Às vezes, a verdade precisa ser dita apesar do que a maioria pensa.
Segundo Slavoj Zizek, essa verdade que está além da escolha precisa ser problematizada em termos políticos: a real situação de um país, de um governo ou de uma organização, não está nela mesma, ao mesmo tempo, não está nas pessoas que participam dela – ela advém de um impulso para incorporar a totalidade de maneira que o que é dito, mesmo se for a voz da minoria numérica, ainda será uma interpretação real. As informações são do Jacobin Magazine.
Para começar, é necessário empreender uma linha de argumentação simples, começando pela noção de “liberdade”. Zizek argumenta que a liberdade, como diz Marx, não deve ser encontrada estritamente no campo político (se há ou não eleições, se há respeito aos direitos humanos, se a imprensa é livre ou se o judiciário é livre), mas sim naquilo que está fora da política, ou seja, nas relações que permeiam do campo econômico até a estrutura interna da família.
Então, se percebe que uma real mudança não acontece quando se realiza reformas políticas, mas as transformações tomam corpo quando uma mudança nas relações sociais de produção é imposta – essa mudança só acontece com a luta de classes, conforme o autor.
Em uma democracia, por exemplo, nós não escolhemos nossas relações sociais de produção, não escolhemos nossas relações dentro da fábrica, isto está dado, nós temos que lidar com essas relações aprioristicamente.
No fim das contas, o voto livre, direitos humanos e a liberdade de imprensa, são parte dos aparelhos de exercício de poder controlados pela burguesia e não nos serviriam de nada.
De certa forma, apesar de importantes, eles são parte da manutenção do poder estatal pela burguesia, fazem parte do jogo político burguês, explica Zizek. “Desta forma, Badiou está certo em dizer que hoje, o nome do maior inimigo não é capitalismo, império, exploração ou algo similar, mas é a própria democracia.
A aceitação ilusória de que os mecanismos democráticos são a única forma realizar mudanças possíveis, o que previne qualquer transformação radical das relações capitalistas”, conta.
Então, ele continua, ao mesmo tempo em que desejamos desfetichizar a democracia, devemos também desfetichizar o seu contrário, ou seja, a violência.
No Estado burguês, toda violência é ilegítima e considerada como um mal que precisa ser combatido – até mesmo Badiou, ao desenvolver a ideia de que devemos ocupar espaços fora do exercício de poder do Estado, reserva à violência unicamente uma função defensiva, ou seja, devemos utilizá-la se o Estado tentar se infiltrar nesses espaços.
Entretanto, existe uma característica no Estado que não permite separá-lo da violência: dentro da perspectiva do Estado enquanto um aparelho repressor que tem como função última manter a “paz” pela submissão de um classe sobre outra, a sua própria existência é um sinal de violência.
Se isso é verdade, então todo ato de violência dos oprimidos são atos de violência defensiva, então não precisaríamos da redução de sua função feita por Badiou. “De uma perspectiva emancipatória radical, a lógica deve ser invertida: para os oprimidos a violência é sempre legítima (desde que seu status seja o resultado da violência a que eles estão expostos), mas nunca necessária (é sempre uma questão de estratégia utilizar ou não a violência contra o inimigo)”, explica o filósofo.
Como exemplo, podemos imaginar a situação da Venezuela, que tem sua economia dificultada por governos de outros países: será que ela poderia sumariamente expulsar os especuladores ou fazer vistorias em armazéns (para verificar se as empresas estão de fato sem estoque, ou se estão o segurando), ou será que isso seria chamado de “terror venezuelano”?
Nosso próximo passo é perguntar: por que um verdadeiro evento revolucionário implica em violência? Porque ele sempre parte de uma camada da sociedade que está dentro (como sub-grupo) e fora (por não ser incluída na representação que o Estado pode oferecer) dela. A verdade, como bem salientou Lênin, é revolucionária. Ela parte de um pedaço da sociedade que é negado pela própria sociedade – este pedaço que é impossibilitado de tudo é o pedaço verdadeiro.
Zizek argumenta que a verdade é irredutível a números. Ela não pode ser encontrada em uma maioria.
A verdade não é aquilo que está com a maioria, mas é aquilo que se posiciona como Eterna, portanto, a oposição de maioria x minoria é uma maneira de silenciar aqueles que estão do lado da minoria.
Baseando-se em Robespierre, a verdade revolucionária não está na votação, mas está na ação revolucionária, logo, não se deve fazer um plebiscito para decidir se o rei deve ser culpado ou não das condições que a França pré-revolução passava – o fato da revolução ter acontecido já faz do rei um culpado, colocar a sua culpa em votação seria colocar em questão a própria revolução.
“A frança estava em maus bocados em 1940, quando ninguém menos que o General de Gaulle, em um famoso pronunciamento em uma radio, de Londres, disse ao povo francês a “verdade forte”: França está acabada, mas a guerra não está terminada; contra os colaboradores de Marshal Petáin a guerra continua.
Quando De Gaulle se recusou em para sua resistência e prometeu continuar uma luta contra Marshal Petáin (candidato do Partido Comunista que poderia ser eleito com 90% dos votos em uma eleição comum), o que ele disse foi uma verdade em nome da França, não em nome de uma maioria francesa”, explica Zizek.
A verdade, portanto, como também afirma Robespierre, pertence às minorias, que devem levá-la ao público – a verdade está entre os renegados, “a minoria tem em todo lugar um direito eterno: tornar audível a voz da verdade”, disse o revolucionário francês.
O papel da verdade é ser a revolução, ser aquilo que deveria ser escondido e controlado: a verdade é revolucionária porque parte da camada que não vive as benesses do sistema e, assim, pode mostrar o que de fato ele é.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Muito boa essa série de artigos sobre o Zizek! Esclareceu muita coisa!