Fernando Pessoa não é um representante de uma época de grandes navegadores. Ele não faz parte de um grupo de pessoas grandiosas, mas sim ele se (e nos) propõe a revivê-las em suas exortações. Ele não é um possuidor da glória, ele é um desejador: ele não só deixa sua terra como tira o chão do leitor. É necessário criar. Não se pode ficar em seu lugar comum. A língua portuguesa é pouco, é preciso ir além das estruturas. Que só seja bem vinda estruturas se forem estruturas de navios: só a construção que for suficiente para o objetivo de acelerar o enferrujar-se das antigas colunas. Qual a tragédia de implodir ruínas decadentes, quando ainda se tem o oceano a explorar, e as Índias a alcançar?
Mas, neste ponto, podem queixar-se os capitalistas e humanistas (estadunidenses ou não): mas esses grandes navegadores: (1) buscavam, nessa saída, objetivos de enriquecimento; (2) para isso se valiam de saques; (3) enriqueciam apenas de forma temporária seu Portugal, e o ouro todo não tardava a ir para Inglaterra e França. Primeiramente, discutiremos sobre este terceiro ponto: Pessoa é de um Portugal em decadência. A ele talvez brilhasse mais os olhos a possibilidade de ir além das fronteiras de seu pequeno país do que aos grandes navegadores de outrora. E a nós, o que temos de novidades, para continuar com o objetivo deste texto, que é atualizar o poema?
“Viver não é preciso”, dito pelos navegadores, poderia soar como um “não temas”, como um desprendimento das amarras do medo e da comodidade de viver do lado de dentro das muralhas das cidades europeias e em terra firme. Posteriormente, a Pessoa, o espírito desta frase poderia ser descrito como “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. Mas, de lá para cá, o que teria mudado?
Pessoa, falecido em 1935 aos 47 anos, não viveu tão pouco, para os padrões de sua época. Hoje a ONU fabrica listas que são usadas para fundamentar, favorecer, facilitar e financiar iniciativas capazes de aumentar a expectativa de vida. Pretendem deixar as pessoas vivas mais tempo, mas, quem disse que viver em quantidade é a melhor opção? As evoluções da medicina deram outro contorno ao imperativo “Viver não é preciso”: a vida de certas pessoas à margem da estrutura social não é necessária, mas aos demais, ou a todos no geral, faz-se com que homens, mulheres e pessoas d’outros gêneros vivam mais, produzam mais, consumam mais.
Eu antes dissera que Pessoa não era como os que diziam a famosa frase: não era um navegador por profissão, mas uma pessoa que se fascinava pela possibilidade de criar novas fronteiras, e não de meramente recuperar a expansão de fronteiras. A conquista de novas fronteiras não é aumentar algumas décadas de vida para a média da população. Conquistar é navegar, mais que sobreviver. Sobreviver é o que a medicina e a economia nos exigem, mas insistimos timidamente em gritar-lhes que sobreviver não basta.
Aí caímos em uma polissemia interessante da língua portuguesa: “Viver (não) é necessário”, mas também “viver (não) é exato”. Novamente, a medicina e a economia nos insistem em dizer que “viver é preciso”: viver é necessário e é exato. Para construir o panteão desta nova mitologia, criaram genes e hormônios, calorias e neurotransmissores. Tiraram a conotação de fúria do fígado e de romance do coração (embora esse ainda persista, de alguma forma). O cérebro passou a poder explicar tudo. E uma característica preocupante desta manobra foi ter-se camuflado o processo ocorrido. Dizem-nos que as coisas sempre foram assim, apenas descortinaram o antes oculto funcionamento do mundo.
A nova mitologia não é mais apresentada como criação, como algo que as pessoas possam recorrer conforme suas angústias lhes aflijam: genes e neurotransmissores hoje são (apresentados como) fatos, realidade acessível como resultado de exame translúcido (dizem-se a-teóricos), desde que construíram instrumentos adequados precisos, imunes à falibilidade dos humanos que protagonizam as pesquisas e à falseabilidade que a epistemologia confere à ciência, para escapar do status de dogma, diferenciando-se com isso das verdades absolutas. Se os representantes desse saber científico se consideram não dogmáticos, é apenas para exaltar seus dogmas, em comparação com os dogmas religiosos (os quais, tal e qual o coração, insistem em persistir em um mundo cuja lógica majoritária parece não ter espaço para eles).
O bravo navegante era um descobridor. Os pesquisadores da biologia humana são descobridores também. Ambos descobrem os limites do homem e de sua compreensão do mundo. Mas será que é do mesmo homem e do mesmo mundo que falam? Certamente, com o advento da medicina, o homem não é mais o mesmo. Sua anatomia ganhou novos usos. Se a fala de um paciente ainda é algo que se recorre para buscar informações, é como uma fonte ineficiente de dados puros, coisa que os exames fazem muito melhor, e por isso a preferência pelos seus dados precisos da realidade.
Contudo, na medida em que o fazem, os médicos estão menosprezando a importância da concepção do paciente de seu próprio mal-estar, que faz o paciente procurá-los e a aderir à prescrição é. E a concepção do paciente não é algo que se obtenha um dia e, após, se mantenha idêntica a si mesma. A relação do doente com sua doença (como algo que se constrói, não é definitiva e pode mudar) está no campo das dinâmicas do cotidiano. Se até a doença crônica é atualizável (questiona-se o não só o tratamento, mas até o diagnóstico e, mais raramente, as práticas institucionalizadas do diagnosticar), porque não atualizar o Pessoa? Pessoas de nosso cotidiano.
O homem, a mulher ou a pessoa de gênero diferente desses dois consagrados. Uma multiplicidade, como Pessoa com seus heterônimos. Nem todos os escritores são Pessoa, mas escritores com diferentes nomes são Pessoa. À inspiração do poeta português, em vez de descobrir novas terras, aumentar os limites de nosso tempo de vida, há outra coisa que também podemos fazer: trocar os verbos. Há muitos verbos que podem ser substituídos, mas há uma substituição muito poderosa: sai o “descobrir” e entra o “inventar”.
Podemos, devemos descobrir propriedades físicas para operar uma cirurgia ou para pilotar um avião. Mas como podemos conhecer, descobrir, produzir um saber sobre a pessoa de nosso cotidiano, isto é, conhecer-se a si? Será que a física, a mecânica e a anatomia são de grande serventia, quando podemos fazer até mesmo movimentos arriscados, como atravessar uma avenida, de forma intuitiva e automática? Qual a importância do “conhecer precisamente”, o “desvelamento” da realidade no cotidiano? Podemos, no lugar disso, deixar a monotonia do cálculo para mesas de engenharia e fazer as coisas simples do dia-a-dia de forma mais inventiva.
A pessoa precisa ter suas necessidades básicas atendidas para sobreviver. Precisa sobreviver para ser um cidadão, ter uma ação ativa na sociedade e em sua própria vida. Mas adiar a morte basta para a pessoa fazer diferença em si mesma e em seu mundo? Talvez sim, mas alguns deveriam poder optar a fazer a diferença de forma mais intensa. Hoje se pode ser menos ser-humano máquina e mais Pessoa poeta.
Navegar é Preciso
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
–
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
–
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.
–
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
–
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
–
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.”
Fernando Pessoa
Publicado originalmente em 18 de abril de 2013.
Ótimo texto! e a Ciência não prova, mas ” Hoje se pode viver menos e Ser mais Pessoa poeta… um Navegador! “