A individualização de uma prática discursiva, por Michel Foucault – DROPS #53

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª edição: Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 208-211.

A propósito de uma formação discursiva, podem-se descrever diversas emergências distintas. O momento a partir do qual uma prática discursiva se individualiza e assume sua autonomia, o momento, por conseguinte, em que se encontra em ação um único e mesmo sistema de formação dos enunciados, ou ainda o momento em que esse sistema se transforma, poderá ser chamado limiar de positividade. Quando no jogo de uma formação discursiva um conjunto de enunciados se delineia, pretende fazer valer (mesmo sem consegui-lo) normas de verificação e de coerência e o fato de que exerce, em relação ao saber, uma função dominante (modelo, crítica ou verificação), diremos que a formação discursiva transpõe um limiar de epistemologização. Quando a figura epistemológica, assim delineada, obedece a um certo número de critérios formais, quando seus enunciados não respondem somente a regras arqueológicas de formação, mas, além disso, a certas leis de construção das proposições, diremos que ela transpôs um limiar de cientificidade. Enfim, quando esse discurso científico, por sua vez, puder definir os axiomas que lhe são necessários, os elementos que usa, as estruturas proposicionais que lhe são legítimas e as transformações que aceita, quando puder assim desenvolver, a partir de si mesmo, o edifício formal que constitui, diremos que transpôs o limiar da formalização.


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A repartição desses diferentes limiares no tempo, sua sucessão, sua defasagem, sua eventual coincidência, a maneira pela qual se podem comandar ou implicar uns aos outros e as condições nas quais alternadamente se instauram constituem para a arqueologia um de seus domínios maiores de exploração. Sua cronologia, na verdade, não é nem regular, nem homogênea. Não é com o mesmo ritmo e ao mesmo tempo que todas as formações discursivas os transpõem, escandindo, assim, a história dos conhecimentos humanos em diferentes períodos: na época em que muitas positividades transpuseram o limiar da formalização, muitas outras ainda não tinham atingido o da cientificidade ou mesmo da epistemologização. Além disso, cada formação discursiva não passa, sucessivamente, pelos diferentes limiares como pelos estágios naturais de uma maturação biológica em que a única variável seria o tempo de latência ou a duração dos intervalos. Trata-se, de fato, de acontecimentos cuja dispersão não é evolutiva: sua ordem singular é um dos caracteres de cada formação discursiva. Eis alguns exemplos de tais diferenças.

Em certos casos, o limiar da positividade é transposto muito antes do da epistemologização: assim, a Psicopatologia, como discurso de pretensão científica, epistemologizou no início do século XIX, com Pinel, Heinroth e Esquirol, uma prática discursiva que lhe preexistia amplamente e que adquirira, há muito tempo, sua autonomia e seu sistema de regularidade. Mas pode acontecer também que esses dois limiares estejam confundidos no tempo e que a instauração de uma positividade seja, ao mesmo tempo, a emergência de uma figura epistemológica. Às vezes, os limiares de cientificidade estão ligados à passagem de uma positividade a outra; às vezes, são diferentes disso; assim, a passagem da história natural (com a cientificidade que lhe era própria) à biologia (como ciência não da classificação dos seres, mas das correlações específicas entre os diferentes organismos) só se efetuou na época de Cuvier com a transformação de uma positividade em outra; em compensação, a medicina experimental de Claude Bernard, depois a microbiologia de Pasteur modificaram o tipo de cientificidade requerido pela anatomia e fisiologia patológicas, sem que a formação discursiva da medicina clínica, tal como fora estabelecida na época, tivesse sido posta fora de cena. Da mesma forma, a nova cientificidade instituída, nas disciplinas biológicas, pelo evolucionismo, não modificou a positividade biológica que fora definida na época de Cuvier. No caso da economia, os rompimentos são particularmente numerosos. Pode-se reconhecer, no século XVII, um limiar de positividade: ele coincide, aproximadamente, com a prática e a teoria do mercantilismo; mas sua epistemologização só se produziria um pouco mais tarde, no fim do século, ou no início do século seguinte, com Locke e Cantillon. No entanto, o século XIX assinala, ao mesmo tempo, com Ricardo, um novo tipo de positividade, uma nova forma de espistemologização, que Cournot e Jevons por sua vez modificariam, justamente na época em que Marx, a partir da economia política, faria aparecer uma prática discursiva inteiramente nova.

Se só se reconhecer na ciência o acúmulo linear das verdades ou a ortogênese da razão, se nela só se reconhecer uma prática discursiva que tem seus níveis, seus limiares, suas rupturas diversas, só se poderá descrever uma única divisão histórica cujo modelo não se deixa de reconduzir, ao longo dos tempos, para uma forma de saber, não importa qual: a divisão entre o que não é ainda científico e o que o é definitivamente. Toda a densidade das separações, toda a dispersão das rupturas, toda a defasagem de seus efeitos e o jogo de sua interdependência acham-se reduzidos ao ato monótono de uma fundação que é preciso sempre repetir.

Só existe, sem dúvida, uma ciência para a qual não se podem distinguir esses diferentes limiares nem descrever entre eles semelhante conjunto de defasagens: a matemática, única prática discursiva que transpôs de uma só vez o limiar da positividade, o de epistemologização, o da cientificidade e o da formalização. A própria possibilidade de sua existência implicava que fosse considerado, logo de início, aquilo que, em todos os outros casos, permanece disperso ao longo da história: sua positividade primeira devia constituir uma prática discursiva já formalizada (mesmo que outras formalizações devessem, em seguida, ser operadas). Daí o fato de ser sua instauração ao mesmo tempo tão enigmática (tão pouco acessível à análise, tão fechada na forma do começo
absoluto) e tão valorizada (já que vale, concomitantemente, como origem e como fundamento); daí o fato de se ter visto, no primeiro gesto do primeiro matemático, a constituição de uma idealidade que se desenrolou ao longo da história e que só foi questionada para ser repetida e purificada; daí o fato de se examinar o começo da matemática menos como um acontecimento histórico do que a título de princípio de historicidade; daí, enfim, o fato de se relacionar, no caso de todas as outras ciências, a descrição de sua gênese histórica, de suas tentativas e de seus fracassos, de sua tardia abertura, como o modelo metaistórico de uma geometria que emerge súbita e definitivamente das práticas triviais da agrimensura. Mas ao tomar o estabelecimento do discurso matemático como protótipo do nascimento e do devir de todas as outras ciências, corre-se o risco de homogeneizar todas as formas singulares de historicidade, reconduzir à instância de um único corte todos os limiares diferentes que uma prática discursiva pode transpor, e reproduzir, indefinidamente, em todos os momentos, a problemática da origem: assim se achariam renovados os direitos da análise histórico-transcendental. A matemática foi seguramente modelo para a maioria dos discursos científicos em seu esforço de alcançar o rigor formal e a demonstratividade; mas, para o historiador que interroga o devir efetivo das ciências, ela é um mau exemplo – um exemplo que não se poderia, de forma alguma, generalizar.

 – Michel Foucault.

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