Índice
Introdução
A produção de conhecimento é ligada diretamente à própria vida local dos produtores de conhecimento. Este princípio materialista de entendimento do próprio conhecimento como aquilo que é produzido e não simplesmente descoberta revela uma preocupação que se situa, utilizando o vocabulário de Michel Foucault, no nível do saber do poder.
Uma preocupação com a universalização do conhecimento local que, na prática, funciona enquanto dominação. Uma dominação no nível do saber, da própria legitimidade da produção do conhecimento vinda majoritariamente dos países do norte global; uma dominação no nível do poder, em que a estrutura universitária produz intelectuais experts na reprodução do conhecimento fabricado pelo norte. Esta mesma estrutura tende a dificultar a validação dos conhecimentos produzidos localmente.
O objetivo deste artigo é expor uma visão inicial sobre a pesquisa participante enquanto ferramenta de emancipação e criação coletiva de conhecimento com base no livro Pesquia participativa, emancipação e (des)colonialidade de Danilo Streck e Talmo Adams.
A produção coletiva
Partimos do pressuposto de que a pesquisa e a educação na América Latina estão imbricadas nos condicionantes históricos do colonialismo e, porsteriormente, da colonialidade. Tais processos produziram e continuam produzindo heranças culturais de subserviência que tendem a perpetuar-nos como imitadores no contexto de reestruturação produtiva do capitalismo (STRECK, ADAMS, 2014, p. 31).
Neste contexto, resta ao pesquisador do sul global inventar de maneira criativa abordagens que se adequem à realidade local. Esta invenção não está localizada meramente num nível do método, mas também num nível epistemológico, ou seja, do próprio resgate de epistemologias que sejam adequadas ao local, que respeitem o território da pesquisa, do território que torna possível a emergência de problemas concretos na vida das pessoas concretas.
Por conta disso, é necessário “conquistar um caminho próprio que possa potencializar os saberes e conhecimentos produzidos em nosso continente” (STRECK, ADAMS, 2014, p. 31). O fardo que o sul global se encontra é relacionado com os resquícios do colonialismo que podem ser entendidos em três frentes diferentes:
- um resquício em relação ao próprio lugar no mundo, ao próprio senso de emancipação retirado depois de séculos de colonialismo, entendido como a colonialidade do ser;
- um requício em relação à própria organização social e à distribuição da autoridade e da possibilidade de exercício do poder seja internamente ou em relação ao capitalismo global, que é a colonialidade do poder;
- um requício relacionado à própria maneira de se entender o mundo e estabelecer os critérios da verdade, o que torna a produção de conhecimento no sul global dependente do tipo de conhecimento legitimado no norte, que é entendido como a colonialidade do saber;
Este caminho próprio, na segunda metade do século XX, pode ser localizado num movimento de produção de conhecimento que pode ser caracterizado como produtor de um giro metodológico. Este giro é alicerçado em metodologias participativas com fins emancipatórios para os sujeitos envolvidos e que, em vez de caminhar até o fenômeno com uma série de verdades a priori, reconhecem a necessidade de construir o próprio fenômeno a partir da participação daqueles que geralmente são denominados sujeitos da pesquisa. A metodologia Investigación-acción participativa (IAP) é a mais conhecida.
O sociólogo colombiano Orlando Fals Borda é o nome associado a esta metodologia. Ele a descreve como:
- um trabalho que busca compreensão histórica e social dos grupos mais vulnerabilidades num contexto de expansão do capitalismo na colômbia;
- uma tentativa de articular as interpretações históricas com as atividades organizacionais locais e nacionais no contexto das lutas de classe;
- uma maneira de tornar os intelectuais pesquisadores em membros de uma pesquisa que preconiza a ação e os torna agentes de organização local;
- uma aplicação de um trabalho desassociado aos partidos políticos vigentes, embora aberto a organizações que tivessem interesse na metodologia.
São quatro pontos que visam superar as situações de dominação que manifestam a colonialidade do poder, que buscam emancipar os participantes combatendo a colonialidade do ser e que busca uma produção de conhecimento em conjunto com os participantes locais, resistindo à colonialidade do saber.
No Brasil, a figura pioneira é a de Paulo Freire e seus projetos de alfabetização de adultos na cidade de Angicos, no ano de 1960, em que uma equipe interdisciplinar teria a responsabilidade de investigar temas e palavras que tivessem relação direta com a realidade vivida pelas populações locais para, então, construir uma ação pedagógica crítica com vistas não só de ensinar o alfabeto mas de tornar a palavra uma arma de entendimento e transformação da realidade. “Todos compartilhavam, com papéis distintos, o protagonismo no desvelamento e na pronúncia do mundo” (STRECK, ADAMS, 2014, p. 34).
Tanto Paulo Freire como Fals Borda operacionalizaram a pesquisa participante em seus contextos locais e tiveram como referência trabalhos que já eram desenvolvidos neste sentido. Este tipo de trabalho pode ser entendido, enquanto fenômeno multidisciplinar, como uma união entre a ação investigativa, educativa e política:
(1) rompimento do monopólio do saber e da informação pelos intelectuais e pesquisadores através da produção coletiva dos conhecimentos e a apropriação dos mesmos pelos “grupos marginalizados” em suas lutas; (2) análise crítica coletiva dos dados produzidos no processo de investigação, buscando as cuasas dos problemas e as alternativas de solução; (3) compreensão da relação entre problemas individuais e coletivos, funcionais e estruturais (STRECK, ADAMS, 2014, p. 34).
Há, portanto, neste processo de investigação participante, um componente emancipatório que se situa horizontalmente com a importância dos próprios resultados da pesquisa. Ou seja, a pesquisa não visa somente entregar resultados, mas busca a produção de subjetividades emancipadas que potencialmente perpetuem a criticidade na vida cotidiana, em sua própria organização, na vida política local e, finalmente, na vida política nacional.
Trata-se de uma metodologia que permite a experiência da produção intencional e coletiva de conhecimento que reconhece a complexidade da ação social e reconstrói, recupera a história local e a memória coletiva, além de contribuir para uma interpretação da lógica e do sentido da própria experiência que cada participante tem em sua vida. No fim, trata-se de uma pesquisa que, além do nível cognitivo, busca uma melhora da prática, um aumento da eficácia social das ações e um aumento da própria riqueza cultural das experiências.
Considerações finais
O conjunto de propostas de pesquisa participante
precisam ser compreendidas como construções históricas que se colocam como resistência e reação ao utras formas de geração de conhecimento que têm servido, durante séculos, à manutenção de uma matriz cultural e epistêmica que temos caracterizado como colonialidade (STRECK, ADAMS, 2014, p. 36).
São práticas políticas e pedagógicas que surgem no próprio movimento de descolonialidade das sociedades que dela se servem e se ligam sobretudo às práticas de educação popular. Ou seja, a própria pesquisa, independentemente da linha de pesquisa e do tema que seja possível lhe dar, atuará como atitude pedagógica, na medida em que promoverá que todos os participantes construam coletivamente o conhecimento e tornem factível o próprio significado da palavra “emancipação”.
Assim, a emancipação se liga à carne, se expressa na palavra, transforma a subjetividade dos participantes e não só sua cognição. Tomando como exemplo o trabalho de Paulo Freire: não só ensina a ler e escrever, mas constrói, em conjunto com os participantes, a própria histórica local e a memória coletiva por meio da prática da leitura e da escrita, por meio da aproximação que a leitura e a escrita podem ter com a vida política, econômica e cultural.
Referência
STRECK, Danilo Romeu; ADAMS, Telmo. Pesquisa participativa, emancipação e (des)colonialidade. Curitiba, PR: CRV, 2014
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.