A loucura em John Locke – DROPS #7

Abaixo, excertos relacionados à loucura e retirados do Ensaio acerca do entendimento humano* de John Locke, publicado originalmente em 1689. Para recolhê-los, foram utilizadas as palavras-chave “louc” (para cobrir “louco”, “loucura”, “louca”), “idiot” (para cobrir “idiota”, “idiotia”), “imbec” (para cobrir “imbecil”, “imbecilidade”) e, por fim, “estup” (para cobrir “estúpido”, “estupidez”). Não foram encontrados registros de palavras que se iniciem em “maluc”.

As citações com tais palavras-chave foram separadas e, a elas, notas foram adicionadas para guiar a leitura específica deste texto: servir de base para o entendimento da loucura na Idade Clássica.


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Capítulo I, tópico: não há princípios inatos na mente. p. 38.

5. Não se encontram naturalmente impressas na mente porque não são conhecidas pelas crianças, idiotas etc. Em primeiro lugar, é evidente que não só todas as crianças, como os idiotas, não possuem delas a menor apreensão ou pensamento[1]. Esta falha é suficiente para destruir o assentimento universal que deve ser necessariamente concomitante com todas as verdades inatas, parecendo-me quase uma contradição afirmar que há verdades impressas na alma que não são percebidas ou entendidas, já que imprimir, se isto significa algo, implica apenas fazer com que certas verdades sejam percebidas. Supor algo impresso na mente sem que ela o perceba parece-me pouco inteligível. Se, portanto, as crianças e os idiotas possuem almas, possuem mentes, dotadas destas impressões, devem inevitavelmente percebê-las, e necessariamente conhecer e assentir com estas verdades; se, ao contrário, não o fazem, tem-se como evidente que essas impressões não existem[2]. Se estas noções não estão impressas naturalmente, como podem ser inatas? E se são noções impressas, como podem ser desconhecidas? Afirmar que uma noção está impressa na mente e, ao mesmo tempo, afirmar que a mente a ignora e jamais teve dela conhecimento, implica reduzir estas impressões a nada. Não se pode afirmar que qualquer proposição está na mente sem ser jamais conhecida e que jamais se tem disso consciência.

Capítulo X, tópico: retenção. p. 82-83.

8. Dois defeitos da memória: esquecimento e lentidão. Numa criatura com intelecto, a necessidade da memória eqüivale à da percepção. Sua importância é tamanha que, quando não existe, as nossas outras faculdades em certa medida são inúteis[3]. Não poderíamos, então, transpor os objetos presentes se nossos pensamentos, raciocínios e conhecimentos não fossem auxiliados pela memória, especialmente quando apresenta dois defeitos:

Primeiro, esquece completamente da idéia, a ponto de ocasionar uma perfeita ignorância. De fato, como nada podemos conhecer se nos faltar a idéia, vivemos em perfeita ignorância quando for esquecida.

Segundo, quando a memória se move lentamente e deixa de recorrer às idéias armazenadas em seu depósito, que estão suficientemente prontas para servir a mente em todas as ocasiões. Sendo, porém, a lentidão em grau muito alto, implica estupidez, fazendo com que a pessoa com esse defeito não possa usar as idéias lá preservadas, pois, embora ao seu alcance, não lhe podem servir para muita coisa, porque não são solicitadas nos momentos indicados. Perdendo, assim, a oportunidade de recorrer às idéias de sua mente, que poderiam gradualmente servi-lo, esta pessoa obtusa não é mais feliz na obtenção de conhecimento do que alguém perfeitamente ignorante[4]. Consiste, portanto, a função da memória em fornecer à mente estas idéias adormecidas, quando solicitadas, tendo-as à mão em todas as ocasiões, resultando disso o que denominamos invenção, fantasia e vivacidade.

Capítulo IV, tópico: a realidade do conhecimento. p. 237-238.

1. Objeção: o conhecimento colocado em idéias deve ser todo uma pura visão. Não duvido que meu leitor, neste momento, deve estar apto para pensar que eu tenho estado todo este tempo construindo apenas um castelo no ar, e estar pronto para dizer: “Qual é o propósito de tudo isto? O conhecimento, você afirma, é apenas a percepção de acordo ou desacordo de nossas idéias: mas quem sabe o que estas idéias podem ser? Se isto for verdadeiro, as visões de um entusiasta e os raciocínios de um homem sóbrio deverão ser igualmente evidentes. Não consiste em verificar o que são as coisas, de sorte que um homem observa apenas o acordo de suas próprias imaginações e se expressa em conformidade com isso, sendo, pois, tudo verdadeiro, tudo certeza. Tais castelos no ar serão fortalezas da verdade como as demonstrações de Euclides. Uma harpa não constitui um centauro: revelamos, por este meio, um conhecimento tão certo e tão verdadeiro como o que afirma que o quadrado não é um círculo.

“Mas para que serve todo este conhecimento refinado das próprias imaginações dos homens que pesquisam a realidade das coisas? Não importa o que são as fantasias dos homens, trata-se apenas do conhecimento das coisas a ser capturado; unicamente este valoriza nossos raciocínios e mostra o predomínio do conhecimento de um homem sobre o outro, dizendo respeito às coisas como realmente são, e não de sonhos e fantasias”.

2. Resposta: não exatamente, onde as idéias concordam com as coisas. A isto respondo: se nosso conhecimento de nossas idéias termina nelas, e não vai além disso, onde há algo mais para ser designado, nossos mais sérios pensamentos serão de pouco mais uso que os devaneios de um cérebro louco; e as verdades construídas deste modo não pesam mais que os discursos de um homem que vê coisas claramente num sonho e com grande segurança as expressa[5]. Mas espero, antes de terminar, tornar evidente que este meio de certeza, mediante o conhecimento de nossas idéias, vai um pouco além da pura imaginação; e acredito que será mostrado que toda a certeza das verdades gerais pertencentes a um homem não se encontra em nada mais.

Notas

* LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1999. (todas as notas são minhas).

[1] Locke argumenta contra a tese da existência de princípios inatos, de impressões inatas que estariam na alma humana e teriam sido geradas em seu ser primordial. Independentemente de como foi gerada ou de quais sejam esses princípios inato, o centro da argumento de Locke está na falsidade do argumento (da existência de princípios especulativos e práticos impressos na alma dos homens).

[2] Segundo o autor inglês, os princípios inatos não são observados em crianças e idiotas. A figura do idiota aparece como a figura daquele que não tem o conhecimento de princípios básicos de acordo universal. É ela que fornece parte do argumento para a inexistência de princípios inatos, na medida em que a figura do idiota seria vazia dos princípios acordados universalmente. Desta forma, Locke termina por entender que, se os idiotas têm almas e mentes, não há princípios alí marcados. Crianças e idiotas fazem parte, nesta classificação, de uma categoria de ausência, definida negativamente.

[3] Repare na presença do “numa criatura com intelecto”. Justamente o oposto acontece com as criaturas sem intelecto. Numa criatura sem intelecto, a memória não funciona e a percepção é traidora.

[4] A memória lenta, ou seja, existente mas deficiente, não permite que se use as ideias preservadas na mente, “implica estupidez”. O estúpido é tão fracassado em alcançar o conhecimento quanto o ignorante. Até o momento, o louco, o idiota, o desatinado, é aquele que não alcança princípios práticos e especulativos universais e, além disso, pode ser afetado por sua memória deficiente que reforça a presença da lerdeza. Tal lerdeza impede o indivíduo de acessar às ideias que estão lá armazenadas ou, ainda, tal lerdeza também poderia, num movimento contrário, ser entendido como a demonstração da ausência de ideias, portanto, de princípios inatos. A caracterização é a da cabeça vazia.

[5] A figura da confusão: se nosso conhecimento derivasse puramente do alinhamento das ideias e terminasse nelas, então a própria ideia não seria item de questionamento. Se a própria ideia não é colocada como problema, então não há diferença entre o alinhamento da percepção de um louco e suas ideias loucas, e o mesmo aconteceria numa pessoa sã. Ou seja, a diferença entre o indivíduo sadio do empirismo, que desempenha o ato de conhecer através da percepção e não guarda nenhum princípio inato, e o louco, que é utilizado como contraprova, está justamente na definição negativa da loucura, enquanto ausência, enquanto confusão, enquanto erro. Especificamente aqui, a loucura é a figura do erro. Um erro que começa a adquirir forma e positividade na instituição do internamento.

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