Índice
Introdução
A constituição da branquitude se deu no processo de colonização. Neste processo, inclusive, emergiram as categorias raciais como as entendemos atualmente: a figura do negro, do asiático, do indígena, etc. Essas figuras nasceram no momento de virada da influência europeia no contexto político e econômico mundial.
Segundo Cida Bento, em O Pacto da Branquitude (2022), foi no processo de colonização que brancos passaram a se ver como brancos em oposição aos africanos negros, principal fonte de contraste. “A natureza desigual dessa relação permitiu que os brancos estipulassem e disseminassem o significado de si próprios e do outro através de projeções, exclusões, negações e atos de repressão. (BENTO, 2022, p. 23), afirma a autora.
O objetivo deste artigo é descrever a formação da branquitude e a racialização negra a partir dos estudos de Cida Bento.
A raça
Inicialmente, é necessário inserir as reflexões de Aníbal Quijano (2005), sociólogo peruano e membro do grupo Modernidade/Colonialidade. Segundo o autor, a ideia de raça funcionou legitimando a dominação fruto da conquista. Foi a partir da conquista da América e do processo de colonização que a identidade europeia tomou forma como nós conhecemos atualmente. A oposição entre branco e negro, branco e indígena, branco e latino nasce no momento de dominação colonial com genocídios e epistemicídios nos territórios invadidos (GROSFOGUEL, 2016).
À medida que a Europa foi se expandindo pelo mundo e os europeus foram acessando e se apropriando dos recursos materiais e simbólicos dos “outros”, a narrativa da branquitude foi sendo construída (BENTO, 2022, p. 24).
Com a expansão colonial, a perspectiva eurocêntrica na produção de conhecimento e, portanto, no estabelecimento de enunciados com efeito de verdade, tiveram condição de serem impostos nos diferentes cantos do mundo. Como consequência, a
elaboração teórica da idéia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas idéias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. (QUIJANO, 2005, p. 118)
A raça, assim, foi um critério fundamental e básico de classificação da população mundial por uma sociedade que se expandia e conquistava novos territórios (QUIJANO, 2005). Neste contexto, em 400 anos desde a invasão brasileira, 18 milhões de africanos foram escravizados pelo mundo, afirma Cida Bento. Com a conquista e seus genocídios e epistemicídios, Ásia e África, continentes produtivos e ricos, empobreceram e perderam sua então riqueza e conquistas civilizatórias.
No entanto, houve uma reversão da situação, em que a Europa tornou-se uma região relativamente rica, e a África e a Ásia tornaram-se locais com problemas crônicos de pobreza. Essa reversão não é efeito apenas da extração dos recursos dessas regiões, mas também da destruição de estruturas econômicas e sociais tradicionais (BENTO, 2022, p. 23).
A destruição das estruturas econômicas tradicionais acontece em conjunto com o desenvolvimento econômico europeu a partir do barateamento do trabalho através da escravização nos territórios coloniais. A lucratividade da mão de obra escravizada beirava 130 vezes aquela vista no trabalho de um inglês trabalhando em seu país. O resultado deste uso da mão de obra escrava não se resume ao lucro das classes mais altas, na medida em que se espalha por todo o corpo social e pode ser visto concretamente no aumento do padrão de vida inclusive das classes mais pobres. O legado da opressão racista se espalha por todo o padrão de vida digno fornecido aos ricos mas também às classes pobres dos países colonizadores (BENTO, 2022).
Ao mesmo tempo, apesar deste favorecimento econômico já ser muito discutido, há problemas explícitos que transformam qualquer demanda por reparação em um pedido absurdo, em uma luta inócua.
Esse tema atravessa as narrativas e ações do movimento negro. Em 2001, a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, na África do Sul, reconheceu a escravidão e o comércio atlântico de escravizados como crimes contra a humanidade. Mais do que nunca, pedidos de reparação adquiriram uma nova força, porém sempre geraram uma reação de recusa dos Estados europeus, como se deu na própria Conferência com a retirada desses países quando o tema do debate foi reparação (BENTO, 2022, p. 26).
A reparação é um tabú que envolve toda a riqueza produzida nos territórios coloniais e, além disso, também compromete os herdeiros dos frutos do trabalho de escravizados.
Por sua vez, o Brasil se preocupou em prover reparação aos proprietários de escravizados. Em 1871, por exemplo, foi publicada a Lei do Ventre Livre, libertando os filhos das mulheres escravizadas, mas colocando-os sob custódia do senhor, que deveria receber uma indenização do Estado quando a criança completasse oito anos, ou poderia exigir compensação da própria criança, forçando-a a trabalhar até os 21 anos. Para Daniel Teixeira, essa foi uma clara medida de institucionalização do trabalho infantil, não por acaso, muito maior entre crianças negras na atualidade. Daniel afirma ainda que a Lei do Ventre Livre, ao prever indenização a escravocratas, também ia na contramão de países que adotaram medidas de promoção de direitos e integração econômica da população negra em contextos de abolição formal, como ocorreu no período denominado de Reconstruction, nos Estados Unidos, ao final da Guerra de Secessão (BENTO, 2022, p. 26).
Entretanto, no Brasil, além do favorecimento dos antigos escravagistas e da falta de integração social no momento pós-abolição, ainda houve o processo de acolhimento de migrantes europeus, escolhidos como responsáveis por branquear a nação brasileira e tornar o Brasil, que era um país escravista em que sujeitos de direito eram majoritariamente brancos, em um país de homens brancos livres. Não era possível suportar que a maioria dos sujeitos de direitos fossem negros.
Sueli Carneiro, inclusive, traduz essa tendência sob a lente foucaultiana do poder disciplinar. No momento de ascenção da disciplinarização e da modernização brasileira no período pós-abolição, o negro foi excluído dos processo de adequação ao trabalho. Os imigrantes, por sua vez, foram aqueles que preencheram a necessidade de trabalhadores formalizados e disciplinados para fazer funcionar os processos produtivos não escravistas no território nacional:
Portanto, estando o negro deslocado da esfera do trabalho no pós-abolição, ele estará alijado das técnicas disciplinares do trabalho. No entanto a sua existência social irá estar subordinada a essa nova tecnologia de poder. As técnicas disciplinares visam o corpo que vai produzir, assim como no pós-abolição o alvo dessas técnicas serão os trabalhadores imigrantes que substituem os ex-escravos na nova ordem econômica. (CARNEIRO, 2005, p. 90)
Já Cida Bento complementa este debate ao compreender que o Estado brasileiro proporcionou uma acolhida desigual aos migrantes europeus e aqueles que tinha origem em outros países:
Podemos encontrar um exemplo bem expressivo em ações do primeiro governo republicano brasileiro, que estimulou a vinda de imigrantes para o país. Todavia, essa imigração não poderia ser asiática nem africana, como nos mostra o decreto de imigração de 1890. Feito dois anos após a abolição da escravatura, ele nos permite conhecer o tratamento oferecido pelo Brasil para imigrantes vindos da África e da Ásia, bem como indígenas, e, de outro lado, para descendentes de europeus: o Estado brasileiro subvencionou as passagens dos imigrantes da Europa e determinou que nos primeiros seis meses ficariam sob sua proteção (BENTO, 2022, p. 27).
A entrada de migrantes europeus foi facilitada a fim de sua própria inserção no processo de modernização brasileiro fosse, também, facilitada. Desta forma, a massa de trabalhadores disciplinarizados poderia ser branca, produzindo filhos também imersos no processo disciplinar e na moralização do trabalho incoporada por seus pais migrantes e que já nasceriam no seio da família trabalhadora.
Considerações finais
O pacto da branquitude se expressa nessa seleção daqueles que poderiam participar dos processos de integração social e daqueles que seriam sumariamente excluídos pois seu estatuto de sujeito de direito não foi desejado, mas forçado por constrições econômicas e políticas.
Assinado quarenta anos após a publicação da Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico de escravos, o decreto dimensiona a concretude dos interesses e dos pactos narcísicos de determinados segmentos europeus e seus descendentes no Brasil. É ao longo da história que se forja o “sistema meritocrático” em que um segmento branco da população vai acumulando mais recursos econômicos, políticos, sociais, de poder que vai colocar seus herdeiros em lugar de privilégio (BENTO, 2022, p. 27).
Desta maneira, a colonização e o racismo foram elementos que, em conjunto, estabeleceram uma divisão racial entre aqueles que devem trabalhar manualmente e aqueles que devem trabalhar intelectualmente. Com esta divisão, a própria ciência, que é uma prática inserida historicamente, tratou de fundamentar o racismo exigido pela prática colonial e capitalista.
Apesar do racismo científico biológico não ser operante na atualidade, o racismo neoliberal presente nas ciências economicas que indiretamente relega aos negros a pobreza da nação é o desenvolvimento politicamente correto e cínico de um discurso racista que, ao perder sua base biológica, vê na, supostamente impessoal, economia a possibilidade de se valer.
Referências
BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. Versão digital. Disponível em <<https://elivros.love/livro/baixar-livro-o-pacto-da-branquitude-cida-bento-em-epub-pdf-mobi-ou-ler-online>>.
CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo – USP. Tese de Doutorado, 2005.
GROFOGUEL, Ramon. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, Volume 31, Nº 1, Janeiro/Abril 2016.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Clacso, 2005a. p. 107-30.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.