Da série “Necropolítica“.
Índice
Introdução
Em sua descrição, presente em Políticas da Inimizade (2020), sobre a relação entre dominadores e dominados na colônia, Achille Mbembe discorre acerca de duas maneiras do racismo se expressar na sociedade colonialista e em sua aplicação no território colonial.
O objetivo deste pequeno artigo é expor as duas maneiras que Mbembe descreve o racismo com influência dos escritos de Frantz Fanon e relacioná-las com a definição de nanorracismo proposta pelo autor camaronês e com o conceito de racismo estrutural proposto pelo pesquisador brasileiro Silvio Almeida em Racismo Estrutural (2019).
As duas formas
Inicialmente, Mbembe classifica duas formas, dois tipos específicos de racismo, sendo que (sempre citando Fanon):
- “Havia, de um lado, o racismo sem disfarces, vulgar, primitivo e simplista, que correspondia, a seu ver [de Fanon], ao ‘período de exploração brutal dos braços e das pernas do homem’. Era o racismo da época dos crânios que eram comparados. da quantidade e configuração dos sulcos do cérebro que se tentava identificar”[1]. Era o racismo da observação empírica e supostamente objetiva dos caracteres de inferioridade de uma raça em comparação a outras: “da labilidade emocional do negro, cuja lógica se almejava captar; da integração subcortical do árabe, que se pretendia definir; da culpa genérica do judeu, que se queria estabelecer; da dimensão das vértebras, que eram medidas; e dos aspectos microscópicos da epiderme, que se procurava determinar”[2]. Uma abordagem supostamente racional e supostamente científica que “buscou extrair sua autoridade da ciência, particularmente da biologia e da psicologia”[3].
- “De outro lado, grassava uma forma de racismo que Fanon chamou de cultural”[4], que é uma modificação do racismo vulgar: situada no campo da cultura, esta modalidade do racismo tinha como objetivo destacar negativamente os produtos culturais advindos das raças depreciadas pelo racismo vulgar e tinha como alvo “as roupas, a linguagem, as técnicas, as formas de comer, sentar-se, descansar, divertir-se, rir e, sobretudo, as relações com a sexualidade”[5].
Ou seja, há duas modalidades, sendo que a primeira é mais imediata, biologicista. Ela se relaciona com o corpo do indivíduo racializado, com suas características psicológicas, com aquilo que não é possível dissociar de sua existência. Nesta primeira modalidade, o corpo do indivíduo vítima do racismo é fixado no campo do objeto a ser dominado, é inserido neste campo “de dentro pra fora”, ou seja, a marca daquilo que merece o racismo está do lado de dentro da pele, é essência, não existência.
Já a segunda modalidade complementa a primeira, pois trabalha de fora pra dentro. A segunda modalidade torna “contaminados” os produtos culturais que as raças já fixadas como inferiores pelos saberes científicos produzem. O ciclo é fechado, assim, com duas delimitações: o racismo não afeta somente a vida individual, mas também a vida cultural dos povos racializados.
Os três níveis
Enquanto Mbembe salienta duas modalidades do racismo, englobando uma abordagem individual e uma abordagem cultural, Silvio Almeida salienta a existência de três níveis, de três abordagens do racismo:
- Uma concepção individualista: em que o racismo é entendido como patologia ou anormalidade. “Seria um fenômeno ético ou psicológico de caráter individual ou coletivo, atribuído a grupos isolados; ou, ainda, seria o racismo uma “irracionalidade” a ser combatida no campo jurídico por meio da aplicação de sanções civis – indenizações, por exemplo – ou penais”[6].
- Uma concepção institucional: aqui, o racismo “é tratado como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça”[7]. Ou seja, a própria constituição dos sujeitos a partir das instituições sociais reproduz o racismo. Uma maneira de intervir neste tipo de racismo seria, por exemplo, com ações afirmativas em escolas e universidades.
- Uma concepção estrutural: em que o racismo é localizado na própria sociedade. Esta visão não anula as ações possíveis de serem feitas pelas concepções apresentadas anteriormente, mas entende que “a viabilidade da reprodução sistêmica de práticas racistas está na organização política, econômica e jurídica da sociedade. O racismo se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e jurídica”[8]. O racismo, portanto, é presente nas estruturas profundas das sociedades, num nível anterior às instituições, porém “o uso do termo ‘estrutura’ não significa dizer que o racismo seja uma condição incontornável e que ações e políticas institucionais antirracistas sejam inúteis; ou, ainda, que indivíduos que cometam atos discriminatórios não devam ser pessoalmente responsabilizados”[9], mas significa que uma mudança nas próprias relações sociais é necessária.
O problema da concepção individualista é que, ao se situar no âmbito ético, não compreende a existência de sociedades ou instituições racistas. Haveria, unicamente, indivíduos racistas. Já a visão institucional, apesar de demonstrar uma evolução na abordagem sobre o tema, ainda não chega no ponto crucial: a existência de instituições racistas é a materialização de uma ordem social que já é propriamente racista, ou seja, alterações que fiquem somente no nível institucional nunca irão desmobilizar o racismo presente na própria sociedade, sendo assim, uma abordagem eficiente precisa penetrar a própria estrutura social: “o olhar estrutural sobre as relações raciais nos leva a concluir que a responsabilização jurídica não é suficiente para que a sociedade deixe de ser uma máquina produtora de desigualdade racial”[10].
Sendo assim, é possível relacionar este conteúdo exposto com a seção anterior do presente artigo da seguinte maneira: tanto a primeira como a segunda modalidade de racismo expostas por Mbembe (por intermédio de Fanon) estão situadas nas instituições, num nível institucional de prática racista, mas só existem na medida em que a própria estrutura social é racista.
Ao mesmo tempo, o nanorracismo está situado num nível de prática social individual, descrito por Mbembe como
forma narcótica do preconceito de cor que se expressa nos gestos aparentemente inócuos do dia a dia, por causa de uma insignificância, uma afirmação aparentemente inconsciente, uma brincadeira, uma alusão ou uma insinuação, lapso, uma piada, algo implícito e, que se diga com todas as letras, uma malícia voluntária, uma intenção maldosa, um menosprezo ou um estorvo deliberados, um obscuro desejo de estigmatizar e, acima de tudo, de agredir, de ferir e humilhar.[11]
Apesar de ser o resultado de práticas aprendidas e legitimadas socialmente, sua efetivação se dá num nível individual ou de grupo. A aproximação ao fenômeno concreto é individual, mas suas condições de possibilidade são estruturais e se situam nas próprias desigualdades raciais presente nas sociedades.
Assim, o racismo pode ser praticado individualmente, pode fazer parte das instituições sociais, mas
o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural.[12]
Uma revolução social é a medida para renormalizar as relações sociais e torná-las, assim, antirracistas.
Considerações finais
Desta forma, o racismo, como exposto por Mbembe, consegue fechar uma rede sobre o indivíduo e suas práticas, eliminando qualquer forma de integração de sua existência na sociedade racista.
Ao mesmo tempo, a partir de uma abordagem por níveis, Silvio Almeida consegue expor a ineficiência da abordagem que, ao observar as duas modalidades de racismo mostradas por Mbembe, as colocaria em âmbito individual ou institucional. O racismo, portanto, é um elemento da própria estrutura social.
Como elemento da estrutura, não é a modificação de uma instituição que pode combatê-lo. Por exemplo, “No caso do Brasil, o racismo contou com a inestimável participação das faculdades de medicina, das escolas de direito e dos museus de história natural”[13], e não só as ciências médicas contribuíram, como também as ciências sociais a partir do discurso socioantropológico da democracia racial brasileira, preenchendo com um sentido amplo as práticas racistas já cristalizadas na sociedade brasileira e, “No fim das contas, ao contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade”[14].
Nem mesmo uma caçada individual daria conta de acabar com o racismo, na medida em que a constituição dos indivíduos é racista. Só resta uma mudança na estrutura da sociedade que, se for pensada de maneira imediata, só pode acontecer através de algum tipo de revolução.
Referências
[1] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 130.
[2] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 130-131.
[3] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 130-131.
[4] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 131.
[5] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 131.
[6] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural. [Edição digital]. São Paulo: Pólen, 2019, p. 25.
[7] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p, 26.
[8] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p, 33.
[9] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p, 33.
[10] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p, 34.
[11] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 98.
[12] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p, 44.
[13] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p, 44.
[14] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p, 44.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.