Comunidade e indivíduos – Zygmunt Bauman

A comunidade, na modernidade líquida, torna-se uma ideia materializada nas instituições que garantem a ordem numa sociedade de alta divisão do trabalho. Ao propor este olhar à modernidade líquida, Bauman entende que as comunidades representam a tentativa brutal de tornar seguro um dia a dia incerto e fluido.

Comunidade é tanto um ente artificial que se naturaliza em instituições ou discursos, que liga pessoas a partir de características específicas racionalizadas, como um ente não artificial quando liga indivíduos estruturalmente por sua localização ou sexo por exemplo. Para Zygmunt Bauman, a comunidade pré-moderna existia justamente na ausência da instituição ou do discurso comunitário, por meio de uma naturalização do cotidiano.

A naturalização no cotidiano da comunidade é a aplicação de seu poder de maneira eficiente. A comunidade, que é colocada em oposição ao indivíduo, não tinha qualquer necessidade de se opor realmente ao poder do indivíduo, ou seja, a sua relação com a coletividade. Sendo assim, tratava-se de um poder exercido na base de possibilidades daquilo que o indivíduo poderia assumir em sua prática social:

O “poder da comunidade”, em particular de uma comunidade artificialmente construída, trazida à luz no curso da construção de uma civilização ou nação, não tinha que substituir “o poder do indivíduo” para tornar a coabitação factível e viável. O poder da comunidade funcionava muito antes do descobrimento de sua necessidade, para não falar de sua urgência.[1]

A localização do poder das comunidades pré-modernas era oculta na convivência, na extrema tangibilidade de sua prática. Utilizo a noção de solidariedade mecânica de Emile Durkheim para exemplificar a ocultação do poder de comunidade, que a organiza por meio da coesão e da aglutinação de indivíduos com modos de pensar, sentir e agir similares e vigiados por um tipo de poder repressivo que atravessa todo tecido social.

Existe uma solidariedade social proveniente do fato de que certo número de estados de consciência são comuns a todos os membros da mesma sociedade. É ela que o direito repressivo figura materialmente, pelo menos no que ela tem de essencial. O papel que ela representa na integração geral da sociedade depende, evidentemente, da maior ou menor extensão da vida social que a consciência comum abraça e regulamenta.[2]


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Convém estabelecer uma relação de generosidade com o sociólogo francês e entender que os estados de consciência comuns a todos os membros da sociedade não são somente os mesmos valores ou opiniões, que podem até ser contraditórios a depender da situação. Apesar de relevante para a coesão social, um mesmo valor ou uma mesma opinião são fundadas pela mesma base de conceitos que, ao existirem, promovem inclusive a possibilidade da discussão. Ou seja, como exemplo ilustrativo, não se trata somente de todos os indivíduos considerarem que família é a ligação entre marido, mulher e filhos, é mais importante o valor e a função da instituição familiar. A coesão advém da identidade entre a localização dos valores, das opiniões, a partir de conceitos comuns.

O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria; podemos chamá-lo de consciência coletiva ou comum.[3]

A consciência coletiva não é produto de uma mesma opinião específica encontrada nas falas de todos os indivíduos, mas de uma mesma base conceitual que permite a existência de opinião até mesmo divergentes, mas que, para divergir, convergem na base conceitual que fundamenta sua existência.

A dicotomia entre exclusão e inclusão, portanto, é um elemento central na manutenção da solidariedade mecânica e, justamente por não estar no centro de uma série de normas que regularizam a interrelação, porém ainda ser imperiosa e definidora do pertencimento ou da exclusão, a coesão permanece oculta sob o manto da cotidianidade e sob o martelo da justiça punitiva.

Zygmunt Bauman entende que a cotidianidade da coesão social faz com que a presença da comunidade seja evidente demais para ser notada, tangível demais para ser localizada a parte dos indivíduos.

A comunidade sustentava o poder sobre o indivíduo (e um tipo de poder total, “tudo incluído”) enquanto ele permanecesse não problemático e não representasse uma tarefaque (como todas as outras) poderia ser ou deixar de ser cumprida. Em resumo, a comunidade mantinha os indivíduos nas garras dela enquanto eles vivessem na ignorância de “ser uma comunidade”.[4]

Mas a ascensão da modernidade, da necessidade da criação dos Estados-nação e da necessidade de inserir a nacionalidade como característica estrutural de coesão social formalizada na figura do Estado, inverteu a lógica dos poderes de comunidade e individual: a comunidade foi entendida como uma necessidade e o poder individual como aquilo que precisava se submeter a esta necessidade para a manutenção da sociedade.

Transformar a subordinação dos poderes do indivíduo aos poderes de uma “comunidade” em uma “necessidade” que esperava “ser atendida” e exigir medidas a serem tomadas de maneira deliberada inverteu a lógica das formas sociais pré-modernas – ainda que ao mesmo tempo, ao “naturalizar” o que era um processo histórico, tenha gerado de um só golpe sua própria legitimação e o mito etiológico de sua “origem”, “nascimento” ou “criação”.[5]

Ocorre nas sociedades modernas, então, um processo duplo: a naturalização do processo histórico que fez emergir a necessidade de uma coesão formalizada na nacionalidade, por exemplo; mas também a criação de uma origem artificial que racionaliza e justifica a oposição entre indivíduos e sociedade, a colocando como uma oposição que simboliza um novo degrau na escalada humana na evolução das formas de sociedade.

Como resultado desta análise e da divisão das comunidades pré-modernas e modernas (e também comunidades pós-modernas, como inseridas no livro Modernidade Líquida), Bauman compreende que comunidade e humanidade enquanto formas materiais de associação podem até coincidir em sua permanência e existência na história, “mas a idéia de ‘comunidade’ como condição sine qua non da humanidade só poderia ter nascido com a experiência de sua crise”[6]. Ou seja, é somente a crise da solidariedade mecânica que pode emergir normas explícitas que colocam em cena a oposição entre indivíduo e sociedade sob a forma do controle do indivíduo para a manutenção da comunidade. A crise da comunidade é sua condição de possibilidade de emergência discursiva, esta crise é o acontecimento discursivo que insere o conceito de comunidade no discurso sócio-político.

Essa idéia foi construída a partir dos medos que emanavam da desintegração dos ambientes sociais auto-reprodutores anteriores – depois chamados, em retrospectiva, de ancien régime e registrados no vocabulário das ciências sociais sob o nome de “sociedade tradicional”.[7]

Os ambientes sociais autorreprodutores são justamente o motor que naturaliza e torna tangível a reprodução da sociedade. Que fazem da comunidade um tecido pertencente às práticas sociais cotidianas, não majoritariamente à letra da lei.

A comunidade, assim, torna-se uma ideia materializada nas instituições que garantem a ordem numa sociedade de alta divisão do trabalho. Ao propor este olhar à modernidade líquida, Bauman entende que as comunidades representam a tentativa brutal de tornar seguro um dia a dia incerto e fluido. Entretanto, as comunidades líquidas não causam união estrutural de um número de indivíduos supostamente separados: as comunidades líquidas mantém a separação, mas causam uma união sob o modelo da cooperativa de consumo.

A noção de grupo morre e dá lugar, assim, ao enxame, um agrupamento que não necessita de líderes, hierarquias fortes e uma estrutura de poder visível. Um grupo em que os indivíduos se reúnem, se dispersam e talvez possam se reunir novamente, sempre para satisfazer objetivos imediatos individuais que são compartilhados.

Referências

[1] BAUMAN, Zygmunt. A sociedade dos consumidores IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub, s.p.

[2] Durkheim, Emile. Da divisão do trabalho social. Tradução: Eduardo Brandão, 2ª ed, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 83.

[3] Durkheim, Emile. Da divisão do trabalho social… p. 50.

[4] BAUMAN, Zygmunt. A sociedade dos consumidores….

[5] BAUMAN, Zygmunt. A sociedade dos consumidores….

[6] BAUMAN, Zygmunt. A sociedade dos consumidores….

[7] BAUMAN, Zygmunt. A sociedade dos consumidores….

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