Janta filosófica excepcional #1: A sociologia da religião em Friedrich Engels

A possibilidade de uma sociologia da religião em Engels se dá através de suas observações sobre o fenômeno religioso em relação às classes sociais e seus interesses, além das relações entre a esfera religiosa e a esfera política. Desta forma, não há espaço para a afirmação utilizada de maneira vulgar e essencialista "a religião é o ópio do povo".

Da série “Janta Filosófica“.

A religião é o ópio do povo? Talvez seja possível falar sobre uma religião que alimenta a alma humana e, em todo estado de penúria, seria possível encontrá-la como um cobertor quente esperando o corpo frio numa noite cansativa de inverno.

Ainda é possível examinar, em conjunto com Friedrich Engels, a religião enquanto fenômeno social, enquanto objeto passível de uma sociologia própria, de uma sociologia da religião. Enquanto fenômeno concreto que pode ou não desenvolver momentos de luta, de resistência ou de união de classe.

Em nosso encontro filosófico excepcional do dia 27 de janeiro, no canal do YouTube do Colunas Tortas, o pesquisador Wallace Cabral Ribeiro apresentou seu livro recém-lançado Religião e Revolução: a Sociologia da Religião de Friedrich Engels (editora Fi, 2021) e nos introduziu uma diferente visão sobre as experiências religiosas observadas por Engels.


Receba tudo em seu e-mail!

Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!


Engels compreende a relação entre religião e política como algo orgânico. Orgânico na medida em que se trata de “algo vivo, como política e religião se influenciam mutuamente, de tal forma que não é possível determinar onde um termina e o outro se inicia. Com Engels, um olhar que percebe determinação direta de uma esfera pela outra não funciona”, explica Wallace. Desta maneira, torna-se fundamental o debate acerca da religião enquanto fenômeno propriamente sociológico e ligado intimamente com a política. Segundo o pesquisador:

A história de que a religião é o ópio do povo não tem base no pensamento de Engels, porque ele não a compreende como ópio do povo. Na minha visão, esta é uma leitura equivocada que uma determinada tradição marxista produziu e sustentou durante décadas. Esta visão ainda forte e influente não só na militância política mas também em nível acadêmico, reflexivo e analítica. Produziu-se essa ideia de que a religião é necessariamente o ópio do povo.

Por sua vez, Engels parte do princípio de que a religião é um fenômeno social, portanto ela é construída historicamente e deve ser levado em consideração seus fatores estruturais, conjunturais, contextuais, situacionais e por isso não é possível definir a priori o que é o fenômeno religioso: ele sempre estará atrelado a uma dimensão enorme de distintos fatores. Para compreender o fenômeno religioso na perspectiva engelsiana, é necessário levar em consideração como os diversos elementos sociais se combinam entre si e geram as condições materiais da existência do fenômeno religioso. Não há necessidade e nem mesmo é produtivo qualquer conjunto de apriorismo na observação deste fenômeno.

É possível encontrar uma crítica marxista à religião enquanto fenômeno geral em Introdução à crítica do direito de Hegel (1844), de Marx, ou em Situação da Classe trabalhadora na Inglaterra (1845), em Engels. A crítica à religião ainda é inserida em termos feuerbachianos e Marx logo abandonou seu foco sobre a religião enquanto objeto de análise sistemática.

Engels, n’A Guerra Camponesa Alemã (1870), abordou o fenômeno religioso e elaborou um conjunto de reflexões em que é possível afirmar que a religião não contém qualquer essência, nada em si, nada propriamente em sua raiz. O autor analisa três correntes religiosas: 1) o campo católico estava vinculado a uma série de classes sociais que o caracterizava como reacionário; 2) o campo luterano estava associado a classes em que era possível delimitá-lo como moderado e 3) os anabatistas, campo menor mas ainda importante, estavam vinculados a determinadas classes sociais exploradas, pobres, oprimidas como os camponeses, o nascente proletariado e os plebeus. A partir dessas vinculações, este campo adquire uma caracterização revolucionária com perspectiva política em mútua relação com a fé.

A visão essencialista sobre a religião não é desprezível: ela é a forma de uma crítica focada em experiências específicas da religião. Segundo Wallace:

A religião sempre teve uma influência muito forte em diversas dimensões da vida pública, como a arte, filosofia, ciência, desporto, direito, humor e etc. A Igreja Católica, por sua vez, teve papel fundamental no processo de enraizamento da religião nos diversos espaços da vida. Ela era dona do mundo feudal e, naquele momento, poderia ser chamada de reacionária. Com o passar do tempo, mesmo após as revoluções burguesas, as religiões criaram novas formas de participação nas dimensões da vida em conjunto com um certo interesse político em combater veementemente essas religiões que eram forte e tinham uma certa atuação política na vida social, que influenciavam a política, acredito que interessava manter este combate na medida em que a Igreja Católica fazia parte dos conjunto de instituições responsáveis por agir como ideólogos, como produtores da ideologia dominante.

No entanto, observando como o fenômeno se apresenta na realidade, se percebe aproximações entre objetivos políticos e visões religiosas: essas aproximações não dependem da fidelidade à ideia de religião, mas se fazem no próprio desenrolar das lutas.

Nesta discussão, em conjunto com Friedrich Engels, o que menos importa é a existência ou não de Deus, mas o fenômeno religioso, fenômeno também social, portanto, passível de uma análise a partir das observações das relações sociais que se formam em torno e dentro do próprio fenômeno.

Para Engels, o importante não é se Jesus de Nazaré existiu ou não, pois o que lhe interessa é entender o cristianismo como um movimento das massas. Ele tentará compreender o que aconteceu para facilitar o surgimento deste movimento, na medida em que não foi nenhum apóstolo ou personalidade específica que deu este impulso inicial. Isso, levando com consideração a divisão entre classes sociais, a opressão do povo, a dominação romana em toda região da palestina analisada e diversos outros fatores que contribuíram para o nascimento do cristianismo enquanto movimento das massas e nova experiência religiosa.

O método materialista histórico exige partir das premissas culturais, sociais, econômicas e políticas para analisar qualquer fenômeno social. Assim, a análise dos movimentos, grupos, coletivos políticos deve ser feita, sob os olhos engelsianos, a partir da prática, da participação prática, real, destes grupos em seus locais de influência. “Analisa-se a experiência religiosa porque, sendo experiência, pode a qualquer momento mudar”, reitera Wallace.

Desta forma, pode-se entender a religião ou até mesmo a participação das igrejas através de sua real intervenção na vida:

Em número de fiéis, a Assembleia de Deus contém mais de 12 milhões de adeptos, enquanto a Igreja Universal não chega a dois milhões, mas que também é expressivo. A IURD é dona de um site, blogs, da rede aleluia que é composta por 65 estações de rádio que conseguem cobrir 90% do território nacional. Há plataformas de streaming da Universal, a rede Record, a plataforma R7, a Folha Universal – um dos jornais de maior circulação na América Latina – que tem uma prensagem de por volta dois milhões e meio de prensagens semanais. Além disso, livros, grupos no Whatsapp, YouTube, cada liderança tem seu Twitter. Trata-se de um conglomerado comunicativo e educacional, isso significa que eles podem fazer sugestões que podem ser acatadas pelo poder público.

As igrejas têm altíssima capacidade de alcance e, no caso brasileiro, partem de uma perspectiva reacionária, com objetivo de propagandear o empreendedorismo. Esta plataforma tecnológica e comunicativa é utilizada de maneira sistemática para opor as perspectivas comunistas com as religiosas, afirma Wallace.

Desta maneira, compreender o funcionamento da religião enquanto fenômeno social é uma maneira de entender como sua dinâmica entra em contato com as diferentes dinâmicas sociais de outras estruturas. Ao mesmo tempo, é essencial para a compreensão do jogo político que as religiões movimentam.

Deixe sua provocação! Comente aqui!