Da série “A cidade e a droga”.
Índice
Introdução
A visita ao centro de São Paulo desnuda certos espaços que se instalam no interior de um centro que é, ao mesmo tempo, organizado e desorganizado. A cidade é um espaço normatizado pelo direito, pelas regras sociais e pela própria produção discursiva acerca da cidade e das diferentes identidades que circulam em suas ruas, ao mesmo tempo, há espaço específicos como a cracolândia que são espaços dentro do espaço.
Um espaço singular dentro de um espaço normatizado. Um espaço exclusivo e separado ainda no interior de um espaço maior que busca entender como vai lidar com esta emergência singular e indesejada. O objetivo deste texto é classificar a cracolândia, seja a paulista ou de outros estados do Brasil, enquanto uma heterotopia sustentada pela ordem social e facilitadora do trabalho das instâncias administrativas municipais.
Heterotopia
Nos trabalhos de Michel Foucault, heterotopia é um conceito cuja função é trabalhar uma geografia discursiva dos espaço singulares. Trata-se de um espaço discursivo, mas também físico, que se molda conforme as novas relações que se pode firmar em seu interior. A heterotopia não é exatamente um espaço de resistência ou de transformação social, não é intrinsecamente valorado como algo propício ao progresso da sociedade ou ao combate dos preconceitos, mas é um contraespaço, um espaço do avesso, um espaço criado para produzir subjetividades alternativas nos mesmos corpos em que as subjetividades normatizadas estão incrustadas.
Trata-se de um espaço diferente, de um espaço outro, que Foucault pretendia, inclusive, criar uma ciência específica:
esses outros lugares, essas contestações míticas e reais do espaço em que vivemos. Essa ciência estudaria não as utopias, pois é preciso reservar esse nome para o que verdadeiramente não tem lugar algum, mas as hetero-topias, espaços absolutamente outros (Foucault, 2013, pp. 21-29)
Segundo Karoline Pereira (2015, p. 54), “cada heterotopia possui um funcionamento que lhe é próprio e que, dependendo da cultura da sociedade a qual pertença e do tempo, pode vir a ter um funcionamento diferentes”.
A heterotopia é uma utopia real. É a caracterização do espaço inalcançável quando é proposto no real e quando é alcançado, se constitui com todas as fragilidades que a realidade concreta impõe.
Trata-se de um todo singular no interior de um todo normatizado. Como um espaço alternativo, um outro lugar, dentro do espaço normatizado, dentro do lugar legitimado. Pode-se exemplificar a heterotopia nas casas de prostituição, nos coletivos políticos, nos acampamentos do MST, no exército, assim como na imaginação de uma criança que cria seu castelo entre seus cobertores. O próprio espelho é uma heterotopia da imagem que se encontra refletida numa imaginário de si que nunca se concretiza perfeitamente. Um reflexo que nunca alcança o real, embora esteja localizado nele.
A cracolândia
A partir daqui, a história da cracolândia começa a ter sentido. O espaço específico que hoje é conhecido por este nome associado à droga começa a ser construído a partir do desbande das classes altas paulistanas na década de 60 aos bairros atuais nobres da cidade, como Moema, Jardim Europa, Jardim Paulista, Higienópolis, etc.
Foi nesta década que a antiga rodoviária da Luz foi inaugurada em frente à praça Julio Prestes. Com o intenso movimento de migrantes, o então bairro nobre foi povoado por hoteis e pensões além de comércios que atendiam aos novos moradores e visitantes da cidade. Junto com as pessoas, também os automóveis e a poluição tomou conta da região. Este foi o primeiro conflito de classe que tomou forma na própria convivência da região: os ricos se afastaram dos pobres, o estilo de vida daqueles que frequentavam a Sala São Paulo e tinham acesso à ferroviária da Luz (meio de transporte utilizado pelas classes altas seja para locomoção pessoal, seja para locomoção de suas mercadorias) era ameaçado pelo caos citadino de uma convivência popular.
Com a inauguração da Rodoviária do Tietê e o fechamento da Rodoviária da Luz na gestão de Paulo Maluf, já na década de 80, o espaço é abandonado, o fluxo de migrantes diminui e o fluxo de trabalhadores, novos moradores e visitantes cai. Por sua vez, os comércios que dependiam deste fluxo também mudam de lugar, os hotéis passam a oferecer preços promocionais para manter-se abertos. O espaço fica abandonado e as iniciativas da administração pública para tornar o bairro atraente para as classes médias e altas não mostraram eficiência. A construção da pinacoteca, do Shopping Fashion Center e de diversos equipamentos públicos não surte o efeito desejado.
Aos poucos, a região abandonada se transforma no lugar das pessoas abandonadas. o comércio intenso de cola, maconha e cocaína é, nos anos 90, substituído pelo crack, droga barato e de forte efeito. A dinâmica específica da droga no corpo é fundamental para entender a criação desta heterotopia: como o efeito é forte e rápido, a tendência é que o usuário vicie rápido e se estabeleça próximo aos pontos de venda.
Aos poucos, as diferentes gestões do município delimitaram diferentes regiões para a concentração da cracoândia: tornaram um espaço difuso em um espaço concentrado. A cracolândia se estabeleceu como um espaço de convívio de usuários e traficantes, um lugar em que a prostituição e a ética da convivência passaram a andar ao lado de uma normatividade específica administrada por um disciplina, figura de autoridade comum em regiões dominadas pelo tráfico.
A delimitação feita pela prefeitura marca uma espaço geográfico fixo para a heterotopia da cracolândia e define, também, um fenômeno específico: a cracolândia enquanto espaço de insegurança pública em vez de espaço com problemas relacionados à saúde individual e coletiva.
Considerações finais
Enquanto espaço de insegurança pública, a cracolândia é o local da prática policial de controle, vigilância e punição. Ao mesmo tempo, é o local da ilegalidade controlada. Da ilegalidade com função econômica e política.
A presença da heterotopia da cracolândia fundamenta a existência de uma administração focada no uso do aparto policial como forma de geração de bem-estar aos moradores da cidade. Fundamenta, também, uma relação específica de tolerância com o tráfico que mantém a existência de uma especíe de milícia na região além de pontos de lavagem de dinheiro nos hoteís que eram utilizados para amparar pessoas em situação de desproteção social.
Acima de tudo, retira o caráter humano dos usuários que são reconhecidos como “cracudos”, sujeitos sem história intimamente ligados ao crack. Sujeitos cuja existência e manifestação concreta se dá em relação ao crack. Sujeitos perfeitos para uma gestão policialesca. Uma espaço, assim, criado de dentro para fora, com a gestão singular feita através de uma ética de convivência ligada ao tráfico e às facções que o controlam, mas de fora para dentro ligada à delimitação da administração pública e da prática policial.
Referências
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 21-29.
FREITAS, Hyndara. Quem são os alvos da operação na cracolândia que mira ‘ecossistema de crimes’. Globo. 07 de agosto de 2024. Disponível em <<https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2024/08/07/quem-sao-os-alvos-da-operacao-na-cracolandia-que-mira-ecossistema-de-crimes.ghtml>>.
PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em linguística do Centro de ciências humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 2015, p. 54.
SOUZA, Felipe. Como nasceu a Cracolândia, bairro dos barões do café que virou problema ‘sem solução’ de São Paulo. BBC Brasil. 18 agosto 2023. Disponível em <<https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxxdgnwrer4o>>.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.