A felicidade é o objetivo a ser alcançado por toda humanidade em toda história, mas é, ao mesmo tempo, um objetivo elástico, plástico, multiforme, que tem suas raízes nas condições econômicas, sociais e culturais de cada sociedade em cada época específica que é possível subdividi-la.
A avaliação da felicidade, sendo assim, é uma movimento que acontece dos limite de uma sociedade para dentro, que nevaga das fronteiras para o centro, que não pode ser determinada de fora por critérios universais ou ahistóricos, afirma Zygmunt Bauman (2008).
Na verdade, se o povo A passou sua vida em um ambiente sociocultural diferente daquele em que viveu o povo B, seria inútil ou arrogante afirmar que A ou B era “mais feliz” (BAUMAN, 2008, s.p.).
Claude Lévi-Strauss, nos anos 60, assinalava o etnocentrismo nas leituras antropológicas de sua época, que mobilizavam conceitos ocidentais para compreender o funcionamento das sociedades indígenas. Indo adiante, é possível reconhecer um senso prático – nos termos de Pierre Bourdieu – ingênuo ocidental, que move inconscientemente uma forma totalizante de análise das sociedades não ocidentais a partir dos critérios das sociedades ocidentais.
Os sentimentos de felicidade ou sua ausência derivam de esperanças e expectativas, assim como de hábitos aprendidos, e tudo isso tende a diferir de um ambiente social para outro. Assim, uma comida saborosa apreciada pelo povo A pode ser considerada repulsiva e venenosa pelo povo B (BAUMAN, 2008, s.p.).
Esta observação, apesar de rápida, não é simples: a diferença entre sociedades que consideram ou não uma comida saborosa não está pautada na subjetividades dos participantes de cada sociedade, pois esta avaliação não é subjetiva. A diferença de uma mesma comida considerada saborosa ou não em sociedades diferentes testemunha acerca da própria cultura, ou seja, acerca das bases que permitem a emergência de um conjunto de produtos culturais conhecidos e reconhecidos como desejados e que, mesmo que alguns indivíduos subjetivamente os rejeitem, ainda serão produtos de desejo por inúmeros fatores que ultrapassam o mero gosto.
Permanecendo no exemplo de Bauman, o que está em jogo não é o sabor da comida ou a avaliação individual sobre um sabor. O que está em jogo é o alimento, seja lá qual for seu sabor, estar inserido num conjunto de alimentos desejados por inúmeros fatores que podem ser econômicos, políticos, ritualísticos, sociais e culturais.
Agora, para realizar o salto necessário ao conceito de felicidade, o que está em jogo não é a percepção individual sobre a felicidade de um ou outro indivíduo. Esta percepção é objetivamente subordinada à possibilidade que a própria cultura fornece aos indivíduos ao constituí-los. O que está em jogo é a própria construção de uma felicidade possível dentro de uma sociedade de consumidores. Esta construção fornece bases para que um indivíduo ou outro possa, num dado momento da vida, se dizer feliz ou não.
É deste descompasso que emerge uma diferença de avaliação que é, também, geracional, um descompasso cognitivo de entendimento da felicidade quando avaliada por critérios da modernidade sólida no bojo da modernidade líquida:
As avaliações que se ouve ou se lê sobre as relativas vantagens (freqüentes) e desvantagens (raras) da capacidade da sociedade de consumidores de gerar felicidade são, portanto, desprovidas de valor cognitivo (exceto quando tratadas como insights dos valores declarados ou implícitos de seus autores), de modo que é bom evitar as avaliações comparativas. Em vez disso, deve-se concentrar nos dados que possam lançar alguma luz sobre a capacidade dessa sociedade de cumprir a promessa que ela mesma faz – em outras palavras, em julgar seu desempenho pelos valores que ela própria promove ao mesmo tempo em que promete facilitar a aquisição dos mesmos (BAUMAN, 2008, s.p.).
A felicidade, na modernidade líquida, é uma promessa ao presente. É uma promessa sobre um modo de vida regido por um tempo pontilhista que, a cada instante da vida, a cada momento da vida, está lá para ser satisfeita. A sociedade dos consumidores promete uma felicidade terrena, imediata e repetível no ato do consumo. “Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua” (BAUMAN, 2008, s.p.). Na medida em que é movida pelo consumo, a sociedade líquido-moderna não tolera a infelicidade, é a primeira sociedade a recusá-la e puni-la.
Entretanto, quando é feita a pergunta sobre a felicidade na contemporaneidade, a recusa em admitir a infelicidade se mostra como elemento de constituição do sujeito sob a forma individual do consumidor. Na medida em que o princípio do consumo envolve a impossibilidade de sua plena satisfação, pois é assim que a cultura do consumo constroi a base para nosso entendimento do mundo, a infelicidade é de responsabilidade individual, enquanto a felicidade disposta no conjunto de bens de consumo que se atualizam a cada novo instante é atributo da própria sociedade de consumo.
O aumento da renda, numa sociedade de consumo, não implica em aumento de felicidade, assim como o aumento de consumo também não implica em tal sucesso. A satisfação no consumo nunca é plena na medida em que a ausência de um tempo de longa duração é a afirmação do imediato a cada instante e, no imediato, o consumo de determinados bens concretos de consumo implica no não consumo de diversos outros.
O consumo é um buraco vazio de dimensões estratosféricas que nunca será completo.
O argumento apresentado pelo consumo crescente ao pleitear o status de estrada real para a maior felicidade de um número cada vez maior de pessoas ainda não foi comprovado, e muito menos encerrado. O caso permanece em aberto. E à medida que os fatos relevantes são estudados, as evidências em favor do queixoso se tornam mais dúbias e pouco numerosas (BAUMAN, 2008, s.p.).
A felicidade tende a ser uma promessa vazia e, justamente por isso, colocada como elemento de responsabilidade individual.
Com a continuação do julgamento, as evidências em contrário se acumulam, provando, ou pelo menos indicando fortemente, que, em oposição às alegações do queixoso, uma economia orientada para o consumo promove ativamente a deslealdade, solapa a confiança e aprofunda o sentimento de insegurança, tornando-se ela própria uma fonte do medo que promete curar ou dispersar – o medo que satura a vida líquido-moderna e é a causa principal da variedade líquido-moderna de infelicidade (BAUMAN, 2008, s.p.).
Por fim, é a própria vida voltada para o consumo que suscita os medos que a modernidade líquida condena e insere como responsabilidade dos próprios indivíduos dar conta das manifestações concretas de infelicidade que eles geram. A felicidade líquida é como uma promessa sem satisfação, é o fator ideológico de escamoteamento da infelicidade real cotidiana.
Referências
BAUMAN, Z. Consumismo x consumo IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub, s.p.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.