A loucura em David Hume – DROPS #27

Abaixo, excertos relacionados à loucura e retirados de Uma investigação acerca do entendimento humano* de David Hume, publicado originalmente em 1748. Para recolhê-los, foram utilizadas as palavras-chave “louc” (para cobrir “louco”, “loucura”, “louca”), “idiot” (para cobrir “idiota”, “idiotia”), “imbec” (para cobrir “imbecil”, “imbecilidade”) e, por fim, “estup” (para cobrir “estúpido”, “estupidez”). Não foram encontrados registros de palavras que se iniciem em “maluc”.

As citações com tais palavras-chave foram separadas e, a elas, notas foram adicionadas para guiar a leitura específica deste texto: servir de base para o entendimento da loucura na Idade Clássica. Todas as citações estão na ordem de sua aparição no texto.


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Seção I: Das diferentes espécies de filosofia, p. 26.

O que se objeta, porém, à obscuridade da filosofia profunda e abstrata não é simplesmente que seja penosa e fatigante, mas que seja fonte inevitável de erro e incerteza. Aqui, de fato, repousa a objeção mais justa e plausível a uma parte considerável dos estudos metafísicos: que eles não são propriamente uma ciência, mas provêm ou dos esforços frustrados da vaidade humana, que desejaria penetrar em assuntos completamente inacessíveis ao entendimento, ou da astúcia das superstições populares que, incapazes de se defender em campo aberto, cultivam essas sarças espinhosas impenetráveis para dar cobertura e proteção a suas fraquezas. Expulsos do terreno desimpedido, esses salteadores fogem para o interior da floresta e lá permanecem à espera de uma oportunidade para irromper sobre qualquer caminho desguarnecido da mente e subjugá-lo com temores e preconceitos religiosos. Mesmo o mais forte antagonista, se afrouxar sua vigilância por um só instante, será sufocado. E muitos, por loucura ou covardia, abrem de bom grado os portões aos inimigos e os recebem como seus legítimos soberanos, com reverência e submissão[1].

Seção 2: Da origem das idéias, p. 33.

Todos admitirão prontamente que há uma considerável diferença entre as percepções da mente quando um homem sente a dor de um calor excessivo ou o prazer de uma tepidez moderada, e quando traz mais tarde essa sensação à sua memória, ou a antecipa pela sua imaginação. Essas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, mas jamais podem atingir toda a força e vivacidade da experiência original. Tudo o que podemos dizer delas, mesmo quando operam com o máximo vigor, é que representam seu objeto de uma maneira tão vívida que quase podemos dizer que o vemos ou sentimos. Excetuando-se, porém, os casos em que a mente está perturbada pela doença ou loucura, nunca se atinge um grau de vivacidade capaz de tornar completamente indistinguíveis essas percepções[2]. To das as cores da poesia, por esplêndidas que sejam, não serão jamais capazes de retratar os objetos de tal maneira que se tome a descrição por uma paisagem real, e o mais vívido pensamento será sempre inferior à mais obtusa das sensações.

Seção 3: Da associação de idéias, p. 41.

Como o homem é um ser dotado de razão e está continuamente em busca de uma felicidade que espera alcançar pela satisfação de alguma paixão ou sentimento, ele raramente age, fala ou pensa sem um propósito e uma intenção[3]. Sempre tem em mira um objetivo, e por menos apropriados que sejam às vezes os meios que ele escolhe para atingir seus fins, nunca perde de vista um fim, e não irá desperdiçar seus pensamentos ou reflexões quando não espera colher deles alguma satisfação.

Requer-se, portanto, em todas as composições de gênio, que o escritor tenha algum plano ou objetivo, e, embora possa vir a ser arremessado para fora dele pela veemência do pensamento, como em uma ode, ou o abandone descuidadamente como em uma epístola ou ensaio, deve ser discernível algum
propósito ou intenção, se não na composição integral do trabalho, pelo menos em seu primeiro esboço. Uma produção sem um desígnio assemelhar-se-ia mais aos delírios de um louco que aos sóbrios esforços do gênio e da sabedoria[4].

Seção 4: Dúvidas céticas sobre as operações do entendimento, p. 66.

Na realidade, todos os argumentos que partem da experiência fundam-se na semelhança que observamos entre os objetos naturais, pela qual somos induzidos a esperar efeitos semelhantes aos que descobrimos seguirem-se de tais objetos. E embora ninguém senão um insensato ou louco jamais pretendesse pôr em questão a autoridade da experiência ou rejeitar essa grande condutora da vida humana, pode-se certamente permitir a um filósofo que sua curiosidade seja ampla o bastante para pelo menos levá-lo a examinar o princípio da natureza humana que outorga à experiência essa enorme autoridade e nos faz tirar proveito dessa semelhança que a natureza estabeleceu entre os diversos objetos. De causas que aparecem como semelhantes, esperamos efeitos semelhantes; essa é a súmula de todas as nossas conclusões experimentais. Ora, parece evidente que, se essa fosse uma conclusão alcançada pela razão, ela já seria tão perfeita desde o início, e com base em um único exemplo, quanto depois de um transcurso da experiência tão longo quanto se queira; mas, de fato, as coisas correm de modo bem diferente. Ovos assemelham-se entre si como nenhum outro objeto, e ninguém, no entanto, com base nessa aparente similaridade, espera encontrar em todos eles o mesmo gosto e sabor. É apenas após um longo decurso de experiências uniformes que obtemos, em objetos de qualquer espécie, uma firme confiança e certeza com relação a um resultado particular. Mas onde está esse processo de raciocínio que, de um caso único, extrai uma conclusão tão diferente da que infere de uma centena de novos casos que de nenhum modo diferem daquele caso inicial? Proponho essa questão não tanto para levantar dificuldades, mas para obter alguma informação. Não consigo encontrar, sequer posso imaginar, nenhum raciocínio desse tipo. Minha mente, porém, está sempre aberta a ensinamentos, se alguém se dignar a oferecê-los.

Seção 5: Solução cética dessas dúvidas, p. 71.

Assim como a paixão pela religião, a paixão pela filosofia, embora tenha por alvo a correção de nossa conduta e a extirpação de nossos vícios, parece sujeita ao inconveniente de que, pelo seu manejo imprudente, pode servir apenas para
fortalecer uma inclinação que já predomina e arrastar a mente de forma ainda mais decidida para o lado que já atrai em demasia, em função das tendências e inclinações de nosso temperamento natural. É certo que, ao buscarmos atingir a elevação e firmeza espiritual do sábio fil6sofo e esforçarmo-nos para confinar nossos prazeres exclll5ivamente ao campo de nossas próprias mentes, poderemos acabar tornando nossa filosofia semelhante à de Epicteto e outros estóicos, ou seja, simplesmente um sistema mais refinado de egoísmo; e persuadir-nos pelo raciocínio a nos afastar de toda a virtude assim como dos prazeres do convívio social. Quando examinamos com atenção a futilidade da vida humana e dirigimos todos os nossos pensamentos para a natureza vã e transitória das honras e riquezas, talvez estejamos todo esse tempo apenas satisfazendo nossa indolência natural, a qual, por odiar o alvoroço do mundo e a fatigante servidão aos negócios, busca um simulacro de razão para ceder de forma completa e descontrolada a suas inclinações. Há, no entanto, uma espécie de filosofia que parece pouco sujeita a esse inconveniente, pois não se harmoniza com nenhuma paixão desordenada da mente humana, nem se mistura, ela própria, a nenhuma afecção ou inclinação naturais; e essa é a filosofia acadêmica ou cética. Os acadêmicos estão constantemente falando sobre dúvida e suspensão do juízo, sobre o perigo das decisões apressadas, sobre confinar as indagações do entendimento a limites bem estreitos e renunciar a todas as especulações que caem fora dos limites da vida e da prática cotidianas. Conseqüentemente, uma filosofia como essa é o que há de mais contrário à indolência acomodada da mente, sua arrogância irrefletida, suas grandiosas pretensões e sua credulidade supersticiosa. Todas as paixões são refreadas por ela, exceto o amor à verdade, e essa é uma paixão que jamais é, ou pode ser, levada a um grau excessivo. Surpreende, portanto, que essa filosofia – que em quase todas as ocasiões deve mostrar-se inofensiva e inocente – seja objeto de tantas censuras e reprovações infundadas. Mas, talvez, a própria circunstância que a torna tão inocente seja o que principalmente a expõe ao ódio e ao ressentimento públicos. Ao não adular paixões desordenadas, ela conquista poucos adeptos; e ao opor-se a tantos vícios e loucuras, levanta contra si uma multidão de inimigos, que a estigmatizam como libertina, profana e irreligiosa.

Seção 10: Dos milagres, p. 179-180.

Mas suponha-se que todos os historiadores que estudam a Inglaterra concordem que, em 1° de janeiro de 1600, a rainha Elizabeth morreu; que ela foi vista tanto antes como depois de sua morte por seu médico e por toda a corte, como é habitual no caso de pessoas de sua posição; que seu sucessor foi reconhecido e proclamado pelo Parlamento; e que, após ter estado sepultada por um mês, ela reapareceu, voltou a assumir o trono e governou a Inglaterra por três anos. Devo confessar que ficaria surpreso com a coincidência de tantas e tão estranhas circunstâncias, mas não estaria minimamente inclinado a acreditar em um acontecimento tão miraculoso. Não duvidaria de que sua morte foi alegada, nem das outras circunstâncias públicas que se seguiram, apenas declararia que houve a alegação da morte, mas que esta nunca foi nem poderia ter sido real. Seria inútil levantar contra mim a dificuldade, ou quase impossibilidade, de enganar o mundo em um assunto de tal importância; a sabedoria e o sólido discernimento daquela renomada rainha; a pouca ou nenhuma vantagem que poderia colher de uma artimanha tão lastimável. Tudo isso poderia causar-me espanto, mas eu ainda responderia que a canalhice e a insanidade dos homens são fenômenos tão comuns que eu preferiria, antes, acreditar que a confluência desses fatores pode dar origem aos mais extraordinários acontecimentos a aceitar uma violação tão patente das leis da natureza.

Seção 12: Da filosofia acadêmica ou cética, p. 208.

Por qual argumento se poderia provar que as percepções da mente devem ser causadas por objetos externos inteiramente distintos delas, embora a elas assemelhados (se isso for possível), e não poderiam provir, seja da energia da própria mente, seja da sugestão de algum espírito invisível e desconhecido, seja de alguma outra causa que ignoramos ainda mais? Reconhece-se, de fato, que muitas dessas percepções não surgem de nada exterior, como nos sonhos, na loucura e em outras enfermidades. E nada pode ser mais inexplicável que a maneira pela qual um corpo deveria operar sobre a mente para ser capaz de transmitir uma imagem de si mesmo a uma substância que se supõe dotada de uma natureza tão distinta e mesmo oposta.

Seção 3: Da justiça, p. 241.

Na presente condição do coração humano, será talvez difícil encontrar exemplos cabais de afeições tão engrandecidas, mas ainda assim podemos observar que o caso das famílias aproxima-se disso; tanto mais quanto maior a benevolência mútua entre os indivíduos, até que todas as distinções de propriedade em boa parte se perdem e confundem entre eles. No caso de pessoas casadas, a lei supõe que o liame de afeto entre elas é tão forte a ponto de abolir toda a divisão de posses; e esse liame muitas vezes tem, de fato, essa força que lhe é atribuída. E pode-se observar que, durante o ardor dos fanatismos nascentes, quando cada princípio é inflamado até a loucura, a comunidade dos bens foi freqüentemente experimentada, e apenas a experiência de seus inconvenientes- pelo egoísmo restabelecido ou disfarçado dos homens – pôde fazer que os imprudentes fanáticos retornassem às idéias de justiça e de propriedade privada. É certo, portanto, que essa virtude deriva sua existência inteiramente de seu indispensável uso para o relacionamento humano e a vida em sociedade.

Seção 4: Da sociedade política, p. 274-275.

Mesmo em sociedades que estão estabelecidas sobre os princípios mais imorais e mais destrutivos dos interesses da sociedade em geral, exigem-se certas regras que os membros são obrigados a observar por uma espécie de falsa honra, bem como por interesse privado. Assaltantes e piratas, como já se notou muitas vezes, não poderiam manter sua perniciosa associação se não estabelecessem entre si uma nova justiça distributiva e recorressem às mesmas leis de eqüidade que violam quanto ao resto da humanidade.

“Odeio um companheiro de bebedeiras que nunca esquece”, diz o provérbio grego. As loucuras da última esbórnia devem ser sepultadas em eterno olvido a fim de abrir o máximo espaço para as loucuras da próxima.

Seção 6: Das qualidades úteis a nós mesmos

A satisfação consigo mesmo é, ao menos em certa medida, uma prerrogativa que acompanha igualmente o tolo e o sábio. Mas é a única, e não há nenhum outro aspecto na conduta da vida em que estejam em pé de igualdade. Negócios, livros, conversação: para todas essas coisas o tolo está totalmente incapacitado e, a menos que condenado pela sua condição às fainas mais rudes, permanece neste mundo como uma carga inútil. Por essa razão, verifica-se que as pessoas são extremamente ciosas de sua reputação quanto a este particular, e embora se vejam muitos exemplos de devassidão e traição confessados da maneira mais aberta, não se vê nenhum em que a imputação de ignorância e estupidez seja suportada pacientemente. Dicearco, o general macedônio que, como nos diz Políbio, erigiu publicamente um altar à impiedade e outro à injustiça, como um desafio à humanidade, mesmo ele, estou seguro, teria estremecido ante o epíteto de imbecil e cogitado vingar-se contra uma denominação tão insultuosa. Com exceção do afeto dos pais, que é o mais forte e indissolúvel elo na natureza, nenhum outro laço tem força suficiente para suportar o desgosto proveniente de um caráter desse tipo. O próprio amor, que pode subsistir diante da traição, ingratidão, malícia e infidelidade, extingue-se imediatamente diante dessa característica, quando percebida e reconhecida; e nem a fealdade e a velhice são tão fatais a essa paixão. A tal ponto chega o terror associado às idéias de total incapacidade para qualquer propósito ou empreendimento, e de constante desacerto e má condução dos assuntos da vida!

Seção 7: Das qualidades imediatamente agradáveis a nós mesmos, p. 333. (nota de rodapé)

Dificilmente se imaginaria que um excesso de contentamento pudesse ser objeto de censura, se não fosse o fato de que a alegria desregrada, sem uma causa ou motivo apropriados, é um sintoma certo e uma característica da loucura, e, por isso, provoca aversão.

Mesma seção, p. 334.

A coragem excessiva e a resoluta inflexibilidade de Carlos XII arruinaram seu país e assolaram todos os vizinhos, mas exibem um tal esplendor e grandeza que nos enchem de admiração, e poderiam ser até mesmo aprovadas em certa medida, se não traíssem ocasionalmente sintomas demasiado evidentes de loucura e desordem mental.

Apêndice 4: De algumas disputas verbais, p. 401. 

Mas, em segundo lugar, não é de admirar que as linguagens não sejam muito precisas na demarcação das fronteiras entre virtudes e talentos e entre vícios c defeitos, dado que tão pouca diferença existe em nossa apreciação interna deles. Parece de fato certo que o sentimento de uma consciência do próprio valor, a auto-satisfação que um homem obtém ao contemplar sua própria conduta e caráter, parece certo, eu dizia, que esse sentimento, que, embora o mais comum de todos, não tem um nome próprio em nossa linguagem, 1 surge dos dotes de coragem e aptidão, diligência e engenhosidade, assim como de quaisquer outras excelências mentais. Quem, entretanto, não se sente profundamente mortificado ao refletir sobre sua própria loucura e devassidão, e não experimenta um secreto remorso ou compunção quando sua memória lhe apresenta alguma ocorrência passada em que se comportou de forma estúpida ou grosseira? A passagem do tempo não apaga as cruéis lembranças de sua própria conduta insensata, ou das afrontas que a covardia ou a impudência lhe trouxeram. Elas continuam a assombrar suas horas solitárias, sufocam seus pensamentos mais ambiciosos e mostram-no, mesmo a seus próprios olhos, sob as cores mais odiosas e desprezíveis que se pode imaginar.

Mesma seção, p. 410-411.

Epíteto quase não menciona o sentimento de humanidade e compaixão, exceto para pôr seus discípulos em guarda contra ele. A virtude dos estóicos parece consistir principalmente em um temperamento firme e um são entendimento. Para eles, assim como para Salomão e os moralistas orientais, a loucura e a sabedoria são equivalentes ao vício e à virtude.

 – David Hume.

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