Formação discursiva: cruzamentos entre Foucault e Pêcheux, por Jean-Jacques Courtine – DROPS #71

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Paulo: EdUFSCAR, 2009, p. 82-84.

O conceito de FD

O termo “discurso” não é um termo primitivo, mas um objeto de construção para a Arqueologia. Essa elaboração o relaciona àquela de FD. “Chamar-se-á ‘discurso’ um conjunto de enunciados na medida em que se inscrevem na mesma FD” (Arqueologia do saber, Foucault).

A análise do discurso (no sentido de Foucault) passa, assim, por aquela dos enunciados e das FD:

A análise de uma FD estudaria formas de repartição (…), descreveria sistemas de dispersão. Na possobilidade de descrever, entre um certo número de enunciados, um semelhante sistema de dispersão, ou de definir entre os objetos, tipos de enunciação, conceitos, escolhas temáticas, uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), dir-se-á (…) que se trata de uma FD. Chamar-se-ão regras de formação as condições às quais são submetidos os elementos desta repartição. As regras de formação são as condições de existência (mas também de coexistência, manutenção, modificação ou desaparecimento) em uma dada distribuição discursiva (Arqueologia do saber).

A definição de uma FD como forma de repartição ou ainda sistema de dispersão convida a estabelecer a contradição entre a unidade e a diversidade, entre a coerência e a heterogeneidade no interior das FD, equivale a fazer de sua unidade dividida “a própria lei de sua existência” (Arqueologia do saber), o que Foucault explica assim: “Se há unidade, ela não está absolutamente na coerência visível e horizontal dos elementos formados, ela reside bem aquém, no sistema que torna possível sua formação” (Arqueologia do saber).

Como entender analise do discurso para Pecheux

O conceito de FD parece então correlacionar contraditoriamente dois níveis distintos que constituem dois modos de existência do discurso como objeto:

  1. O nível de um sistema de formação dos enunciados, que se situa “aquém da coerência visível e horizontal dos elementos formados” no plano das “regularidades pré-terminais” (Arqueologia do saber). “Por sistema de formação é preciso entender um feixe complexo de relações que funciona como regra” (Arqueologia do saber). Designaremos esse nível como nível do enunciado.
    Se aproximarmos essas formulações daquelas de Pêcheux, evidencia-se que tal sistema de formação funcionando como regra refere-se “ao que pode e deve er dito” por um sujeito falante, a partir de um lugar determinado e em uma conjuntura no interior de uma FD, sob a dependência do interdiscurso desta última. O nível de um “sistema de formação” faz que a constituição da “matriz do sentido” seja inerente a uma FD determinada no plano dos processos históricos de formação, reprodução e transformação dos enunciados do campo do arquivo.
  2. O nível de uma sequência discursiva concreta, “estado terminal do discurso” (Arqueologia do saber), na medida em que esta manifesta uma certa “coerência visível e horizontal dos elementos  formados”, ou seja, um intradiscurso. Toda sequência discursiva, ou discurso concreto, existe, portanto, no interior do “feixe complexo de relações” de um sistema de formação: é, propriamente falando, “um nó em uma rede” (Arqueologia do saber). Chamaremos esse nível de nível da formulação.
    Isso implica que toda sequência discursiva deve ser apreendida enquanto objeto tomado num processo discursivo de reprodução/transformação dos enunciados no interior de uma dada FD: o estudo do intradiscurso que tal sequência manifesta é indissociável da consideração do interdiscurso da FD.

A aproximação que estabelecemos mais anteriormente entre os níveis de um “sistema de formações dos enunciados” e do “interdiscurso” de um lado, do “estado terminal do discurso” e do “intradiscurso” de outro, nas respectivas problemáticas de Foucault e de Pêcheux, não deve levar a crer que essas duas abordagens do conceito de FD podem ser traduzidas uma pela outra. Se os procedimentos manifestam uma isomorfia de descrição dos níveis em jogo em uma FD (na medida em que eles mantêm uma certa relação de filiação, o conceito de FD proveniente do trabalho de Foucault), eles têm, no entanto, uma especificidade que não poderia ser reduzida: isso particularmente no que diz respeito às definições do enunciado e do sujeito na Arqueologia.

 – Jean-Jacques Courtine.


Receba tudo em seu e-mail!

Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!


Deixe sua provocação! Comente aqui!