A língua é fascista, por Roland Barthes – DROPS #35

BARTHES, Roland. Aula. 14ª edição. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 1-15.

Eu deveria começar por interrogar-me acerca das razões que inclinaram o Colégio de França a receber um sujeito incerto, no qual cada atributo é, de certo modo, imediatamente combatido por seu contrário. Pois, se minha carreira foi universitária, não tenho entretanto os títulos que dão geralmente acesso a tal carreira.


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E se é verdade que, por longo tempo, quis inscrever meu trabalho no campo da ciência, literária, lexicológica ou sociológica, devo reconhecer que produzi tão somente ensaios, gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise. E se é ainda verdade que, desde muito cedo, liguei minha pesquisa ao nascimento e ao desenvolvimento da semiótica, é também verdade que tenho pouco direito de a representar, tendo sido tão propenso a deslocar sua definição, mal esta me parecia constituída, e a apoiar-me nas forças excêntricas da modernidade, mais próximo da revista Tel Quel do que das numerosas revistas que, através do mundo, atestam o vigor da pesquisa semiológica.

É pois, manifestamente, um sujeito impuro que se acolhe numa casa onde reinam a ciência, o saber, o rigor e a invenção disciplinada. Assim sendo, quer por prudência, quer por aquela disposição que me leva freqüentemente a sair de um embaraço intelectual por uma interrogação dirigida a meu prazer, desviar-me-ei das razões que levaram o Colégio de França a acolher-me — pois elas são incertas a meus olhos — e direi aquelas que, para mim, fazem de minha entrada neste lugar uma alegria mais do que uma honra; pois a honra pode ser imerecida, a alegria nunca o é. A alegria, é a de reencontrar aqui a lembrança ou a presença de autores que amo e que ensinaram ou ensinam no Colégio de França: primeiramente, é claro, Michelet, a quem devo a descoberta, desde a origem de minha vida intelectual, do lugar soberano da História entre as ciências antropológicas, e da força da escritura, desde que o saber aceite com ela comprometer-se; em seguida, mais.

E perto de nós, Jean Baruzi e Paul Valéry, cujos cursos segui aqui mesmo, quando era adolescente; depois, mais perto ainda, Maurice Merleau-Ponty e Emile Benveniste; e, quanto ao presente, permitam-me abrir uma exceção, na discrição com que a amizade deve mantê-los inominados: Michel Foucault, a quem sou ligado por afeição, solidariedade intelectual e gratidão, pois foi ele quem se dispôs a apresentar à Assembléia dos Professores esta cadeira e seu titular.

Uma outra alegria me vem hoje, mais grave porque mais responsável: a de entrar num lugar que pode ser dito rigorosamente: fora do poder. Pois se me é permitido interpretar, por minha vez, o Colégio, direi que, na ordem das instituições, ele é como uma das últimas astúcias da História; a honra é geralmente uma sobra do poder; aqui, ela é sua subtração, sua parte intocada: o professor não tem aqui outra atividade senão a de pesquisar e de falar — eu diria prazerosamente de sonhar alto sua pesquisa — não de julgar, de escolher, de promover, de sujeitar-se a um saber dirigido: privilégio enorme, quase injusto, num momento em que o ensino das letras está dilacerado até o cansaço, entre as pressões da demanda tecnocrática e o desejo revolucionário de seus estudantes. Sem dúvida ensinar, falar simplesmente, fora de toda sanção institucional, não constitui uma atividade que seja, por direito, pura de qualquer poder: o poder (a libido dominandi) aí está, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poder. Assim, quanto mais livre for esse ensino, tanto mais será necessário indagar-se sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se de todo desejo de agarrar. Esta interrogação constitui, a meu ver, o projeto profundo do ensino que hoje se inaugura.

É, com efeito, de poder que se tratará aqui, indireta mas obstinadamente. A “inocência” moderna fala do poder como se ele fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm; acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é também um objeto ideológico, que ele se insinua nos lugares onde não o ouvíamos de início, nas instituições, nos ensinos, mas, em suma, que ele é sempre uno. E no entanto, se o poder fosse plural, como os demônios? “Meu nome é Legião”, poderia ele dizer: por toda parte, de todos os lados, chefes, aparelhos, maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda parte, vozes “autorizadas”, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogância. Adivinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos liberadores que tentam contestá-lo: chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe. Alguns esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o Poder; mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra os poderes, e não é um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo estado de coisas. A razão dessa resistência e dessa ubiqüidade é que o poder é o parasita de um organismo transsocial, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem — ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.

A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação.

Jákobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer. Em nossa língua francesa (e esses são exemplos grosseiros), vejo-me adstrito a colocar-me primeiramente como sujeito, antes de enunciar a ação que, desde então, será apenas meu atributo: o que faço não é mais do que a conseqüência e a consecução do que sou; da mesma maneira, sou obrigado a escolher sempre entre o masculino e o feminino, o neutro e o complexo me são proibidos; do mesmo modo, ainda, sou obrigado a marcar minha relação com o outro recorrendo quer ao tu, quer ao vous; o suspense afetivo ou social me é recusado. Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada freqüência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada.

Vou citar um dito de Renan “O francês, Senhoras e Senhores, dizia ele, numa conferência, nunca será a língua do absurdo; também nunca será uma língua reacionária. Não posso imaginar uma reação séria tendo por órgão o francês.” Pois bem, à sua maneira, Renan era perspicaz; ele adivinhava que a língua não se esgota na mensagem que engendra; que ela pode sobreviver a essa mensagem e nela fazer ouvir, numa ressonância muitas vezes terrível, outra coisa para além do que é dito, superimprimindo à voz consciente, razoável do sujeito, a voz dominadora, teimosa, implacável da estrutura, isto é, da espécie enquanto falante; o erro de Renan era histórico, não estrutural; ele acreditava que a língua francesa, formada, pensava ele, pela razão, obrigava à expressão de uma razão política que, em seu espírito, só podia ser democrática. Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.

Assim que ela é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder. Nela, infalivelmente, duas rubricas se delineiam: a autoridade da asserção, o gregarismo da repetição. Por um lado, a língua é imediatamente assertiva: a negação, a dúvida, a possibilidade, a suspensão de julgamento requerem operadores particulares que são eles próprios retomados num jogo de máscaras linguageiras; o que os lingüistas chamam de modalidade nunca é mais do que o suplemento da língua, aquilo através de que, como uma súplica, tento dobrar seu poder implacável de constatação. Por outro lado, os signos de que a língua é feita, os signos só existem na medida em que são reconhecidos, isto é, na medida em que se repetem; o signo é seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua. Assim que enuncio, essas duas rubricas se juntam em mim, sou ao mesmo tempo mestre e escravo: não me contento com repetir o que foi dito, com alojar-me confortavelmente na servidão dos signos: digo, afirmo, assento o que repito.

Na língua, portanto, servidão e poder se confundem inelutavelmente. Se chamamos de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não submeter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade mística, tal como a descreve Kierkegaard, quando define o sacrifício de Abraão como um ato inédito, vazio de toda palavra, mesmo interior, erguido contra a generalidade, o gregarismo, a moralidade da linguagem; ou então pelo amen nietzschiano, que é como uma sacudida jubilatória dada ao servilismo da língua, àquilo que Deleuze chama de “capa reativa”. Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.

 – Roland Barthes.

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