A figura do usuário – A cidade e a droga

Cracudo é o sujeito do discurso ausente de história, compreendido enquanto usuário, indissociado do vício e situado ciclicamente no presente.

Da série “A cidade e a droga”.

Índice

Introdução

Se a cracolândia é uma heterotopia centrada na comercialização e distribuição da droga nas regiões metropolitanas em destaque para São Paulo, há um tipo de sujeito específico que frequenta este outro lugar.

Como toda heterotopia, a passagem envolve a mudança de status. O sujeito que entra na cracolândia não é o mesmo que está do lado de fora, mesmo sendo a mesma pessoa. Mesmo sendo o mesmo sujeito empírico, trata-se de sujeitos discursivos opostos.

Se há, do lado de fora, um sujeito de direitos com história individual, do lado de dentro este sujeito dissolve e emerge a figura do cracudo. Cracudo enquanto sujeito sem história associado indistintamente ao crack. O cracudo é a personificação do crack.

Outros sujeitos

E heterotopia, segundo Michel Foucault, contém um mecanismo de nudez: cada sujeito é despido das vestes sociais que constituem seu estatuto. O funcionamento da heterotopia enquanto outro lugar, enquanto contraespaço, depende desta nudez. Na medida em que se trata de um espaço outro localizado dentro do espaço normatizado, há uma necessidade do estabelecimento de novas relações sociais e, assim, de novos status aos sujeitos que ali adentram.

Há maneiras específicas de se entrar nestes espaços, há rituais de entrada. São rituais de purificação ou higienização, rituais de transformação, rituais que escancaram a necessidade de uma nudez metafórica.

Há até mesmo heterotopias inteiramente consagradas a esta purificação. Purificação meio-religiosa e meio-higiênica, como nos hammams do mulçumanos, ou como nas saunas dos escandinavos, purificação somente higiênica, mas que carrega consigo todo tipo de valores religiosos ou naturalistas (Foucault, 2013, pp. 26-27).

Esta purificação condena o sujeito a ser um outro. A nudez é rapidamente substituída por novas vestimentas. Novos status são concebidos e dinamizados dentro do contraespaço.

A figura do cracudo

Para iniciar esta seção do presente artigo, preciso expor o relato de Marcos Costa ao El País (Betim, Castellano, 2017):

A primeira vez que Marcos chegou a São Paulo tinha apenas 22 anos. Recém-formado em contabilidade em sua cidade, Salvador (Bahia), pouco tempo depois abriu sua empresa. Ganhou dinheiro, teve filhos e expandiu seus negócios para a sua cidade natal. “Tinha tudo, viajava bastante…”. Seu mundo desabou anos depois – ele não lembra exatamente a data – quando sua filha foi estuprada. “Claro que me vinguei do cara que fez isso!”, exclama. Como o abusador vinha “de uma família grande”, Marcos decidiu fugir para que não devolvessem a vingança.

Logo começou a beber. Viajou para os Estados Unidos, gastou todo o seu dinheiro e, após voltar para São Paulo, acabou na rua. Da bebida ao crack foi um pulo. “Uso desde sempre”, conta Marcos, que tem 46 anos, o rosto enrugado, barba e cabelo curtos e grisalhos e uma estatura baixa. Um colchão dentro de uma barraca improvisada no centro da cidade, os cobertores com os quais fica meio escondido, seu RG, um anel no dedo indicador e um cachimbo remendado de crack são alguns dos poucos pertences que lhe restam. Sua família, com a qual já não tem contato, está espalhada por várias outras cidades.

De empresário a frequentador do fluxo da cracolândia em São Paulo. Mais um sobrevivência no espaço próprio da droga, sem família por perto, com sua vida regressa funcionando somente enquanto fio condutor de sua atual condição, não mais enquanto construção de história para seu atual status. Ou melhor, seu atual status é a falência da história fora do fluxo.

No relato de Luciano Aparecido, também para o El Pais, é relevante constatar que nem mesmo seu passado foi importante para a construção de sua narrativa:

Na cracolândia, Luciano é conhecido por ser uma pessoa muito inteligente e trabalhadora. “Seu forte é culinária. Sabe cozinhar muito bem. Ele ainda vai longe”, conta seu amigo Eduardo. Luciano hoje trabalha com computação pelo antigo programa De Braços Abertos e mostra seu crachá com orgulho para a reportagem. Também já fez três cursos no Senai.

Luciano não se lembra muito bem quando começou a usar crack e nem quando foi para a rua. Explica que voltar a estudar e trabalhar fez com que diminuísse o consumo. Na última quinta-feira se dividia entre escutar um rap na tenda da Prefeitura da rua Helvétia, conversar com a reportagem e embrenhar-se no “fluxo”. Natural de Osasco, município da região metropolitana de São Paulo, diz esperar apenas uma coisa da sociedade: “A oportunidade de viver a vida”. Ele ainda acrescenta: “Gosto de respeito e gostaria que as portas estivessem abertas para mim”.

Rodrigo, por sua vez, é concursado e trabalhava como escriturário num fórum em São Paulo (Machado, 2013):

Começou frequentando o local como “turista”, passando apenas os finais de semana. Em pouco tempo, porém, já tinha feito da rua a morada.

“Quando eu conheci o crack, as coisas começaram a mudar. Eu acho que ele mexeu muito com meu subconsciente. E a minha compulsividade aumentou muito com o uso do crack. Eu não me via feliz usando uma pedra. Às vezes eu pegava um pino de cocaína e usava a noite inteira um pino. Com o crack eram dez, 15, até 20 se tivesse eu usava. Às vezes não estava mais nem dando barato, dando efeito, eu usava pela compulsividade.”

[…]

Quando tem condições financeiras, paga um pernoite em algum hotel. Nos demais, recorre aos centros de acolhidas ou hotéis do programa de redução de danos, o Braços Abertos, criado pelo ex-prefeito Fernando Haddad, do qual fez parte.

Estes são alguns exemplos significativos da passagem que o sujeito empírico atravessa para se tornar um sujeito próprio da heterotopia da cracolândia. Uma passagem em que a história vivida é desconsiderada e a sobrevivência do vício, a vida do presente contínuo, passa a ser o novo elemento do usuário.

Neste momento, o usuário se transforma num sujeito sem história.

Considerações finais

De contador a usuário. De escriturário a usuário. De estudante aplicado a usuário. Todos, de gente a cracudo. A figura do cracudo não é só o resultado de um processo de subjetivação que se limita ao próprio sujeito e sua participação no interior do fluxo. A figura do cracudo também é vista de fora.

Do lado de fora da cracolândia, este sujeito se história se faz enquanto número. Cracudo (ou usuário) é uma estatística propícia às ações da Segurança. Trata-se de uma figura afastada das ações da Saúde, que precisa individualizar e humanizar cada sujeito empírico em sujeito do discurso.

Cracudo é o sujeito do discurso ausente de história, compreendido enquanto usuário, indissociado do vício e situado ciclicamente no presente.

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O autor:

Vinicius Siqueira é mestre em Ciências pelo Programa de Pós Graduação em Educação e Saúde da UNIFESP e pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, além de ser responsável pelo portal de conteúdo de ciências humanas Colunas Tortas. É autor de “Foucault e a Arqueologia”, “Homo Psychologicus: Lendo Doença Mental e Psicologia de Foucault” entre outros e-books.

Referências

BETIM, F.; CASTELLANO, João. Este é meu nome, minha casa é a cracolândia e eis os meus medos. El País Brasil, São Paulo, 25 jun. 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/24/politica/1498315665_513345.html. Acesso em: 11 jun. 2025.

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013.

MACHADO, Livia. Duas décadas de crack e cinco anos na Cracolândia: funcionário público tenta retomar vida e profissão. G1 São Paulo, São Paulo, 28 maio 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/duas-decadas-de-crack-e-cinco-anos-na-cracolandia-funcionario-publico-tenta-retomar-vida-e-profissao.ghtml. Acesso em: 11 jun. 2025.

 

 

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