Da série “A Arqueologia do Saber“.
Falávamos sobre o enunciado[1]: ele não é uma frase, não é um ato ilocutório nem uma proposição, pelo contrário, o enunciado é aquilo que permite a existência desses três, é um modo singular de existência, uma função de existência.
O enunciado apresenta características próprias por ser um conjunto de signos em ação. É só na prática que ele ganha vida e pode ser analisado, nunca em abstrato, como se fosse possível definir uma quantidade potencial, porém nunca praticada de enunciados.
As características do enunciado
1) Primeiramente, é necessário entender que a existência de um enunciado depende de sua relação com “outra coisa”, segundo Foucault, “que lhe pode ser estranhamente semelhante […] uma relação específica que se refira a ela mesma – e não à sua causa, nem a seus elementos”.
Como assim? Observemos um manual de digitação com as letras do teclado em sua ordem. Isto, como já tratado anteriormente[2], é um enunciado, mas o próprio teclado não pode ser tido como enunciado.
O que distingue o manual do teclado? Seria o primeiro uma cópia do segundo e isso o transforma em coisa qualitativamente diferente? Não, já que todos os teclados são cópias entre si e, por isso, também deveriam ser enunciados, sob este critério. Será o sujeito falante? Também não, já que a existência do enunciado não depende da intervenção do sujeito[3]. O que faz do primeiro exemplo um enunciado é a relação que ele mantém com o segundo: uma relação que refere-se a si mesma.
De certa forma, um conjunto de palavras é só um sintagma, o que a faz ter seu sentido e seu contexto é a função de existência que o enunciado exerce. É por isso que a mesma palavra pode ter significados diferentes, pois pode se relacionar com coisas diferentes, com domínios diferentes. “Trata-se de uma relação singular: se, nessas condições. uma formulação idêntica reaparece, – as mesmas palavras são utilizadas, basicamente os mesmos nomes, em suma, a mesma frase, mas não forçosamente o mesmo enunciado”[4].
É a presença de um correlato que o enunciado coloca em jogo, este correlato não é somente aquilo que se fala – as palavras no ato de se falar -, mas também o que é dito, o tema.
É preciso saber a que se refere o enunciado, qual é seu espaço de correlações para poder dizer se uma proposição tem ou não um referente. “O atual rei da França é careca” só carece de referente na medida em que se supõe que o enunciado se refira ao mundo da informação histórica de hoje. A relação da proposição com o referente não pode servir de modelo e de lei à relação do enunciado com o que enuncia. Esta última não só é de nível diferente, como também a precede [5].
Uma forma de perceber essa referência do enunciado está nas frases sem sentido, como “incolores ideias verdes dormem furiosamente”. Se se lê e se percebe que não há significado nela, apesar de estar gramaticalmente correta, é porque já descartou uma série de possibilidades prévias de relacionamento: já pressupõe que não se trata de um sonho, da fala de um drogado, um texto poético ou uma mensagem decodificada, “mas de um certo tipo de enunciado que deve estar relacionado, de modo definido, a uma realidade visível. É no interior de uma relação enunciativa determinada e bem estabilizada que a relação de uma frase com seu sentido pode ser assinalada”, afirma Foucault.
Acima, falou-se sobre aquilo a que o enunciado refere ser seu correlato. Mas o que é esse correlato? É o conjunto de domínios que podem aparecer em determinadas circunstâncias, como um domínio de propriedades físicas constatáveis, quando se fala de uma montanha rochosa, ou o domínio geográfico, com distâncias e locais, quando se fala da cidade que está localizada.
O enunciado não traz seu correlato como uma proposição traz seu referente, pois não é possível enunciado sem correlato. O correlato de um enunciado não é um objeto, um fato ou um ser, mas sim um campo de dispersão,
leis de possibilidade e regras de existência para os objetos que se encontram aí nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas […] [É esse referencial que] define as possibilidades de aparecimento e delimitação do que dá às frases seu sentido, à proposição seu valor de verdade. É esse conjunto que caracteriza o nível enunciativo da formulação, por oposição a seu nível gramatical e a seu nível lógico [6].
2) A relação do sujeito com o enunciado é singular. É claro que não se deve pensar no sujeito como fonte do enunciado, como mente pensante ou como autor. O sujeito é uma posição, um vazio, que pode ser ocupado por diferentes indivíduos, mas que não é criado por eles e nem depende deles para existir.
Frases como “a tarde está bela” não são iguais a frases como “eu vi uma bela tarde ontem”. A relação do sujeito com ambas é diferente – e não estamos falando do sujeito da sintaxe, mas sim do sujeito falante. Seria o autor, este sujeito externo à primeira frase, que cumpre a função de falar, mas não de se localizar no enunciado?
A autoria, por sua vez, não pode ser utilizada como ponto pacífico de análise, já que a literatura, com pseudônimos e ficções, anulou a localidade do sujeito-autor, mas nem só por isso, afinal, a falta do autor verdadeiro ainda deixa aberta a estadia do autor da própria ficção, do narrador, do personagem e de outros indivíduos, reais ou não.
Seria uma particularidade da literatura que o autor dela se ausentasse, se escondesse, se destacasse ou se separasse; e dessa dissociação não se deveria concluir, universalmente, que o sujeito do enunciado é distinto em tudo – natureza, status, função, identidade – do autor da formulação. Entretanto, esta ruptura não está limitada apenas à literatura. É absolutamente geral na medida em que o sujeito do enunciado é uma função determinada, mas não forçosamente a mesma de um enunciado a outro; na medida em que é uma função vazia, podendo ser exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes, quando chegam a formular o enunciado; e na medida em que um único e mesmo indivíduo pode ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes posições e assumir o papel de diferentes sujeitos [7].
Desta forma, a existência do enunciado não depende de um sujeito que pode dizê-lo, mas sim da existência da posição determinada de sujeito que qualquer indivíduo indiferente poderá ocupar.
3) A função enunciativa não existe sem um domínio associado. É necessário relacionar o enunciado com um campo adjacente, aquilo que Foucault chama de espaço colateral, “um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados”.
Esses enunciados não são aquilo que possibilita o contexto, na verdade, é o espaço colateral que dá possibilidade para a existência do contexto. Portanto, é anterior até mesmo à intencionalidade psicológica, é um campo associado formado por uma série de outras formulações às quais o enunciado se insere como elemento (como numa conversa, discussão, demonstração) ou por formulações que o enunciado se refere para modificá-las, repeti-las ou adaptá-las.
Um enunciado, na prática discursiva, acaba atualizando outros enunciados, já que é sempre ligado a eles, às suas margens. Ele nunca está neutro, sozinho, mas sempre se relacionando com outros, em uma série, não é uma ferramenta a ser utilizada, mas é aquilo que abre espaço e concede status ao sujeito, mostra relações possíveis com o passado e, a partir delas, abre um futuro eventual.
Todo enunciado pressupõe outros com que ele se relaciona. Todo um campo de coexistência, como as relações gramaticais entre as frases ou as relações lógicas entre as proposições.
4) Um enunciado tem sempre existência material. Não se fala de enunciado sem que uma voz o tenha dito, sem que seus signos tenham sido gravados em uma superfície, sem que tenha deixado marca, afinal, o enunciado não tem existência silenciosa e oculta, não é uma figura ideal.
Característica essencial do enunciado: ele precisa de um suporte material, de uma data, de um lugar. O que leva à algumas questões: um mesmo conjunto de signos dito em voz alta e em voz baixa forma dois enunciados diferentes ou seria um enunciado repetido?
É possível cometer uma confusão quando se esquece de separar o enunciado da enunciação, afinal, a enunciação é um acontecimento que não se repete, ela é datada. No entanto, o enunciado não é medido por sua data: um livro com várias edições forma vários enunciados? Não, é o mesmo enunciado em suas reimpressões e reedições – a materialidade específica do enunciado está no “livro”. É esse status de coisa ou de objeto, que nunca é fixo, sempre fluido, que o enunciado precisa para poder ser repetido e não reproduzido (pois, como já dito, reprodução forma um enunciado diferente).
Um testamento e uma cópia manuscrita não são idênticos, não se pode dizer que a cópia é uma repetição de enunciado, isso porque não se trata de uma repetição, mas de uma reprodução, pois essa cópia está determinada por um regime distinto de instituições materiais. Não se trata somente do material e da marca significante, mas de um conjunto complexo de relações que fazem do enunciado uma coisa repetível ou a repetição de uma coisa anteriormente dita.
O resultado disso é a formulação do conceito de campo de estabilização, por Foucault. Seria um espaço em que “esquemas de utilização, as regras de emprego, as constelações em que podem desempenhar um papel e suas virtualidades estratégicas […] permite, apesar de todas as diferenças de enunciação, repeti-los [os enunciados] em sua identidade” [8].
Ou seja, o enunciado é repetido em circunstâncias especiais,
Uma informação dada pode ser retransmitida com outras palavras, com uma sintaxe simplificada, ou em um código convencionado; se um conteúdo informativo e as possibilidades de utilização são as mesmas, poderemos dizer que ambos os casos constituem o mesmo enunciado [9].
Enquanto a enunciação tem a característica de ser começada ou reevocada, o enunciado pode ser repetido, mas sempre sob condições bem específicas.
O enunciado, desta forma, com sua materialidade específica, aparece como um objeto como qualquer outro produzido, modificado e destruído pelo homem. Ele circula, impede ou ajuda na realização de um desejo, está contra ou a favor de interesses, é parte das lutas, das contendas e é tema de apropriação ou de rivalidade.
Referências
[1] Qual a definição de enunciado para Foucault? IN: A Arqueologia do Saber: uma resenha. Colunas Tortas, acessado em 16/01/2015.
[2] Qual a definição…
[3] Qual a definição…
[4] FOUCAULT, Michel. A Função Enunciativa IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.108.
[5] FOUCAULT, Michel. A Função Enunciativa… p. 108-109.
[6] FOUCAULT, Michel. A Função Enunciativa… p. 111.
[7] FOUCAULT, Michel. A Função Enunciativa… p. 113.
[8] FOUCAULT, Michel. A Função Enunciativa… p. 126.
[9] FOUCAULT, Michel. A Função Enunciativa… p. 127.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Simplesmente muito bom!
Obrigado!
Mais uma vez Parabéns ao Blog. Irrepressível, compartilho em meu blog. Desejo a todos sorte e PAZ!