BAUMAN, Zygmunt. A sociedade dos consumidores IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub, s.p.
O segredo de todo sistema social durável (ou seja, que se auto-reproduz com sucesso) é transformar seus “pré-requisitos funcionais” em motivos comportamentais dos atores.
Para apresentar de maneira diferente, o segredo de toda “socialização” bem sucedida é fazer os indivíduos desejarem realizar o que é necessário para capacitar o sistema a se auto-reproduzir. Isso pode ser feito aberta e explicitamente, reunindo e reforçando o apoio para os interesses declarados de uma “totalidade”, como um Estado ou nação, por um processo intitulado, de maneira variada, “mobilização espiritual”, “educação cívica” ou “doutrinação ideológica”, como em geral se fazia na fase “sólida” da modernidade, na “sociedade de produtores”. Ou pode ser feito de modo sub-reptício e oblíquo, por meio do reforço e do treinamento de certos padrões comportamentais, assim como pela adoção de determinados modelos de solução de problemas que – uma vez empregados e observados (como devem ser, pois as escolhas alternativas recuam e desaparecem com o gradual, mas implacável, esquecimento das habilidades necessárias para praticá-las) – vão sustentar a monótona reprodução do sistema, como costuma ser feito na fase “líquida” da modernidade, que por acaso também é a época da sociedade de consumidores.
Essa forma de vincular os “pré-requisitos sistêmicos” aos motivos individuais típicos da sociedade de produtores exigia uma desvalorização do “agora”, em particular da satisfação imediata e, de modo mais geral, do prazer (ou daquilo que os franceses querem dizer com o conceito intraduzível de jouissance). O “presente” tinha, em favor do “futuro”, de ser rebaixado para o segundo plano, e desse modo desistia de seu significado como refém das reviravoltas ainda não reveladas de uma história que se acreditava domesticada, conquistada e controlada precisamente por meio do conhecimento de suas leis e exigências. O “presente” era apenas um meio em relação a um fim, ou seja, para uma felicidade que sempre estava no futuro, sempre “ainda não”.
Na mesma linha, essa forma de coordenar pré-requisitos sistêmicos com motivos individuais também tinha necessariamente de promover a procrastinação, e em particular de entronizar o preceito de “retardar” ou renunciar à “satisfação” – isto é, o preceito de sacrificar recompensas bem específicas e disponíveis de imediato em nome de benefícios futuros imprecisos; assim como sacrificar recompensas individuais em detrimento do “todo” (seja ele a sociedade, o Estado, a nação, a classe, o gênero ou apenas um “nós” deliberadamente inespecífico), acreditando que isso, no devido tempo, garantiria uma vida melhor para todos. Em uma sociedade de produtores, o “longo prazo” tinha preferência sobre o “curto prazo”, e as necessidades do “todo” tinham prioridade em relação às necessidades de suas “partes”. As alegrias e as satisfações extraídas dos valores “eternos” e “supra-individuais” eram consideradas superiores aos efêmeros enlevos individuais, enquanto os enlevos da coletividade eram colocados acima da sorte dos poucos, sendo vistos como as únicas satisfações válidas e genuínas em meio à multiplicidade de “prazeres do momento”, sedutores mas falsos, inventados, ilusórios e, em última instância, degradantes.
Tendo aprendido com a experiência, nós (homens e mulheres que levamos nossas vidas no ambiente líquido-moderno) estamos muito mais inclinados a rejeitar essa forma de reprodução sistêmica combinada com motivações individuais e considerá-la destrutiva, exorbitantemente cara e, acima de tudo, abominavelmente opressiva – já que ela vai contra a essência das propensões “naturais” humanas. Sigmund Freud foi um dos primeiros intelectuais a notar isso – embora até mesmo esse requintado pensador, ao colher seus dados, como tinha de fazê-lo, de uma existência vivida num momento de ascensão da
sociedade da indústria de massa e do recrutamento em massa, tenha sido incapaz de conceber uma alternativa à repressão coerciva dos instintos, e assim atribuiu ao que observou a condição genérica de características necessárias e inevitáveis de toda e qualquer civilização: da civilização “como tal”.
Em nenhum lugar e em circunstância alguma, concluiu Freud, a exigência da renúncia ao instinto será abraçada de bom grado. A maioria substantiva dos seres humanos obedece a muitos dos preceitos ou proibições naturais “apenas sob a pressão da coerção externa”. “É alarmante pensar no enorme volume de coerção que será inevitavelmente exigido” para promover, instilar e tornar seguras as escolhas civilizatórias necessárias, tais como a ética do trabalho (ou seja, uma condenação indiscriminada do lazer acoplada ao mandamento do trabalho pelo trabalho, não importa a recompensa), ou a ética da coabitação pacífica proposta pelo mandamento “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (“Qual a finalidade de um preceito enunciado de maneira tão solene”, pergunta Freud de forma retórica, “se sua realização não pode ser recomendada como razoável?”).
O restante do argumento de Freud sobre o arcabouço coercivo de que todas as civilizações necessitam para permanecerem de pé é muito bem conhecido para ser reapresentado aqui em detalhes. A conclusão geral, como sabemos, foi de que toda e qualquer civilização deve ser sustentada pela repressão, já que certo volume de dissensão em ebulição constante e de rebeliões esporádicas, mas repetitivas, assim como um esforço contínuo para controlá-las e superá-las, é inevitável. A deslealdade e o motim não podem ser evitados, já que toda civilização significa a contenção repressiva de instintos humanos, e toda restrição é repulsiva.
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