Bourdieu e a noção de poder – DROPS #69

O poder, seja ele repressivo ou simbólico, é entendido como aquilo que pode ser plenamente exercido, legitimamente exercido, pelos grupos dominantes de cada campo social. O exercício do poder está na possibilidade de estabelecer uma dominação que parece ser natural, que tende a ser consentida.

Para descrever a forma como Pierre Bourdieu compreende o exercício do poder, é necessário reconstruir o caminho teórico decorrente das pesquisas do autor. De início, é necessário compreender as noções de habitus, campo social, doxa e illusio.

A partir disso, é possível compreender como o poder é exercido dentro de um campo e quais são os agentes a que se atribui seu exercício. A visão de Bourdieu sobre o poder envolve o entendimento de sua legitimação no interior do campo em que é aplicado, mas envolve o entendimento da própria constituição dos agentes que dele participam.

Para o autor, a noção de habitus permite compreender o funcionamento prático dos agentes sociais dentro de um campo específico. Bourdieu articula tanto uma visão sociológica objetiva quando uma subjetiva para estabelecer sua explicação praxeológica: habitus pode ser definido como um sistema de disposições práticas, uma incorporação das estruturas externas da sociedade:

As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de existência características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser 0 produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser 0 produto da ação organizadora de um regente (BOURDIEU, 1983, p. 60).

Há a possibilidade de dividir o habitus de duas maneiras:

  • Habitus primário: incoporamos na infância, trata-se do habitus de classe. Uma pessoa que nasce numa cidade interiorana, incorpora todo o estilo de vida dessa realidade e provavelmente o leva por toda a vida. A maneira uma pessoa se expressa no mundo é determinada pelo habitus primário. Este sistema pode ser reconfigurado a partir de outros habitus internalizados.
  • Habitus secundário: A experiência universitária, por exemplo, permite a incorporação de outras formas de ser, sentir e pensar adequadas a este novo campo social. O habitus secundário é aquele internalizado na participação de outros campos ao longo da vida. São as disposições que funcionam no interior do campo que o agente social conseguiu entrada e pertencimento.

Para Bourdieu, não existe “a sociedade”, como uma totalidade fechada em si, mas ela pode ser entendida como um conjunto extenso de campos sociais. Para o autor, há três grande campos que organizam a sociedade: o campo político, o campo econômico e o campo simbólico (ou campo cultural). O trabalho de Bourdieu é focado quase que inteiramente na análise do campo simbólico e seus “subcampos”, como o campo literário, o campo da música, o campo científico, o campo religioso, o campo educacional e etc. Sendo o campo definido como:

Espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas) (BOURDIEU, 2003, p. 119).

Embora os campos tenham regras próprias, é possível encontrar homologias estruturais, ou seja, características similares entre eles. A principal homologia é a competição entre os agentes no campo. Essa competição nunca se dá de maneira isolada, mas sempre entre grupos. No interior de um campo, há algo que se disputa: no campo econômico, trata-se do dinheiro, do capital. No campo político, o governo, a administração pública. No caso do campo universitário e científico, não é tão simples observar o que é disputado e, de certa forma, as análises modernas tendem a reduzir esta disputa ao campo econômico ou político.

Cada campo possui uma autonomia relativa, ou seja, os agentes de um campo não legislam sobre os outros campos, mas definem seu próprio campo. Os campos, também, não são completamente isolados entre si, pois há espaços de cruzamento em que agentes podem atuar de maneira dupla, atendendo os interesses de ambos os campos em que participa.

Por exemplo, a figura do editor tem lugar tanto no campo literário como no campo econômico: ele precisa vender para garantir a manutenção da editoria, mas não pode editar qualquer coisa, é necessário certa curadoria para garantir prestígio entre os próprios editores, entre os agentes do campo literário. Ênio Passiani explica:

Exemplo concreto: Atualmente, a editora Record faz parte do maior grupo editoral do Brasil e é inteiramente nacional. Em entrevista, o editor explicou que, para continuar editando obras de Albert Camus, que é tido pelos agentes do campo literário como um clássico da literatura mundial, é necessário vender best-sellers, vender auto-ajuda, vender literatura considerada rasa.

“Ou seja, para o editor, não basta editar Sidney Sheldon, pois este tipo de publicação não irá lhe dar o reconhecimento como editor. Ao mesmo tempo, não basta publicar somente Albert Camus, pois isso não irá sustentar economicamente a editora. A figura do editor, assim, pertence simultaneamente a dois campos distintos” (PASSIANI, 2020, min 15).

Ao entrar num campo e incorporar o habitus secundário, o agente social tende a ser tomado por uma illusio, pela certeza de que as atitudes e estratégias, assim como os princípios contidos em sua doxa, são legítimos e verdadeiros, além de serem aparentarem naturais.

Precisamos aprender a acreditar no campo, a acreditar em suas regras. Por isso somos levados a crer que a competição vale à pena, que a competição faz sentido. Por isso que nós, do campo científico universitário cumprimos exatamente aquilo que nos é orientado: fazemos a graduação, o mestrado, o doutorado, participamos de congressos, tentamos publicar o máximo que pudermos nos melhores periódicos e estamos sempre em competição com outros que também estão fazendo doutorado, também publicam, também prestam concursos públicos para o cargo de pesquisador-docente (PASSIANI, 2020, min 18).

Se é levado a acreditar no jogo, porque o que está em jogo não é o incentivo financeiro, mas é o melhor modelo teórico, aquilo que será considerado obra de vanguarda, aquilo que será considerado uma tese original. Estas formas de consagração, por sua vez, acontece por meio do reconhecimento dado pelos outros agentes que ocupam aquele campo. Este reconhecimento se expressa e se traduz sob a forma de prêmios, publicações, diplomas, bolsas, incentivos. O incentivo econômico não é o objetivo final da disputa dentro do campo simbólico, na medida em que não se disputa ele, mas o incentivo pode resultar futuramente como forma de reconhecimento da consagração.

Sem essa doxa e sem a illusio que permite a integração do agente social com as regras do campo, haveria a possibilidade da invasão de um campo por agentes de outros campos.

Exemplo concreto: Damares Alves, ao ser empossada Ministra dos Direitos Humanos, teve seu currículo verificado pela imprensa. Ela havia se declarado doutora, embora sem explicitar de qual instituição. Ao ser averiguado pela imprensa, foi constatado que ela não tinha doutorado e, em entrevista, ela declarou que havia sido “doutarada por Deus”.

“Se a Damares fosse prestar um concurso públlicado para a UNESP, por exemplo, ao ser perguntada sobre seu título de doutorado, o nosso campo não aceitaria este tipo de justificativa. Talvez, no campo religioso ao qual ela pertence, essa justificativa seja aceita, mas em nosso campo (universitário) não, pois as regras de nosso campo são outras” (PASSIANI, 2020, min 20).

E, quando um grupo específico consegue a dominação de um campo, consegue adquirir o capital específico do campo através das consagrações que são aferidas a ele, o que acontece?

O grupo vencedor ganha o poder de classificar, ganha a prerrogativa da classificação. Da classificação do quê? Das obras artísticas, por exemplo, dentro do campo literário. O conjunto de atores, escritores, críticos literários e professores de literatura vai definir quais livros devem ser lidos; no campo cinematográfico, vão definir quais filmes devem ser vistos […] Vai definir qual teoria de maior alcance explicativo. Os vencedores, o grupo hegemônico, adquirem a prerrogativa de determinar, no limite, os próprios autores e próprios cientistas. Ganham a prerrogativa de definir, por exemplo no campo científico, o que é ciência; no campo literário, o que é a arte; no campo universitário, o que é conhecimento (PASSIANI, 2020, min 23).

Não só que deve ser, mas o que deve não ser. O grupo dominante de um campo determina o que pode ser desconsiderado, coloca como obra marginal, inserido como objeto de desprestígio. Evidentemnte, a hegemonia pode durar por muito tempo, mas é sempre transitória. O grupo vencedor está a todo instante sendo pressionado pelos vencidos, que mantém estabelecida uma competição incessante. Daí a necessidade do grupo dominante manter a heterodoxia, garantir sua posição de dominação.

Assim, é possível compreender que o campo é um espaço de relações de força em que o poder está presente, a disputa está presente. Não se trata do poder político, mas do poder de classificar. “Como a disputa não para, novos modelos teóricos são propostos, novas linguagens estéticas são produzidas, novos saberes são reconhecidos e acontece uma redefinição incessante daquilo que se entende por arte, por ciência, por conhecimento” (PASSIANI, 2020, min 25).

Embora essas disputam sejam interessantes, elas também possuem uma outra face: elas constituem a reprodução eufemizada da dominação de certos grupo sociais, classes e frações de classes, sobre outros grupos, classes e frações de classe. Essa disputa simbólica instaura formas de dominação e o conhecimento oficial reproduz outras formas de dominação que o campo científico ou universitário traduzem em seus próprios termos e a dissimulam.

Exemplo concreto: “o vestibular sempre se apresentou como um mecanismo justo de seleção, na medida em que, a princípio, ele não consideraria gênero, raça e bens econômicos como critério de seleção que seria provado inclusive no anonimato da correção da prova.

Entretanto, na medida em que o vestibular cobra o conhecimento hegemônico, somente alunos que passaram por escolas que transmitiram o conhecimento reconhecido como legítimo têm condições de vencer a competição. Esta forma de desigualdade é mascarada na prova do vestibular, mas existe nele enquanto dispositivo. Mais ainda, o sucesso ou o fracasso do aluno, ao ser escondido na forma da aprovação, tende a recair sobre o próprio aluno, e não sobre o capital cultural que ele deixou de incorporar em sua vida, devido sua classes social e história de vida” (PASSIANI, 2020, min 29).

É importante compreender que, provavelmente, as famílias de maior capital econômico vão ter, também, maior capital cultural.

Os filhos de família ricas frequentam boas escolas, fazem cursos de formação cultural, aprendem a tocar diferentes instrumentos, frequentam o teatro ou os museus e incorporam um capital cultural que fornecerá vantagem na trajetória escolar.

Exemplo concreto: “Eu dava aula numa universidade particular em São Paulo no curso de formação de professores. Uma professora, que dava aula numa escola periférica da Zona Leste, relatou a seguinte experiência: foi organizada uma excursão ao MASP, o Museu de Artes de São Paulo, e quando voltaram a escola no dia seguinte, os professores perguntaram aos alunos o que haviam aprendido. A resposta majoritária dos alunos e das alunas foi ‘a gente aprendeu que a gente não pode botar a mão no quadro’.

De que valeu aquela visita ao museu? Provavelmente, os alunos não dispunham de capital cultural suficiente para realizar a decodificação necessária da informação, não dispunham de esquemas de percepção necessários para ler o quadro e interpretá-lo, ao passo que talvez em famílias que tenham o hábito de ir muito ao museu, nem precisaria ter aula de história da arte, pois ao ir ao museu com certa frequência, é possível adquirir de maneira osmótica esses esquemas de percepção de uma obra” (PASSIANI, 2020, min 38).

O capital cultural previamente herdado gera disposições positivas em relação à escola e às atividades que são proposta nela. A escola vai ter uma importância distinta para os filhos das classes altas, pois irá fornecer certo tipo de sociabilidade positiva para tudo aquilo que já foi inicialmente aprendido em casa. O esquema da importância da escola estará em sua forma.

Para as classes baixas, ainda terá sua importância, mas será inserida no esquema da função: a escola será importante pois é necessário terminar o ensino médio para ter um emprego, pois nela é possível comer merenda, etc.

Considerações finais

O poder, seja ele repressivo ou simbólico, é entendido como aquilo que pode ser plenamente exercido, legitimamente exercido, pelos grupos dominantes de cada campo social. O exercício do poder está na possibilidade de estabelecer uma dominação que parece ser natural, que tende a ser consentida.

A violência simbólica, por sua vez, acontece quando as estratégias de dominação são eficientes o bastante para que o próprio dominado entenda o mundo como o dominar e, assim, legitimide sua própria dominação.

Trata-se de uma visão distinta daquela criada por Michel Foucault, em que o poder é visto em sua microfísica, nas microrrelações, a partir da periferia para então chegar até o centro. Bourdieu permanece na tradição de observar o poder para além das relações de conflito, das aporias, mas a partir do centro que essas relações seriam somente derivações.

Anexos

Aqui, o vídeo do Colunas Tortas sobre a distinção entre o poder para Foucault e para Bourdieu:

Aqui, a apresentação do professor Ênio Passiani que foi base para a escrita deste drops:

Referências

BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática IN ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. 1ª edição, Fim de Século: Lisboa, 2003

PASSIANI, E. O poder segundo Pierre Bourdieu. Uma leitura sobre a educação com Prof. Dr. Ênio Passiani (UFRGS). Fórum permanente de reflexão da UNESP, 2020. Disponível em <<https://www.youtube.com/watch?v=m8tF1RaBFZg>>. Acesso em 14 de agosto de 2024.

Deixe sua provocação! Comente aqui!