As raízes cibernéticas do calvo da Campari

O calvo da Campari é o produto de um tipo específico de ideologia produzida e disseminada no Brasil principalmente a partir dos anos 2000 e com evidência na década de 2010. A misoginia polida da ideologia redpill tem raízes no discurso masculinista baseado em um reacionarismo indispostos às mudanças de época que estamos passando.

Ao longo dos últimos anos o masculinismo é disseminado na internet brasileira por diferentes nomes: desde coachs de sedução, até redpills, passando por MGTOWs e todas essas siglas estrangeiras que designam um estilo de vida masculino supostamente baseado na moralidade e no desenvolvimento pessoal. O calvo da Campari aparece neste contexto como uma emergência concreta deste caldeirão ideológico que foi responsável, para se ter um único exemplo concreto suficiente, pela tragédia de Realengo, no Rio de Janeiro em 2011.

Esta tragédia foi “inspirada” (“inspirar” é o verbo utilizado pelo jornalismo brasileiro para o ato), foi ideologicamente construída e possibilitada pela proliferação de conteúdo masculinista que, neste momento, irei referenciar a partir de um pioneiro: Silvio Koerich.


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Durante a década de 2010, no Brasil, houve um conflito extenuante entre duas pessoas específicas:

  1. Lola Aronovich: professora universitária e blogueira feminista que mantém o site Escreva Lola Escreva há mais de uma década e escreve sobre feminismo, machismo e masculinismo durante todo esse tempo.
  2. Silvio Koerich: masculinista em evidência na internet na década passada e retrasada. Foi responsável por distribuir a cultura masculinista pela internet brasileira e tinha como alvo principal o então deputado do PSOL Jean Willys, além da própria Lola.

Foi amplamente divulgada a prisão de Marcelo e Emerson, responsáveis por alimentarem o site silviokoerich.org em seu momento de maior preconceito e intolerância de gênero e racial. Cabe dizer que ambos tomaram o site à força do verdadeiro Silvio Koerich, após um desentendimento acerca das orientações ideológicas da dupla e do primeiro dono do site.

Neste texto, eu não vou me prender aos autores do conteúdo misógino do site de Silvio Koerich, nem irei me deter no masculinismo já misógino porém polido que era distribuído pelo dono anterior. Meu objetivo será mostrar as raízes cibernéticas desta ideologia reacionária que, atualmente, descambou no calvo da Campari e em todos esses coachs de sedução baseados em suposta ciência comportamental e suposto entendimento antropológico profundo da dinâmica de relacionamentos entre homens e mulheres.

Os ensinamentos do coach da Campari são desdobramentos do masculinismo nascente das décadas passadas. Podemos entender isso a partir, por exemplo, de um texto específico de Silvio Koerich de 2015:

Existe um mito acerca de que os homens são pegadores, comem geral, fazem sexo casual adoidado, ficam com dezenas de mulheres por semana. Pois quando vejo paspalhos ao meu redor falando isso, apenas faço uma cara séria máscula, dou um semi sorriso irônico de faroeste e penso: ” mentira, mentira, MENTIRA “.

Parem de mentir idiotas.

Eu sei que a maioria dos homens está numa situação que pega poucas mulheres. Isso se dá muito por razão, de homens que tem 20 anos de idade até 29 anos, são odiados pelas mulheres. Elas tem pavor de homens nessa idade. É uma idade de pouco dinheiro, feiúra, lado profissional péssimo, faculdade, busão, inexperiência.

O ressentimento transborda em uma concepção de relacionamentos baseada no ápice físico e financeiro do homem contra o ápice da beleza e juventude da mulher. Tal ressentimento é concretizado na fúria do homem jovem, que ainda não alcançou seu ápice masculino, em relação às mulheres que, por não o quererem, se veem “sem namorado”:

Tem até uma marcha criada por mulheres chamada: ” Marcha das sem namorado”.

Que lota em são Paulo e rio de janeiro.

O homem de 20 anos de bem olha isso e quase tem um ataque de fúria.

Por fim, o texto de Silvio termina com dicas de como ser homem sem se iludir com supostas promessas falsas do amor. Em sua lista de dicas, ele sugere que homens não sejam carecas, que tenham casa própria e carro para impressionar mulheres, que não sejam gordos, que estudem muito para conseguir as condições para satisfazer a necessidade de moradia e carro, acima de tudo, que aguentem até os 30 anos para gozarem deste suposto ápice natural e social da masculinidade.

Silvio Koerich também foi pioneiro na crítica aos relacionamentos com mães solteiras: “Se casar com uma mulher sem filhos já é uma decisão ESTÚPIDA, imagina com uma mamãe solteira”. Segundo o blogueiro:

A maioria das mães solteiras estão criando seus filhos com a ajuda de um membro da família (normalmente a sua mãe), um grupo de amigos e outras mães solteiras que elas encontram em grupos de suporte.

Em algum momento elas vêm com a idéia de ter um “companheiro”. Dando-se conta que elas têm uma desvantagem em ter uma criança e estar no mercado de solteiros, elas usam várias estratégias para conseguir um parceiro.

Após esta introdução, é descrita uma lista de estratégias que mães solteiras supostamente utilizariam para ludibriar o homem solteiro e fazê-lo assumir um relacionamento. Ao longo de seus textos, também é possível notar um toque de coachismo travestido de desenvolvimento pessoal misturado com segregação moral:

Nós, Guerreiros da Real (GDR), nos focamos no nosso desenvolvimento pessoal, estamos procurando evoluir a cada segundo de nossas vidas, e ficamos putos quando perdemos tempo procrastinando.

Nós ainda sabemos valorizar uma mulher de verdade, pois temos a honra e a moral como nortes na nossa vida.

Nós somos ativos que irão se supervalorizar com o passar do tempo. Nós temos a capacidade de evoluir infinitamente e melhorar a sociedade. Em resumo: NÓS SOMOS FODAS.

Estou inserindo estes exemplos para indicar que alguns pilares das ideias redpill que pululam pela internet são enraizadas em ensinamentos masculinistas de décadas. Até o momento, já vimos:

  1. Repúdio à vida ativa masculina;
  2. Repúdio à vida ativa feminina;
  3. Ressentimento masculino;
  4. Concepção de relacionamentos baseado num jogo hierárquico com regras pré-estabelecidas e fixadas estruturalmente;
  5. Concepção da vida baseado num naturalismo barato somado a uma visão individualista de sociedade;
  6. Ressentimento com mulheres que carregam o “ônus” da vida sexual ativa (as mães solteiras);
  7. Envelopamento da própria ideologia como um escudo de defesa para homens honrados que desejam desenvolvimento pessoal.

Quando saltamos alguns anos até chegarmos ao presente, presenciamos o calvo da campari polidamente instituindo tais pilares através de um discurso formatado retoricamente como conselhos de vida, como autoajuda masculina. É importante, neste momento voltarmos aos ensinamentos de Zygmunt Bauman, conforme proferidos em O mal-estar da pós-modernidade:

Homens e mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimista que possa, ou sustente que possa, transformar a incerteza de base em preciosa auto-segurança, e a autoridade da aprovação (em nome do conhecimento superior ou do acesso à sabedoria fechado aos outros) é a pedra filosofal que os alquimistas se gabam de possuir. A pós-modernidade é a era dos especialistas em “identificar problemas”, dos restauradores da personalidade, dos guias de casamento, dos autores de livros de “auto-afirmação”: é a era do “surto de aconselhamento” (p. 221-222).

A clássica misoginia, na pós-modernidade, é inserida num contexto de surto de aconselhamentos, em que a autoridade ouvida é aquela que se aproxima da verdade através da experiência, não exatamente através da reflexão. Claro, a verdade que se aproxima é ligada ao sujeito e sua identidade, mesmo que passe por roupagens de ciência comportamental ou antropologia, como é feito pelo masculinismo atualmente.

A reconstrução da identidade masculina nasce a partir de uma mudança de época que não necessariamente é atual: a emergência dos direitos das mulheres ou do combate à homofobia, por exemplo, não data de ontem. Desde a década de 70 estes assuntos são pautas em diferentes países e, aos poucos, transformam a própria maneira como a cultura se dispõe na realidade concreta através de nossos discursos e de nossas práticas não discursivas.

O calvo da Campari, no fundo, é um dos Silvios Koerichs que puderam sobreviver ao passar dos anos. É mais interessante desasujeitar esta situação: a ideologia que atravessa o calvo é o desdobramento de uma ideologia gestada na internet brasileiro em um momento obscuro de reprodução e produção de ideologia, num momento de possibilidade nascente de criação de grupos secretos para proliferação de ideais masculinistas, num momento de crescimento da utilização da internet pelo povo brasileiro.

A ideologia do calvo da Campari mata. Independentemente de sua ameaça à comediante que lhe galhofou ser literal ou figurada: não se trata da ameaça concreta somente… A ideologia que lhe embasa é de morte. É reacionária, pois é a reação masculina perante um mundo que já não carrega concretamente os valores da antiga vida masculina, planejada para colocá-lo na posição de provedor. Evidentemente, este estilo de vida ainda é hegemônico em diversos locais no Brasil. Vivemos em um país grande o bastante para ser necessário se aproximar da realidade para entender suas nuances. Mas há uma coisa explícita: esta cultura patriarcal convive com diversas outras e o masculinismo é a voz reacionária no mundo cultural de um estilo de vida patriarcal e, de longe, que lembra a busca por uma pureza no campo, no local da vida ingênua, da vida recheada por valores morais supostamente sólidos.

Infelizmente aos masculinistas, a vida mudou. A noção do campo enquanto local de pureza moral já não tem validade óbvia e precisa ser explicada, no entanto, nenhuma explicação consegue dar conta de tal noção estapafúrdia. O aroma patriarcal do Brasil está se modificando, o machismo está se modificando, a própria luta das mulheres exige adequações das estratégias discursivas opressoras. O masculinismo se contrapõe justamente a essa necessidade estratégica de modificação do patriarcado: sentiram o golpe.

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