Como a loucura é vista hoje?

Incialmente, é necessário dizer: a loucura não existe. Mas como a loucura é vista hoje?

Pode-se dizer isso do ponto de vista da ciência psiquiátrica, que não utiliza este termo para designar pessoas com transtornos ou doenças mentais, entretanto, este texto busca falar da loucura como prática social em vez de enclausurá-la em um diagnóstico.

O que isso quer dizer? A loucura não existe enquanto produto da aplicação de métodos psiquiátricos, mas, em seu fundamento central, naquilo que separa aqueles que têm razão daqueles que são desrazoados, ela também não existe. Ao mesmo tempo, ela existe.

Inicialmente, trarei a fala de Sergio Bettarello, em fala com Bárbara Soalheiro, da revista Super Interessante:

Hoje, a ciência faz uma distinção clara entre loucura e doenças mentais. “Talvez pareça desconcertante, mas os psiquiatras não se utilizam de termos como louco ou loucura e nenhuma das atuais classificações dos distúrbios psiquiátricos os inclui”, diz Sérgio Bettarello, do Instituto de Psiquiatria da USP. Os absurdos classificatórios de alguns anos atrás, como chamar uma mulher que se apaixona por um homem mais novo de louca, minguaram. “A loucura como estado de ampliação da existência é positiva. Você costuma sair enriquecido depois de uma experiência dessas. Já as doenças mentais são o oposto disso. No lugar de liberdade, elas te dão uma restrição da autonomia”, diz Bettarello.[1]

É possível, então, compreender uma distinção: o louco dos fins do Renascimento e da entrada na Modernidade, aquele descrito por Michel Foucault na História da Loucura na Idade Clássica, seria produto de avaliações morais sobre pessoas que tomam decisões diferentes de uma norma social específica.

Entretanto, a loucura não é abordada no livro do autor francês como um fenômeno estático, como uma estrutura fixa que, com base em melhores diagnósticos, pode ser melhor observada ao longo do tempo. Loucura é o resultado de uma prática social e exatamente por isso ela existe e não existe. Não existe enquanto estrutura fixa, enquanto sinal imaculado de um desajuste. Mas existe enquanto prática social e, sendo social, enquanto prática científica.


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Como a loucura é vista hoje?

Voltemos à citação acima: a loucura existe enquanto doença mental. A prática psiquiátrica mantém a divisão entre aqueles que teriam razão e aqueles cuja razão estava perdida. Inclusive, esta divisão é um ponto de disputa entre pesquisadores da psiquiatria e da saúde mental. Segundo Costa Júnior e Medeiros:

A síntese que fizemos da conceituação de loucura na Psiquiatria nos aponta que nessa área ela está sendo afirmada como doença médica (somática ou orgânica) de origem genética. Na Saúde Mental, alguns poucos artigos fazem uma rejeição explícita da essência biológica na explicação psiquiátrica da loucura, embora seja quase unânime a rejeição de que o fenômeno da loucura se reduza a esse biologicismo e à sua terapêutica com tratamentos químicos.[2]

A loucura, então, ainda está em disputa. O discurso sobre a loucura se modificou deste a Idade Média, passando pela Idade Clássica e entrando na modernidade. Seu objeto, em suas variações, alcançou o estatuto científico, mas este estatuto não determina a verdade da loucura, pelo contrário, a loucura determina a verdade do estatuto científico. A divisão entre a razão científica e a desrazão se mantém, agora sob o rótulo de doença.

Perceberam, não se trata de entender a loucura como xingamento, como avaliação moral, mas enquanto prática que, por sua vez, constitui a ciência que lhe diagnostica e o próprio sujeito diagnosticado. A prática social da loucura produz o louco, em vez de o diagnosticar, como é subentendido pela prática psiquiátrica. Voltemos a Costa Junior e Medeiros:

É possível observar em alguns artigos que boa parte do fenômeno da loucura (principalmente seu aspecto social) é afirmada como conseqüência das internações hospitalares, resultando naquilo que, no indivíduo, é percebido como doença. O significado de doença terminaria por ser uma espécie de alvará científico para a intolerância e a estigmatização social, cujas conseqüências são os próprios fenômenos reificados como da loucura enquanto doença.[3]

A citação acima resume o entendimento de que a prática social produz o louco e revela que a loucura é vista hoje como doença e justamente por isso, como essência a ser corrigida pela intervenção médica. Isso não significa que nenhuma intervenção é necessária ou que a psiquiatria não tem nada a contribuir com o entendimento acerca da loucura, mas indica que a delimitação da loucura como doença mental funciona como uma estratégia de estabilizar um objeto, retirá-lo da disputa sobre seus fundamentos e inseri-lo num campo de realidade inquestionável. Quando a loucura é entendida como um dado da natureza, como uma patologia, a razão tende a ser naturalizada no ser humano e, assim, o projeto moderno de uma sociedade da razão se faz como horizonte palpável: quando não se é doente, se é dono da razão. Segundo Justin e Muria:

O debate entre normalidade e loucura abriu espaço para o poder exercido pela ciência formular o destino do sujeito rotulado através de um diagnóstico oferecido por um especialista. Os saberes científicos e suas técnicas ainda, tentam manter determinada ordem social, ou seja, tranca-se o sujeito no hospital psiquiátrico ou retira-se a legitimidade do discurso do sujeito que contraria essa ordem, considerando-o louco.[4] 

O que quero inserir aqui é a reflexão da loucura, não como utilizada no senso comum para classificar desafetos que passam pela vida ou pessoas excêntricas com hábitos fora do comum. A crítica sobre a loucura que está presente aqui assume que a forma contemporânea da loucura é a doença mental. A loucura na atualidade é doença e, enquanto doença, parece ser algo da natureza. A loucura é vista, hoje, como elemento de uma desordem natural, do corpo biológico, entretanto, aquilo que classifica o corpo biológico como detentor da possibilidade da loucura não é questionado.

Ainda de acordo com Justin e Muria, este processo de diagnóstico do louco na atualidade ainda é um processo em nível social e não só biológico. O resultado é a completa exclusão:

O psicótico, o dito louco, tornou-se na sociedade uma pessoa a não ser ouvida, mas sim uma pessoa a ser tratado como um objeto. Nesta passagem de sujeito a objeto, a especificidade e a história de vida deste sujeito deixaram de existir, ambas foram apagadas. O sujeito desapareceu.[5]

Ou seja, independentemente das preocupações humanitárias que a psiquiatria tradicional possa ter acerca do louco, independentemente da postura humanitária e da fala mansa que um psiquiatra ou outro possa ter frente a uma pessoa classificada como doente mental, o processo de sua classificação pressupõe seu apagamento.

Neste contexto, o trato carinhoso com o doente chega a parecer um destrato quando o tratamento não é realmente libertador. O apagamento se dá em relação à própria maturidade do sujeito, que é diminuído a um ser sem razão ou com uma razão quebrada.

Ao mesmo tempo, com os movimentos antipsiquiatria e antimanicomial, a loucura vem sendo vista, hoje, como um fenômeno social cujo tratamento químico ou isolamento social não responde à necessidade material do afligido. O sofrimento mental pede certo tipo de reintegração que a psiquiatria tradicional não consegue entregar. Novamente, a denúncia ao estatuto da loucura não é uma denúncia meramente moral, que deveria expor a pejoratividade em utilizar o termo “louco” com outras pessoas. A denúncia está nos níveis epistemológico e ontológico da doença mental como tal. Amarante e Torre nos ajudam a compreender que a crítica é relacionada ao próprio olhar individualizado e biologizante da medicina:

Em relação ao campo da psiquiatria e da saúde mental, a reflexão a que se procede é de que a observação in vitro transforma a “natureza” da doença, e que a experiência da institucionalização altera a experiência da “alienação” ou do sofrimento mental. Os processos de dessubjetivação, des-historização e perda das redes de relações, decorrentes da institucionalização dos sujeitos que sofrem, configuram uma verdadeira máquina de desfiguração da subjetividade e das possibilidades expressivas e sensíveis, de modo que já não se originam comportamentos e sintomas que derivam da “doença mental” ou do quadro de crise psiquiátrica que leva à internação, mas sim são efeitos da institucionalização, por meio da “mortificação do eu”.[6]

Nesta mortificação, o sujeito passa a ser objeto do olhar do médico.

Repito a questão: como a loucura é vista hoje? Numa sociedade da razão, o louco deve ser escondido, mas numa sociedade em que os manicômios se tornaram acertadamente estigmatizados, esconder os comportamentos que podem assinalar a existência da loucura é mais eficiente. Desta forma, medicalizar se transforma numa solução fácil e eficiente, pois, neste olhar comportamental típico das ciências psiquiátricas, o problema social do louco não é visto realmente como fenômeno social, mas como resposta ao comportamento da pessoa em sofrimento. Seu comportamento fora do padrão se desdobraria em sua exclusão social, sendo assim, medicalizar para normatizar o comportamento acabaria com este problema específico.

Entretanto, já está em disputa tal tipo de olhar, pois o desmonte dos manicômios é paralelo a uma criação de novos conceitos e, portanto, de novas práticas relativas ao tratamento da pessoa que passa por sofrimento. Segundo Amarante e Torre:

O conceito de cura tradicional cede lugar a uma concepção complexa sobre os sujeitos, em que o diagnóstico psicopatológico não é suficiente para a construção de possibilidades concretas de vida. A “cura” passa a ser compreendida no sentido da emancipação, da autonomia e da cidadania ativa, transformando e ampliando a própria noção de “ato terapêutico”, antes presa ao reducionismo do olhar médico-psiquiátrico, agora centrada na desconstrução da relação de tutela e do lugar de objeto que captura a possibilidade de ser sujeito.[7]

Um processo, então, de emancipação, pois o sofrimento mental não é concebido, assim, como doença, como patologia que precisa de cura ou reabilitação. A loucura é vista na atualidade dos movimentos contra as medidas patologizantes como uma experiência que precisa de reconstrução da emancipação, não de tutela médica.

Isso significa que o louco, desta vez acertadamente, não é mais um louco, mesmo sendo classificado como doente mental pela psiquiatria, na medida em que a prática que lhe acolhe é humanizada e humanizadora, na medida em que o lugar do tratamento é o lugar de desconstrução da tutela, de reintegração ao mundo social sem necessariamente retirá-lo deste mesmo mundo social. Esta tarefa não termina na retirada dos manicômios como instituições de tratamento, pois envolve também a retirada da conduta que as práticas inseridas no contexto de uma sociedade manicomial impuseram aos profissionais de diferentes áreas do conhecimento que lidam com pessoas com sofrimento mental. Segundo Wickert:

A derrubada dos muros manicomiais é necessária, mas de nada adianta derrubá-los no mundo exterior se estes continuarem internalizados na nossa conduta profissional e de cidadãos. O manicômio reflete o padrão social cartesiano marcado pelas dicotomias certo-errado, desrazão-razão, louco-são… São estas distorções que devem ser repensadas na busca de um mundo melhor, ou pelo menos, mais justo e humanitário.

Assim, entendo aqui o sujeito como aquele que é constituído, a própria prática tradicional constitui profissionais que mortificam o corpo do sujeito considerado doente mental (ou louco, portanto): anulam sua subjetividade, anulam sua autonomia, apagam sua possibilidade de emancipação e retiram-no do convívio. Somente a transformação constante tende a ser um caminho para a mudança sobre o olhar a respeito da loucura na atualidade.

Figuras do desatino

Referências

[1] SOALHEIRO, Barbara. Louco, eu? Revista Super Interessante, 2016. Disponível em <<https://super.abril.com.br/saude/louco-eu>>. Acesso em 10 de novembro de 2023.

[2] COSTA JÚNIOR, F. DA .; MEDEIROS, M.. Alguns conceitos de loucura entre a psiquiatria e a saúde mental: diálogos entre os opostos. Psicologia USP, v. 18, n. 1, p. 57–82, mar. 2007.

[3] COSTA JÚNIOR, F. DA .; MEDEIROS, M.. Alguns conceitos de loucura entre a psiquiatria e a saúde mental: diálogos entre os opostos…

[4] JUSTIN, Vitoria; MURIA, Elisangela. Loucura na atualidade e o desaparecimento do sujeito. Revista Diaphora: Porto Alegre, v. 8, n. 1, jan/jun 2019, p. 55.

[5] JUSTIN, Vitoria; MURIA, Elisangela. Loucura na atualidade e o desaparecimento do sujeito… p. 55.

[6] AMARANTE, P.; TORRE, E. H. G.. “De volta à cidade, sr. cidadão!” – reforma psiquiátrica e participação social: do isolamento institucional ao movimento antimanicomial. Revista de Administração Pública, v. 52, n. 6, p. 1090–1107, nov. 2018.

[7] AMARANTE, P.; TORRE, E. H. G.. “De volta à cidade, sr. cidadão!” – reforma psiquiátrica e participação social: do isolamento institucional ao movimento antimanicomial. 

[8] WICKERT, L. F.. Loucura e direito a alteridade. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 18, n. 1, p. 38–45, 1998.

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