Ascetismo e a vontade de nada em Nietzsche

O que é o ascetismo e como a vontade de nada se relaciona com ele na filosofia de Nietzsche? Clique aqui e veja!

Da série “Friedrich Nietzsche“.

Nietzsche e o ascetismo. Pintura: Les Messieurs d’Avignon, de Michael Kunze.
Les Messieurs d’Avignon, de Michael Kunze.

O que é a “vontade de nada” em Nietzsche? Como ela se relaciona com o ascetismo, ressentimento e sofrimento? De certa forma, Nietzsche responde à filosofia de Schopenhauer quando formula os caminhos da vontade até chegar ao nada.

É necessário começar pela terceira dissertação da Genealogia da Moral, O que significam ideias ascéticos. O texto revela diversos significados que os ideais ascéticos podem tomar, as diversas formas que ele pode ter,

O que significam ideais ascéticos? — Para os artistas nada, ou coisas demais; para os filósofos e eruditos, algo como instinto e faro para as condições propícias a uma elevada espiritualidade; para as mulheres, no melhor dos casos um encanto mais de sedução, um quê de morbidezza na carne bonita, a angelicidade de um belo e gordo animal; para os fisiologicamente deformados e desgraçados (a maioria dos mortais) uma tentativa de ver-se como “bons demais” para este mundo, uma forma abençoada de libertinagem, sua grande arma no combate à longa dor e ao tédio; para os sacerdotes, a característica fé sacerdotal, seu melhor instrumento de poder, e “suprema” licença de poder; para os santos, enfim, um pretexto para a hibernação, sua novissima gloriae cupido [novíssima cupidez de glória], seu descanso no nada (“Deus”), sua forma de demência. Porém, no fato de o ideal ascético haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana, o seu horror vacui [horror ao vácuo]: ele precisa de um objetivo — e preferirá ainda querer o nada a nada querer.[1] 

É importante entender esta última frase que irá compor, inclusive, o último aforismo da dissertação: o homem “preferirá ainda querer o nada a nada querer”. O nada representa algo de última importância, um faute de mieux (algo como aquilo que está lá pela falta de algo melhor)[2]. Ele é a última salvação, é o último lugar para o qual o querer pode apontar.

O ascetismo, assim, é a maneira de apontar um objeto para o querer, neste caso, o próprio nada, afinal, para Nietzsche, não há vida fora do querer: é possível querer o nada, mas não é possível deixar de querer. Para indicar como funciona esse querer-nada, Nietzsche indica três “palavras de pompa” do ideal ascético, “humildade, pobreza, castidade”[3].

O autor revela que é possível assumir as características acima sem se dedicar ao ideal ascético, é possível simplesmente se dedicar a um objetivo que, por ser grande e importante, pede tempo e foco,

observemos de perto as vidas dos grandes espíritos fecundos e inventivos — todas as três serão sempre encontradas até certo grau. Não, entende-se, que sejam talvez “virtudes” suas — que tem essa espécie de homens a ver com virtudes! — mas as condições mais próprias e mais naturais de sua existência melhor, de sua fecundidade mais bela. Nisto, é bem possível que sua espiritualidade dominante tivesse primeiramente de pôr freios num orgulho indomável e suscetível e numa sensualidade caprichosa, ou que tivesse a custo mantido sua vontade de “deserto” diante de um pendor ao luxo e ao rebuscamento.[4]

Este deserto, por sua vez, é a solidão de poder se concentrar num objetivo específico e perder-se na irrelevância do restante das coisas, é onde os espíritos fortes, os homens cultos, precisam se isolar,

Uma obscuridade voluntária, talvez; um evitar a si mesmo; uma aversão a barulho, veneração, jornais, influência; um emprego modesto, um cotidiano, algo que esconda mais do que exponha; ocasionalmente, contato com bichos e aves inofensivos e alegres, cuja visão distraia; montanhas como companhia, mas não mortas, e sim com olhos (ou seja, lagos); até mesmo um quarto numa pensão sempre lotada, onde se esteja seguro de ser confundido com outros, e de poder falar impunemente com qualquer um — isto é “deserto”: oh, é solitário o bastante, creiam-me![5]

Esta parcela de ascetismo faz parte das condições propícias para a melhora do homem, se trata de uma “dura e serena renúncia” que abre caminho para a elevação do espírito[6]. E é por isso que filósofos o abraçaram com carinho – como Schopenhauer, que será exposto mais à frente.

No entanto, este abraço carinhoso não torna o ascetismo menos contraditório. A vida ascética é dominada pelo ressentimento, é uma maneira de utilizar a “força para estancar a fonte da força”, um desejo de dominar a vida como um todo, não somente alguns objetos, ou seja, o desejo de dominar a própria vontade e, a partir disso, se voltar contra o próprio florescimento fisiológico, quando práticas de autoflagelo, perda voluntária e autossacrifício trazem satisfação. O paradoxo da vida ascética é este, portanto: quanto mais o corpo desvanece, quanto mais a vitalidade é perdida, maior é o domínio sobre a vida por completo e, assim, mais triunfante é o ascetismo

Mas porque o homem se rebaixaria ao ascetismo que claramente lhe causa a morte, a dor e o sofrimento? Pela busca do sentido.

Segundo Nietzsche, o homem é um animal doente e sua doença é a falta de sentido no mundo. Este sentido, por sua vez, é aquilo que irá dar razão para o sofrimento. O sentido que o sofrimento adquire, não obstante, anula o sofrimento causado pela falta de sentido que ele tinha.

O homem precisa de um sentido, de todo modo, para poder querer algo e o ideal ascético põe um fim ao sofrimento pela ausência de sentido. O homem também precisa de um sentido, para afirmar o sofrimento como um todo; e todo ideal suprime o sofrimento sem sentido […]O sofrimento torna-se, então, realmente questionável e insuportável, se ele é desprovido de sentido. O ideal ascético dá a cada sofrimento um sentido; e se um sentido é dado a ele, o homem pode até mesmo querer e procurar o sofrimento […] Deste modo, o ideal ascético supera, pura e simplesmente, as duas formas principais de sofrimento insuportável – o sofrimento pela ausência de sentido e a “ausência de sentido do sofrimento”[8]

O homem é doente, sofre, o ascetismo é uma tentativa de cura,

o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial inibição e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente combatem com novos meios e invenções.[9]

Assim, o ascetismo é a tentativa do sofredor manter-se vivo, criando algum significado para o mundo que o cerca. O ascetismo diz para o sofredor que o sofrimento é sua vitória, que a morte da vitalidade é o destino desejável. No entanto, Nietzsche, ao escrever sobre a vontade de nada, responde diretamente à Schopenhauer e seu Mundo como Vontade e Representação.

Vontade e ascetismo em Schopenhauer

Para Schopenhauer, a vontade é a coisa em si de Kant, a substância dos fenômenos[10]. Segundo o autor alemão, a vontade é livre, mas qualquer objeto, qualquer fenômeno, é determinado por causas e efeitos.

[A pessoa humana] não é nunca livre. Embora seja o fenômeno da vontade livre, por isso que é precisamente um fenômeno já determinado por esta vontade livre; submetendo-se à forma de todo objeto, ou seja, ao princípio da razão, ela desenvolve, é verdade, a unidade da vontade em ações inumeráveis, mas tal pluralidade de ações conserva o rigor de uma lei natural, por causa da unidade extratemporânea desta vontade em si.[11]

Para Schopenhauer, assim como Nietzsche, primeiro há o querer, depois o objeto de desejo. No entanto, diferente de Nietzsche, o primeiro propõe que a maneira de alcançar a verdadeira liberdade (ou seja, fugir do determinismo causado pela vontade, que é livre, mas que determina nosso conhecimento e nosso caráter) está na negação da vontade, porém, esta negação não acontece sem uma percepção diferente do mundo,

A vida pode ser comparada a um caminho circular, coberto, salvo poucos espaços livres, de chamas ardentes, caminho que o homem deve percorrer sem trégua. O solo frio que, num dado momento, sente sob os pés, ou que vê próximo, a tal ponto o garante, que se nutre ainda de ilusões e continua o caminho. Mas aquele que, por haver penetrado o princípio da individuação, vê a natureza verdadeira e o conjunto das coisas, já se não torna acessível a tais consolações. Ele se vê ao mesmo tempo em todos os pontos do caminho e prefere abandoná-lo. A vontade se lhe transforma. No lugar de afirmar, nega a própria essência da qual o corpo não é senão reflexo.[12]

Para se ver em todos os pontos do caminho e preferir abandoná-lo, sugere Schopenhauer, é necessário fugir da vontade e sentir indiferença em relação a tudo, é necessário ter uma vida ascética. “Uma castidade voluntária e absoluta é o primeiro passo para uma vida ascética”[13].

Esta resolução parte do princípio de que é possível eliminar a vontade (pelo menos em sua maior expressão, afinal, Schopenhauer admite que a vontade ainda permanece viva na vida ascética o suficiente para manter o organismo vivo),

O que eu entendo num significado mais restrito por ascetismo, palavra que até aqui tenho usado com frequência, é precisamente o aniquilamento intencional da vontade, obtido com a renúncia de tudo quanto agrada, ou com a procura de tudo aquilo que não agrada, com a prática voluntária de uma vida de penitência ou de mortificação, com o fim de suprimir, sem trégua, o querer.[14]

A discussão de Nietzsche na Genealogia da Moral toma como interlocutor Schopenhauer e pretende desacreditá-lo naquilo que diz sobre o ascetismo e a vontade.

Ao contrário de Nietzsche, que afirma a possibilidade de se querer o nada, Schopenhauer compreende que é possível nada querer. O ascetismo para Nietzsche é a tentativa do animal doente dar sentido a sua vida, mesmo que este seja ilusório, já em Schopenhauer, é a reação esclarecida quando se penetra o princípio de individuação e o princípio da razão, quando a vontade é suprimida e a liberdade é alcançada.

O ponto alto, objetivo central das elucubrações de Schopenhauer, portanto, é, em Nietzsche, um dos pontos mais baixos que o homem pode alcançar: querer o nada para dar um sentido à vida e, assim, não conseguir valorá-la por si próprio. Isso porque, na filosofia do primeiro, o nada é a libertação do sofrimento e única possibilidade de liberdade (já que o conhecimento não seria mais determinado pela vontade), enquanto, para o segundo, o asceta se trai quando deseja a liberdade se aproximando da morte, da cessação de qualquer satisfação da vontade, porque o ideal ascético é um movimento de preservação da vida, uma forma de mantê-la em pé apesar da fraqueza do indivíduo.

A última vontade do homem

O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande nojo ao homem; e também a grande compaixão pelo homem. Supondo que esses dois um dia se casassem, inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a “última vontade” do homem, sua vontade do nada, o niilismo[15].

O mundo não faz sentido, é dor e sofrimento. Não há razão para sua existência, não há sentido para que haja a existência em vez do nada tomar conta de tudo. Não há sentido claro para se manter vivo e a própria natureza – que é imoral – mostra o absurdo do mundo, entende Schopenhauer[16]. A vontade, que é a força de impulso para viver, é a única coisa que mantém as presas e caçadores vivos, pois, caso pudessem pensar sobre si no mundo, também não veriam nenhum sentido na existência.

Nietzsche concorda, de fato, a natureza, do ponto de vista da moralidade cristã, é imoral, no entanto, nem mesmo a moral é algo absoluto, “quer a ‘verdade’, quer a ‘moral’ são criações interiores a um mundo fenomênico que é intrinsecamente enigmático”[17].Daí, vem o primeiro passo para não cair no niilismo schopenhaueriano. Se a vida não pode ser medida pela moral, porque a moral é uma criação humana e não um conjunto absoluto de valores, então não se pode afirmar que a vida é ruim (ou má) por não obedecer a critérios morais que humanos criaram. Nietzsche nega este critério ao dizer que “Toda e qualquer posição naturalista na moral, isto é, toda e qualquer moral saudável, é dominada por um instinto de vida”[18]. Por sua vez, contraria diretamente Schopenhauer,

A moral, tal como foi entendida até aqui – como por fim foi ainda formulada por Schopenhauer, como “negação da vontade de vida” -, é o próprio instinto da décadence que se transforma em imperativo. Ela diz: “Pereça!” ela é o juízo dos que foram condenados…[19]

O doente passa a ser o pecador. Assim o cristianismo, por exemplo, faz o sofrimento ter um sentido na vida.

Sabemos que o mundo ser imoral, em Nietzsche, não faz diferença para a relação do indivíduo com o mundo, pois a moralidade é uma invenção e, portanto, não pode servir de fundamento para se concluir se a vida vale ou não à pena. Ao mesmo tempo, sabemos que o moral, o bom, para Nietzsche, é aquilo que corresponde à vida, que dê vazão para a vontade de potência, esta, o eterno criar do mundo.

A vida ela própria é, para mim, um instinto para o crescimento, para adoração, para a acumulação de forças, para [mais] poder [ou mais potência, Macht]: onde falta a vontade de poder, há declínio [ou decadência — a palavra aqui é Niedergang]. O que eu afirmo é que falta a todos os valores mais elevados da humanidade esta vontade — que os valores decadentes, os valores niilistas são dominantes, ainda que sob os nomes mais sagrados.[20]

Também entendemos que o ressentimento, a crueldade introjetada e transformada em culpa, dão possibilidade para a satisfação metafísica do homem através do ideal ascético: ele lhe dá sentido, dá sentido ao seu sofrimento e faz o sofrimento presente ter um sentido.

A vontade de nada, assim, a última vontade do homem, é a vontade apontada para o nada, para o ideal ascético, para a realização de si por meio da negação da vida: a sobrevivência do eu através do sofrimento, a vitória do ressentimento.

É necessário pormenorizar: a má-consciência, segundo Nietzsche, surge quando a crueldade não pode ser descarregada para fora. Ela é introjetada para dentro, se descarrega para o indivíduo e produz, assim, sofrimento. Logo em seguida, a consciência passa a ser formada com a introjeção da crueldade. É necessário um segundo movimento, o de exteriorização da consciência da dor, que foi causada pelo primeiro movimento (de interiorização da dor). Este segundo movimento é chamado de ressentimento e utiliza da vontade de potência movida por forças reativas para valorar[21].

Num sistema de interpretação ascético, ressentimento, crueldade e vontade recebem um sentido, um guia para sua existência. Em Nietzsche, a vontade de nada é uma resolução de um problema fisiológico (porque diz respeito aos afetos), ela é o “fracasso do desejo”, parte da decadência do homem. É o niilismo.

A vontade de nada, sendo assim, aponta para uma resposta ilusória, a do ideal ascético. A resposta possível no ascetismo é o sentido do sofrimento, portanto, querer o nada é o mesmo que querer a abdicação do querer para justificar a existência. Querer o nada é investir na negação, não na afirmação. É o inverso da moral natural de Nietzsche, é o inverso da vida, ainda assim, uma afirmação de que é melhor sobreviver a permanecer doente.

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Referências

[1] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – Uma Polêmica. Lelivros, Kindle Edition, locations 1429-39.

[2] BRUSOTTI, M. Ressentimento e Vontade de Nada. Cadernos Nietzsche 8, 2000, p. 6.

[3] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – Uma Polêmica L, 1631.

[4] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – Uma Polêmica L, 1631-1637.

[5] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – Uma Polêmica L, 1639-1647.

[6] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – Uma Polêmica L, 1690-1693.

[7] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – Uma Polêmica L, 1797-1805.

[8] BRUSOTTI, M. Ressentimento e Vontade de Nada p, 6-7.

[9] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – Uma Polêmica L, 1843-1846.

[10] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: dições de Ouro, 19–?. Coleção Universidade, p, 44.

[11] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representaçãop,46.

[12] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representaçãop,158.

[13] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representaçãop,159.

[14] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representaçãop,173.

[15] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – Uma Polêmica L, 1875-1878.

[16] CONSTÂNCIO, João. “A última vontade do homem, a sua vontade do nada”: pessimismo e niilismo em Nietzsche. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 2º semestre de 2012 – Vol. 5 – nº 2, p.46-70.

[17] CONSTÂNCIO, João. “A última vontade do homem, a sua vontade do nada”: pessimismo e niilismo em Nietzsche p.53.

[18] NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Lelivros, Kindle Edition, locations 280-281.

[19] NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos l. 293-297.

[20] NIETZSCHE, Friedrich. Anticristo, § 6. Apud CONSTÂNCIO, João. “A última vontade do homem, a sua vontade do nada”: pessimismo e niilismo em Nietzschep,54.

[21] BRUSOTTI, M. Ressentimento e Vontade de Nada p, 21-22.

Anexo

MATOS, J. C. .; BRITO, A. de O. O ascetismo como sintoma da vontade de poder doente. Aufklärung: revista de filosofia, [S. l.], v. 7, n. esp, p. p.29–38, 2020. DOI: 10.18012/arf.v7iesp.56763. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/arf/article/view/56763. Acesso em: 14 nov. 2023.

A terceira dissertação do livro “Genealogia da Moral”, no qual se concentram a análise e crítica nietzschianas ao ascetismo, a nosso ver depende da apreensão de certos conceitos apresentados pelo autor. Compreendemos plenamente que afirmar tal coisa é controverso, pois seria, como já foi afirmado, pensar Nietzsche como um filósofo sistemático (algo que não era seu desejo), como se seu pensamento fosse como a construção de uma casa, na qual a correta compreensão desta depende da compreensão da disposição de seus tijolos. Mas argumentemos a nosso favor. O ascetismo, como buscaremos demonstrar aqui, se configura como uma reação do ser humano subjugado à condição de animal gregário contra essa mesma condição: sua cólera, entretanto, se direciona em parte contra si mesmo e em parte contra a ave de rapina que o esmaga. Assim, antes de nos debruçarmos sobre o ascetismo em si, definamos o que vem a ser esse humano reduzido a animal de rebanho de que Nietzsche fala e em cujo ser a nosso modesto ver se localiza a origem do ideal ascético, tal qual ele se apresenta na terceira dissertação de sua Genealogia.

Já na primeira dissertação desse livro o filósofo parece deixar clara qual a origem no Ocidente dessa maneira apequenada de ser humano: “os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-­se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma radical tresvaloração dos valores deles”(GM, I, § 7, p. 26). Notemos aqui que o filósofo claramente fala em “conquistadores”, isto é: analisando a história humana, Nietzsche percebe que houve um povo, ou povos, que conquistou, dominou, subjugou o povo judeu. Mas não sendo fortes o suficiente para enfrentar seus opressores de frente, restou a esse povo adotar uma estratégia distinta: fazer com que aqueles que eram outrora seus opressores, “o ‘mundo inteiro’, ou seja, todos os adversários de Israel, pudesse despreocupadamente” (GM, I, § 8, p. 27) abraçar a essência, o núcleo duro, da doutrina sacerdotal judaica e torná-­la sua. Assim começa a lenta e gradual elevação da moral judaico­-cristã (dado que, segundo Nietzsche, Cristianismo e Judaísmo possuiriam muito mais semelhanças do que diferenças) à condição de hegemonia no Ocidente: como um ato de vingança dos derrotados, dos que foram rebaixados à condição de ovelha à força pelos conquistadores animais de rapina; faltando àqueles força, restava lentamente converter seus outrora inimigos à sua causa. É nesse sentido que podemos, de maneira, nietzschiana, compreender a conversão do Império Romano ao Cristianismo: um povo que outrora abraçava valores aristocráticos eventualmente se rende à moralidade daqueles por eles outrora escravizados.

[…]

Que são, portanto, os ideais ascéticos? Concordamos com a interpretação de Corrêa ao afirmar que o ascetismo para Nietzsche é, simplificadamente, uma tentativa de “auto aniquilamento de si, isto é, da vontade entendida como a pulsação vital.”(CORRÊA, 2016, p. 123). O ascetismo se constitui como uma forma de violência do ser humano contra si próprio, ou melhor: uma prática violenta direcionada contra uma face de si, pois para Nietzsche parece existir no ser humano uma pulsão por navegar em terrenos tidos pela moralidade do costume como perigosos. Tanto assim o é que, segundo o filósofo, se na contemporaneidade tudo aquilo relacionado ao mundo dos afetos mais íntimos, como a sensualidade, o sexo, a violência, a crueldade, dentre outros prazeres mundanos reflexo das contradições inerentes ao ser humano, são objeto de proibição e são condenados pela moral cristã vigente, no passado o contrário teria sido verdadeiro.

 – Junot Cornélio Matos & Antonio de Odilon Brito.

10 Comentários

  1. parabéns pela matéria, cada vez mais creio em nietz! e o ´pior é que eu o entendo, rsrsrsr! Se Schpp era um pessimista, Nietz era o homem da vida, a realidade pós realidade, e por acaso esta nossa realidade também não é um ideal ascético? creio que sim.

  2. O nada é o tudo e vice-versa? são imbricados? inseparáveis? Não contraditórios, mas complementares de algo que está “a maior” do “nada” e do “tudo”? Se não for assim, caímos na velha “discussão” de dois poderes “antípodas” que se digladiam nos usando como “ferramentas”, procurando indefinida e eternamente uma supremacia unilateral?

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