A pesquisa participante: o que é? Como funciona?

A emancipação se liga à carne, se expressa na palavra, transforma a subjetividade dos participantes e não só sua cognição. Tomando como exemplo o trabalho de Paulo Freire: não só ensina a ler e escrever, mas constrói, em conjunto com os participantes, a própria histórica local e a memória coletiva por meio da prática da leitura e da escrita, por meio da aproximação que a leitura e a escrita podem ter com a vida política, econômica e cultural. 

Índice

Introdução

A produção de conhecimento é ligada diretamente à própria vida local dos produtores de conhecimento. Este princípio materialista de entendimento do próprio conhecimento como aquilo que é produzido e não simplesmente descoberta revela uma preocupação que se situa, utilizando o vocabulário de Michel Foucault, no nível do saber do poder.

Uma preocupação com a universalização do conhecimento local que, na prática, funciona enquanto dominação. Uma dominação no nível do saber, da própria legitimidade da produção do conhecimento vinda majoritariamente dos países do norte global; uma dominação no nível do poder, em que a estrutura universitária produz intelectuais experts na reprodução do conhecimento fabricado pelo norte. Esta mesma estrutura tende a dificultar a validação dos conhecimentos produzidos localmente.

O objetivo deste artigo é expor uma visão inicial sobre a pesquisa participante enquanto ferramenta de emancipação e criação coletiva de conhecimento com base no livro Pesquia participativa, emancipação e (des)colonialidade de Danilo Streck e Talmo Adams.

O que é pesquisa participante

A pesquisa participante visa modificar a relação que existe entre pesquisador e objeto de pesquisa e sujeitos de pesquisa. Nesta transformação, a atividade participativa é colocada numa perspectiva de eficiência para o território em que está sendo praticada, em conjunto com os sujeitos da pesquisa em todo desenrolar do projeto e, de certa forma, dividindo a autoria com os participantes.

Essa modalidade de pesquisa apresenta dois atributos básicos: relação de reciprocidade entre sujeito e objeto e relação dialética entre teoria e prática. Isso significa que o conhecimento da realidade só se dá no estabelecimento de uma relação entre pesquisador, técnicos, grupos, em que já não se pode mais falar na separação produzida pela dicotomia entre sujeito e objeto da investigação e entre teoria e prática (SILVA, 2006, p. 125).

Com a superação destas dicotomias, também existe a superação de uma posição confortável ao pesquisador: este não poderá mais ser o dono da pesquisa e aquele que controla os resultados ou guia os objetivos da pesquisa. Caberá ao pesquisador participar em conjunto da condução da pesquisa ao mesmo tempo em que será conduzido pelas decisões que talvez não lhe sejam previsíveis.

Desde que nasce a experiência freireana – tanto pedagógica como psicológica e sociológica -, os modelos hegemônicos de pesquisa, educação e ação política são questionados. Buscam-se estratégias para superar as dicotomias de sujeito-objeto e de teoria-prática, sempre presentes na pesquisa em educação. Pretende-se, ademais, uma produção coletiva de conhecimentos, centrada nas viviências e necessidades de grupos agrários dominados, secularmente explorados e pobres, com a finalidade de conscientizá-los de sua problemática, propor e atuar em vista de possíveis soluções concretas (GABARRÓN, LANDA, 2006, pp. 103-104)

Este tipo de pesquisa, salienta SILVA (2006, p. 125), pode ser dividida em duas dimensões integradas, que são separadas pelo momento e pelo objetivo. A pesquisa pode ter um objetivo de contrução de um conhecimento comum ou pode direcionar um conhecimento comum construído para sua utilização dentro do território pesquisado:

O que se apresenta em duas dimensões: uma dimensão educativa dos envolvidos diretamente no processo de construção do conhecimento, denominado por Freire (1981) de dimensão pedagógica, e uma dimensão coletiva e formativa quando referencia ou fundamenta outros sujeitos que se utilizam do conhecimento construído.

Evidentemente, o resultado é a construção de dois aspectos fundamentais da pesquisa participante, a saber, um relacionado ao protagonismo dos participantes, que não são vistos somente como aqueles que recebem algo (um benefício, um resultado, etc) e, ao mesmo tempo, outro relacionado ao projeto coletivo de uma sociedade de sujeitos emancipados, em que a pesquisa local é integrada com uma perspectiva ampla de transformação social. Segundo Carlos Brandão:

A primeira: agentes sociais populares são considerados mais do que apenas beneficiários passivos dos efeitos diretos e indiretos da pesquisa e da promoção social dela decorrente ou a ela associada. Homens e mulheres de comunidades populares são vistos como sujeitos cuja presença ativa e crítica atribui sentido à pesquisa participante (BRANDÃO, 2006, p. 23)

E continua:

Segunda: em outra direção, a própria investigação social deve estar integrada em trajetórias de organização popular e, assim, ela deve participar de amplos processos de ação social de uma crescente e irreversível vocação popular. Uma articulação de ações de que a pesquisa participante é um entre outros instrumentos (BRANDÃO, 2006, p. 24).

Evidentemente, neste tipo de pesquisa é muito valorizado a capacidade de negociação, de troca, de partilha e, acima de tudo de reconhecimento do outro enquanto sujeito protagonista da pesquisa. Estas formas de olhar para o outro são fundamentadas em uma teoria do sujeito humanista que poderá, no trajeto da pesquisa, não só produzir uma memória coletiva, um conhecimento coletivo, mas também produzir sua própria autonomia e um sentido político para sua própria vida.

Em palavras caras na tradição da pesquisa participante podemos dizer que a mesma se realiza através de um movimento em que troca, partilha e negociação cultural se complementam. Troca sugere reciprocidade, predisposição de dar e receber. Partilha indica a gratuidade numa relação em que a reciprocidade está no próprio gesto de repartir o que se tem. Já a negociação remete ao fato de que nossas ações estão necessariamente transpassadas por relações de poder. A pesquisa participante é um pouco de cada. E nesse “pouco de cada” é tudo, pois gera o movimento (SOBOTTKA, EGGERT, STRECK, 2006, p. 187).

Por fim, as pesquisas participantes, em sua dimensão pedagógica, são efetivamente o resultado de sete características recorrentes nos projetos aplicados pela América do Sul:

Dicho paradigma, en el que se inspuran la mayoría de las experiencias de educación popular reconoce, al menos, siete características básicas, a saber: parten de la realidad de los participantes, de su situación a su ubicación económico-social; se vinculan a la acción; valoran la cultura popular; se basan en relaciones pedagógicas horizontales; propician la organización de base; proceden en forma grupal, comunitaria, democrática; se establecen sobre una base institucional varíada, entre ellos, centros privados, instituciones públicas y, a veces, algunos ministerios de educación (GAJARDO, 1985, p. 75).

A horizontalidade é elemento fundmental para que a pesquisa possa acontecer e, por fim, ter algum resultado. Ela é importante porque tanto a delimitação do problema como a proposta de solução estão diretamente relacionadas às reuniões entre todos os participantes que são responsáveis por dar conta da decisão. O ato de decidir coletivamente é central, na medida em que necessita de diálogo e, ao mesmo tempo, protagonismo. As vozes são escutadas e são debatidas. A horizontalidade constitui um corpo preparado para a libertação.

A produção coletiva

Partimos do pressuposto de que a pesquisa e a educação na América Latina estão imbricadas nos condicionantes históricos do colonialismo e, porsteriormente, da colonialidade. Tais processos produziram e continuam produzindo heranças culturais de subserviência que tendem a perpetuar-nos como imitadores no contexto de reestruturação produtiva do capitalismo (STRECK, ADAMS, 2014, p. 31).

Neste contexto, resta ao pesquisador do sul global inventar de maneira criativa abordagens que se adequem à realidade local. Esta invenção não está localizada meramente num nível do método, mas também num nível epistemológico, ou seja, do próprio resgate de epistemologias que sejam adequadas ao local, que respeitem o território da pesquisa, do território que torna possível a emergência de problemas concretos na vida das pessoas concretas.

Por conta disso, é necessário “conquistar um caminho próprio que possa potencializar os saberes e conhecimentos produzidos em nosso continente” (STRECK, ADAMS, 2014, p. 31). O fardo que o sul global se encontra é relacionado com os resquícios do colonialismo que podem ser entendidos em três frentes diferentes:

  1. um resquício em relação ao próprio lugar no mundo, ao próprio senso de emancipação retirado depois de séculos de colonialismo, entendido como a colonialidade do ser;
  2. um requício em relação à própria organização social e à distribuição da autoridade e da possibilidade de exercício do poder seja internamente ou em relação ao capitalismo global, que é a colonialidade do poder;
  3. um requício relacionado à própria maneira de se entender o mundo e estabelecer os critérios da verdade, o que torna a produção de conhecimento no sul global dependente do tipo de conhecimento legitimado no norte, que é entendido como a colonialidade do saber;

Este caminho próprio, na segunda metade do século XX, pode ser localizado num movimento de produção de conhecimento que pode ser caracterizado como produtor de um giro metodológico. Este giro é alicerçado em metodologias participativas com fins emancipatórios para os sujeitos envolvidos e que, em vez de caminhar até o fenômeno com uma série de verdades a priori, reconhecem a necessidade de construir o próprio fenômeno a partir da participação daqueles que geralmente são denominados sujeitos da pesquisa. A metodologia Investigación-acción participativa (IAP) é a mais conhecida.

O sociólogo colombiano Orlando Fals Borda é o nome associado a esta metodologia. Ele a descreve como:

  1. um trabalho que busca compreensão histórica e social dos grupos mais vulnerabilidades num contexto de expansão do capitalismo na colômbia;
  2. uma tentativa de articular as interpretações históricas com as atividades organizacionais locais e nacionais no contexto das lutas de classe;
  3. uma maneira de tornar os intelectuais pesquisadores em membros de uma pesquisa que preconiza a ação e os torna agentes de organização local;
  4. uma aplicação de um trabalho desassociado aos partidos políticos vigentes, embora aberto a organizações que tivessem interesse na metodologia.

São quatro pontos que visam superar as situações de dominação que manifestam a colonialidade do poder, que buscam emancipar os participantes combatendo a colonialidade do ser e que busca uma produção de conhecimento em conjunto com os participantes locais, resistindo à colonialidade do saber.

No Brasil, a figura pioneira é a de Paulo Freire e seus projetos de alfabetização de adultos na cidade de Angicos, no ano de 1960, em que uma equipe interdisciplinar teria a responsabilidade de investigar temas e palavras que tivessem relação direta com a realidade vivida pelas populações locais para, então, construir uma ação pedagógica crítica com vistas não só de ensinar o alfabeto mas de tornar a palavra uma arma de entendimento e transformação da realidade. “Todos compartilhavam, com papéis distintos, o protagonismo no desvelamento e na pronúncia do mundo” (STRECK, ADAMS, 2014, p. 34).

Tanto Paulo Freire como Fals Borda operacionalizaram a pesquisa participante em seus contextos locais e tiveram como referência trabalhos que já eram desenvolvidos neste sentido. Este tipo de trabalho pode ser entendido, enquanto fenômeno multidisciplinar, como uma união entre a ação investigativa, educativa e política:

(1) rompimento do monopólio do saber e da informação pelos intelectuais e pesquisadores através da produção coletiva dos conhecimentos e a apropriação dos mesmos pelos “grupos marginalizados” em suas lutas; (2) análise crítica coletiva dos dados produzidos no processo de investigação, buscando as cuasas dos problemas e as alternativas de solução; (3) compreensão da relação entre problemas individuais e coletivos, funcionais e estruturais (STRECK, ADAMS, 2014, p. 34).

Há, portanto, neste processo de investigação participante, um componente emancipatório que se situa horizontalmente com a importância dos próprios resultados da pesquisa. Ou seja, a pesquisa não visa somente entregar resultados, mas busca a produção de subjetividades emancipadas que potencialmente perpetuem a criticidade na vida cotidiana, em sua própria organização, na vida política local e, finalmente, na vida política nacional.

Trata-se de uma metodologia que permite a experiência da produção intencional e coletiva de conhecimento que reconhece a complexidade da ação social e reconstrói, recupera a história local e a memória coletiva, além de contribuir para uma interpretação da lógica e do sentido da própria experiência que cada participante tem em sua vida. No fim, trata-se de uma pesquisa que, além do nível cognitivo, busca uma melhora da prática, um aumento da eficácia social das ações e um aumento da própria riqueza cultural das experiências.

Considerações finais

O conjunto de propostas de pesquisa participante

precisam ser compreendidas como construções históricas que se colocam como resistência e reação ao utras formas de geração de conhecimento que têm servido, durante séculos, à manutenção de uma matriz cultural e epistêmica que temos caracterizado como colonialidade (STRECK, ADAMS, 2014, p. 36).

São práticas políticas e pedagógicas que surgem no próprio movimento de descolonialidade das sociedades que dela se servem e se ligam sobretudo às práticas de educação popular. Ou seja, a própria pesquisa, independentemente da linha de pesquisa e do tema que seja possível lhe dar, atuará como atitude pedagógica, na medida em que promoverá que todos os participantes construam coletivamente o conhecimento e tornem factível o próprio significado da palavra “emancipação”.

Assim, a emancipação se liga à carne, se expressa na palavra, transforma a subjetividade dos participantes e não só sua cognição. Tomando como exemplo o trabalho de Paulo Freire: não só ensina a ler e escrever, mas constrói, em conjunto com os participantes, a própria histórica local e a memória coletiva por meio da prática da leitura e da escrita, por meio da aproximação que a leitura e a escrita podem ter com a vida política, econômica e cultural.

Referência

GABARRÓN, L.; LANDA, L. O que é a pesquisa participante. IN C. R. Brandão, D. Streck (Orgs.). Pesquisa participante: a partilha do saber. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2006.

GAJARDO, M. Investigacion participativa en America Latina. Documento de trabajo, Programa FLACSO-Santiago de Chile, número 261, 1985.

SILVA, M. O. S. Reconstruindo um processo participativo na produção do conhecimento. IN C. R. Brandão, D. Streck (Orgs.). Pesquisa participante: a partilha do saber. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2006.

SOBOTTKA, E.; EGGERT, E.; STRECK, D. A pesquisa como mediação político-pedagógica. IN C. R. Brandão, D. Streck (Orgs.). Pesquisa participante: a partilha do saber. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2006.

STRECK, Danilo Romeu; ADAMS, Telmo. Pesquisa participativa, emancipação e (des)colonialidade. Curitiba, PR: CRV, 2014

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