Refugo humano: o “lixo” produzido pela globalização – Zygmunt Bauman

Bauman tem bons pitacos sobre o lixo humano, tratando sobre os refugiados enquanto o refugo da globalização. Quem diria?! A globalização também tem seus excedentes que precisam ser retirados de vista, seus sujeitos sem direitos, seus refugos estruturais.

Não há dois lixos iguais.

A afirmação acima não se refere à aparência do lixo. Ela expõe a relação do lixo com o sujeito que o produz.

Cada lixo é produzido de forma diferente. O lixo é produzido na medida em que nasce da relação do objeto com o sujeito.

Lixo é o excesso do objeto de desejo, é quando o desejo não precisa mais daquilo que sobra, nos indica Zygmunt Bauman. O lixo é aquilo que ficou obsoleto, que foi ultrapassado, que se tornou inútil, feio e enjoativo.

sociedade de consumo tem em seu bojo uma cultura do lixo, cultura essa que não atinge somente os objetos consumidos, mas também o processo de produção, cada vez mais ligado com a descartabilidade e a inovação.

Assim, o sonho do objeto que não se quebra, que não se torna obsoleto, perde-se na realidade capitalista. Como objetivo do próprio sistema econômico, nada pode ser útil para sempre.

A globalização foi responsável por transformar as pessoas em objetos de consumo daqueles que são donos dos meios de produção e, consequentemente, em mercadorias. A força de trabalho se torna uma mercadoria de venda e o sujeito que a vende tende a ser alguém passível de obsolescência.

Bauman olha para outro lado da globalização, que é o da transformação da força de trabalho, dos pobres e dos desabilitados em refugo humano. A globalização pós-moderna é marcada pela compressão do tempo e do espaço pois, nos mais variados planos, as iniciativas se coordenam através da comunicação instantânea, a atividade econômica dispensa raízes firmemente fincadas nas localidades […] Na linguagem da Sociologia clássica, a produção da riqueza tende a prescindir da força humana de trabalho (FRIDMAN, 1999, p. 217).

Além dos objetos de consumo como alimentos ou tecnologia, os humanos também se tornaram lixo.

Por um lado, porque são mercadoria e, sendo assim, passiveis de serem consumidos: o músico, o amante, são todos prestadores de serviço que podem ser “demitidos” a qualquer momento.

Por outro lado, há o lixo humano, o refugo, as sobras da globalização, os marginais do processo de construção da ordem e os excedentes populacionais não-empregáveis.

Curso de filosofia do professor Anderson

As pessoas marginalizadas no modo de produção capitalista, pertencentes aos paíśes fora de seu centro ou pertencentes a um tempo de menor tecnologia e que, na atualidade, não conseguem se adaptar, são todos refugos humanos do capitalismo líquido.

Inevitavelmente, as pessoas se transformam em refugo por não se adequarem às novas regras da ordem: são trabalhadores impossíveis de serem empregados e, como consequência, sujeitos impossíveis de consumir.

Ou seja, as vítimas do progresso econômico, os excedentes populacionais sem destino traçado, como os pobres e seus filhos, são os inimpregáveis, os não consumidores: eles não se adequam à construção da ordem, são o peso morto de um capitalismo automatizado e flexível, estão em demasia e fazem do lugar onde vivem, um lugar superpopuloso.

O contraste é flagrante com o período da segunda revolução industrial e do espetacular desenvolvimento econômico da segunda metade do século XIX na Europa e nos Estados Unidos, quando as massas pobres e deslocadas faziam parte do “exército industrial de reserva”. Atualmente tornaram-se refugo humano mesmo. Gente dispensável, pobres e famintos que contribuem com nada, apenas tiram o dinheiro do contribuinte para financiar políticas sociais que não diminuem o incômodo de vê-los “poluindo” a visão da classe média e dos ricos (FRIDMAN, 1999, p. 217).

Os refugos humanos do processo de globalização são aqueles que terminam em campos de refugiados, são os imigrantes ilegais, são aqueles que se tornam vítimas dos conflitos internacionais/globalizados e que, ao mesmo tempo em que precisam sair de seu território de origem (que já foi ou será destruído), não têm permissão para entrar em território dos países de primeiro mundo.

Ficam presos nos campos de refugiados sob um estatuto de não-direitos. Não são ninguém. Como não estão sob tutela de Estado nenhum, não têm nenhum direito.

A produção de ‘refugo humano’, ou, mais propriamente, de seres humanos refugados (os excessivos e redundantes, ou seja, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para ficar), é um produto inevitável da modernidade, é um acompanhante inseparável da modernidade. É um inescapável efeito colateral da construção da ordem. Cada ordem define algumas parcelas da população como ‘deslocadas’, ‘inaptas’ ou ‘indesejáveis’ e do progresso econômico que não pode ocorrer sem degradar e desvalorizar os modos anteriormente efetivos de ‘ganhar a vida’ e que, portanto, não consegue senão privar seus praticantes dos meios de subsistência (BAUMAN, 2005, p.12).

O refugo da globalização é o aviso da tragédia: o refugiado demonstra que, além da maravilha consumista que vivemos, há a possibilidade de ter o lar destruído a qualquer momento.

Ele demonstra que uma guerra não precisa de proximidade nem de muito tempo, que em dois dias a destruição pode acabar com toda uma vida. Retirá-los de perto é retirar um futuro possível, é afastar um fantasma.

Trata-se do indivíduo que vive à margem e que não gera riquezas de acordo com o imaginário consumista. É o ser humano que, pretensamente, não paga impostos, não agrega conhecimento e não contribui para o desenvolvimento. Um ser humano que não amplia as diretrizes de um ideário consumista, e que, portanto, ao onerar o conjunto da sociedade, transforma-se em um peso, pois necessita da assistência e do cuidado dos órgãos estatais (GABATZ; ZIEGLER, 2018, p. 115).

Pode-se dizer que, enquanto o refugiado é o refugo da globalização, os escravos bolivianos do Bom Retiro, em São Paulo, são produtos do progresso econômico e os mendigos da Sé são os refugos da construção da ordem.

É claro que existe um fator de globalização no emprego de bolivianos e um fator econômico nos mendigos da Sé, assim como existe uma fator de construção e manutenção da ordem na recusa de refugiados, mas os vetores principais, como dito acima, fazem desses três, exemplos dos excluídos de cada tipo.

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Referências

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

FRIDMAN, L. C.. Globalização e refugo humano. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 46, p. 215–219, 1999.

GABATZ, Celso; ZIEGLER, Joici Antonia. Percepções acerca do “refugo humano” de Sygmunt Bauman e o “homo sacer” de Giorgio Agamben. Protestantismo em Revista, São Leopoldo, v. 44, n. 01, p. 111-126, jan./jun. 2018.

12 Comentários

  1. texto ácido e potente! continue assim, hehe… e pensar sobre os Refugiados é muito importante, pertinente cara. ” Como não estão sob tutela de Estado nenhum, não têm nenhum direito. “

  2. Estou lendo AMOR LÍQUIDO do Bauman e nesse livro ele discorre sobre o “LIXO HUMANO”. E como tinha ficado um pouco confuso meu entendimento esse texto foi deveras elucidativo e feliz na argumentação. PARABÉNS

  3. Muito bom o texto. Como também, muito atual. Retrata não apenas, a relação entre a produção e consumo no mundo capitalista, ou a situação dos refugiados. Trata-se, principalmente de um alerta à todos nós para a necessidade de estarmos com uma atenção aguçada sobre tudo que acontece ao nosso redor, para não nos tornarmos: OBSOLETOS, ULTRAPASSADOS, INÚTIL. LIXO HUMANO.

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