser reprodutora de opressão.
Na Idade Média, tanto a mulher quanto a criança, como nos traz Ariès (1978), eram tidos em sociedade como seres vazios, instrumentos do cotidiano, que quando atingiam um determinado período de sua vida, da fertilidade e lida doméstica para a mulher, e da capacidade física para constituir força de trabalho junto ao mundo adulto no caso da criança, entravam em outra etapa utilitária apenas, nunca desligada do poder do homem dentro da família, o poder patriarcal, que era apenas substituído pelo poder igualmente controlador no meio do trabalho, que era do patrão, que não à toa possuía, e ainda possui este nome. Com o início da modernidade é que a criança receberá uma atenção diferente no que consta sua formação, a qual estará atrelada a sua condição socioeconômica, pois às crianças mais pobres estava destinado, no período de formação do capitalismo, e ainda hoje em muitos territórios do mundo, trabalhar sob as mesmas condições que os adultos.
Engels (1981) ainda apresenta um elemento muito importante para entender na história a relação da criança e da mulher dentro da família:
Os traços essenciais são a incorporação dos escravos e o domínio paterno; por isso a família romana é o tipo perfeito dessa forma de família. Em sua origem, a palavra família não significa o ideal — mistura de sentimentalismo e dissenções domésticas — do filisteu de nossa época; — a princípio, entre os romanos, não se aplicava sequer ao par de cônjuges e aos seus filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família “id est patrimonium” (isto é, herança) era transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles. (ENGELS, 1981, p.61)
Criança, mulher, terras, escravos, faziam parte um mesmo sistema de poder, onde alguns seres humanos possuíam o mesmo caráter de objeto, de bem material, uma propriedade, como o boi que pastava e o milho que crescia. Essa família, de modelo patriarcal, resiste ainda hoje sobre um véu de modernidade e democracia que permanece, embora não seja universal, mesmo nas tentativas de inovação é o modelo de família patriarcal que acaba prevalecendo. É o que revela a pesquisa Mapa da Violência (2012), quando menciona os principais agressores em casos de violência a mulher, segundo a faixa etária:
Os pais são os principais responsáveis pelos incidentes violentos até os 14 anos de idade das vítimas. Nas idades iniciais, até os 4 anos, destaca-se sensivelmente a mãe. A partir dos 10 anos, prepondera a figura paterna.
Esse papel paterno vai sendo substituído progressivamente pelo cônjuge/ou namorado (ou os respectivos ex), que preponderam sensivelmente a partir dos 20 anos da mulher até os 59 anos. A partir dos 60 anos, são o filhos que assumem o lugar preponderante nessa violência contra a mulher. (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2012, p.15)
As formas de controle, muitas vezes justificadas pelo discurso de respeito à cultura, são apenas modos de marcar mulheres, no caso as filhas, namoradas, ou ainda, esposas como propriedades, como é o caso da extirpação clitoriana, o culto à virgindade, tido como pureza de caráter da mulher por muitas religiões, assassinato da mulher pela falta de pagamento do dote à família do marido, a seleção pré-natal do sexo, os assassinatos em caso de separação, entre outras violências estão todas ligadas à lógica de que a mulher é propriedade do marido e como objeto que este possui pode ele dispor como bem quiser.
Na história, a herança geralmente era obtida por filhos do sexo masculino e, em sua maioria, era a “criança mulher” destinada ao casamento, portanto, despesa com dote ou trabalho braçal doméstico apenas, e a “criança menino” destinada a levar adiante os bens ou ao menos o nome da família, obviamente, realidade daquelas crianças que fizessem parte de uma família com o mínimo de posses. Atualmente, a criança e ainda é propriedade e projeto de uma família, para além de seus desejos pessoais, e está exposta a violência advinda essencialmente da família. No Brasil, segundo a pesquisa Mapa da Violência (2012), numa mostra de 38.036 casos de violência a crianças e jovens de 1 a 19 anos de idades, entre pessoas próximas ou da família, 7.657 destes casos a violência foi produzida pela mãe ou madrasta e em 7.234 casos foi produzida pelo pai ou padrasto. Embora haja certa diferença nos números das mulheres agressoras e homens dentro da família, verifica-se a possibilidade de que algumas destas mães sejam “mães solteiras”, por isso, o número é um pouco mais expressivo, apesar de não ficar claro no estudo.
Na história presente, possuímos na prática muitas realidades de famílias e isso independe do “desejo divino”, preceitos religiosos, fobias, entre outros. Contudo, poucas famílias possuem o mesmo poder e direitos que o modelo menos questionado e hegemônico que é o da família nuclear, a qual assume o poder centrado no homem e na reprodução da lógica de propriedade da criança e da mulher como posses, ou seja, apresenta-se como a expressão mais violenta de relacionamento entre as pessoas, e quando reproduz essa lógica, conduz os envolvidos à fatalidade.
Referências:
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
PETROVIC, Gajo. Reificação.In: Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
SIMIONATO, Maria Aparecida W.; OLIVEIRA, Raquel Gusmão. Funções e Transformações da Família Através da História. I Encontro Paranaense de Psicopedagogia – ABPppr – nov./2003, p. 57-66.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: Os novos padrões da violência homicida no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2011.
Entre em nosso canal no telegram: https://t.me/colunastortas.
O Colunas Tortas é uma proto-revista eletrônica cujo objetivo é promover a divulgação e a popularização de autores de filosofia e sociologia contemporânea, sempre buscando manter um debate de alto nível – e em uma linguagem acessível – com os leitores.
Nietzsche, Foucault, Cioran, Marx, Bourdieu, Deleuze, Bauman: sempre procuramos tratar de autores contemporâneos e seus influenciadores, levando-os para fora da academia, a fim de que possamos pensar melhor o nosso presente e entendê-lo.
2 Comentários