Enquanto a comunidade foi construída na modernidade como um lugar de segurança e confiança mútua, a busca pela identidade nasce como uma substituição para impossibilidade de pertencimento a uma associação coletiva, adverte Zygmunt Bauman.
Se um dos maiores problemas da atualidade é a sensação de insegurança estrutural em nossa sociedade líquido-moderna, a sensação da impossibilidade de se fixar em uma determinada condição de trabalho, condição econômica e social que seja estável, construir uma comunidade seria a resposta para toda falta de referencial ético, moral ou para a simples sensação de insegurança a respeito do próprio lugar dentro da sociedade.
A impossibilidade de reencaixe
A oposição entre modernidade sólida x modernidade líquida traz consigo as diferenças entre uma época em que os indivíduos tinham centros de referência para tomarem atitudes morais, julgamentos estéticos, para decidirem sobre suas vidas e para se encaixarem na ordem social, e uma outra em que esses centros de referência já não exercem seus papéis como deveriam.
A modernidade líquida é o lugar em que o processo de destruição criativa, em que se destrói uma ordem para criar uma nova, com novos espaços sociais e com novas coordenadas de convivência, com uma nova moral e talvez com práticas substancialmente diferentes, só acontece como destruição.
Isso quer dizer que o desengajamento coletivo – uma das características marcantes da pós-modernidade – também carrega em seu bojo uma transformação das instituições que funcionavam como guias coletivos e como laços para ações coletivas: não há mais criação de possibilidades de reencaixe em nossa sociedade, os indivíduos flutuam sobre a estrutura social sem saber muito bem como se portar com segurança e com garantia de aceitação dentro da diferentes situações em que se encontram.
As identidades perdem seu caráter de raiz e se transformam em meras âncoras: não são mais presas ao chão, já não são o resultado daquilo que o sujeito é por pertencer a uma cultura, família, religião ou partido, não é algo mais ou menos nuclear, algo que não se troca, algo que é necessário lidar para sempre. Elas são âncoras na medida em que a âncora é um peso sem fixação. É um peso banal.
O desengajamento coletivo tem como sintoma (ou como causa) a completa desvalorização do Estado-nação enquanto instituição agregadora e da família enquanto um forte aparelho de reprodução ética e cultural – os filhos já não serão cristãos porque seus pais são, também não seguirão a mesma profissão da família e provavelmente não serão partidários das mesmas causas que eles.
Os indivíduos são abandonados a sua própria sorte para conseguir formar sua identidade e sobreviver em uma sociedade ultracompetitiva e individualista, a busca da felicidade individual passa a ser a única coisa que vale a pena ser investida.
Segundo Tiago Fragoso, “Chega-se no entender de Bauman a era da comparabilidade universal, onde os indivíduos não possuem mais lugares pré-estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas devem lutar livremente por sua própria conta e risco para se inserir numa sociedade cada vez mais seletiva econômica e socialmente.”
A busca pela felicidade individual
Entretanto, a felicidade individual é buscada em termos de mercadoria. Os novos lançamentos de produtos que prometem fazer o consumidor feliz são substitutos – e comprados em grande quantidade – de artigos não monetários que de fato trazem a felicidade, como o “o amor, a amizade, os prazeres da vida doméstica, o companheirismo, a autoestima por um bom trabalho, o respeito mútuo etc”.
É a velha história da qualidade que é substituída pela quantidade. Porém, as mercadorias não suprem a necessidade humana por relações sociais de qualidade, o resultado disso é a vida em uma sociedade com altos índices de depressão, transtornos bipolares e síndrome do pânico.
A busca da felicidade dentro do mercado nunca tem fim, o consumo nunca terá um fim. Como a felicidade nunca é alcançada e os padrões de satisfação são sempre altíssimos (afinal, se busca a felicidade plena, não uma vida gostosa de se viver – melhor, uma vida gostosa de se viver é unicamente uma vida de felicidade plena e orgástica, a vida estável perde seu valor), o mercado se mantém sempre em alta, produzindo e inventando novas necessidades para a busca da felicidade.
E felicidade está relacionado também com sentir-se parte dos grupos em que se convive. Em uma sociedade (ou em grupos), todas as pessoas buscam aprovação.
Não ser rejeitado é algo de enorme valor para qualquer um. Em uma sociedade de consumo, não ser rejeitado envolve adaptar-se a todas as situações, envolve conseguir o reconhecimento social – o reconhecimento social é a única garantia de que a posição que um sujeito aspira ou pertence está sendo de fato vista e respeitada.
A identidade sofre com essa necessidade constante de re-adaptação e reconhecimento social (lembrando que a necessidade de reconhecimento social está associada com a necessidade de ter segurança em relação à permanência em uma posição social. Como isso não existe em uma sociedade líquida, a força para se adaptar nas diferentes circunstâncias aumenta vertiginosamente).
Identidade e comunidade
A identidade é uma maneira de sentir-se seguro fora da comunidade. A comunidade é “um lugar seguro, quente e aconchegante. A sociedade pode ser má, mas a comunidade não. Viver em comunidade possibilita a experimentação de prazeres que não se encontram mais acessíveis. Todos estão seguros e têm a certeza de que estão livres de perigos ocultos“. A comunidade é o lugar em que os acordos são feitos tacitamente, a comunicação dominante é informal e tudo que é necessário saber coletivamente está em espaço público, mas oculto. Todo mundo sabe o que deve ser sabido e todo mundo está preso as regras coletivas.
A comunidade é, então, assim como a noção rousseoniana do contrato social, uma troca de liberdade por segurança. A liberdade individual é sacrificada em nome da segurança existencial e material de viver em comunidade.
Mas a comunidade se desfaz quando novos horizontes são abertos e mais grupos/pessoas, que estavam do lado externo da comunidade, já não são mais “eles” e podem fazer parte do “nós”.
A comunidade é uma utopia que serve como ideal para a parte vulnerável da sociedade. É esta parte vulnerável que forma “comunidades estéticas”. Comunidades com laços frouxos, que passam uma sensação de segurança, de união, de cumplicidade, mas que não são mais que momentos para aliviar o sufoco cotidiano de viver sem garantias futuras.
São os clubes, os grupos étnicos, os coletivos artísticos, os sindicatos e etc e etc. As minorias se investem do objetivo de fazer uma comunidade para se protegerem da realidade líquida.
Quando as relações deixam de ter como fundamento uma lógica interna “natural” e são mediadas por regras “autoconscientes”, ou seja, quando é necessário nomear claramente e formalizar aquilo que media as relações sociais, a comunidade desaba e cada indivíduo é convidado pela situação dramática do abandono a procurar um espaço social e cultural para se alojar – é necessário que se construa uma identidade.
Na dita pós-modernidade, as identidades perdem seu caráter de “natureza” e ficam cada vez mais superficiais e compradas em lojas de departamento e os espaços para construção coletiva social desaparecem ao serem constantemente privatizados.
Espaços públicos
Então como sair dessa sinuca de bico em que as identidades (que representam a liberdade fora da comunidade) expressam o fardo de ser livre, ao invés de representarem uma possibilidade maior de viver sob as próprias rédeas? As elites globais podem exercer sua liberdade como quiserem, já a massa de humanos, que não se encontra com poder nenhum de decisão, está fadada ao desespero e à solidão em meio ao mundo competitivo. A liberdade é, na verdade, uma sina para quem não tem condições de aproveitá-la.
As elites podem ter a identidade que quiserem. Não se fixam em lugar nenhum, moram em todos os lugares e podem pertencer a todas as culturas. Já a massa precisa se adaptar sozinha a um mundo sem uma linguagem cultural precisa e segura, em um mundo de insegurança que não lhes reserva um destino garantido. Todos estão jogados em uma competição louca e agressiva.
É necessário, para Zygmunt Bauman, retomar os espaços públicos, os retirando da iniciativa privada. Isso significa não só ocupar o espaço público, mas coletivizá-lo. Tomar para o coletivo (ou para as instituições que o representam) todos os pedaços que fomentam ações coletivas. É necessário uma nova onda de engajamento e para isso, também é necessário a construção de instituições que “fabriquem” engajamento político, que combinem o projeto de vida com a Política (essa mesma com letra maiúscula, que significa a política da própria sociedade).
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
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