Crítica ao programa de Gotha e a questão da remuneração – Karl Marx

Crítica ao Programa de Gotha é aqui esmiuçada para formar uma visão sobre a Casa Fora do Eixo e seu funcionamento. tomando como base os textos de três pessoas que se relacionaram de alguma forma com a Casa, fica aqui alguns pareceres.

Índice

Introdução

A Crítica ao programa de Gotha é um livro essencial na literatura marxista, pois é um passo inicial para se entender categorias de análise dentro da esfera do trabalho e ponto de partida para compreensão de como transformar em realidade concreta alguns objetivos do comunismo. Nesta crítica, Karl Marx destrincha o programa da Social-Democracia Alemã, que iria realizar um congresso em Gotha, cidade alemã do estado da Turíngia.

Pra ilustrar o funcionamento de uma sociedade comunista, tento comparar o texto de Marx com o funcionamento da Casa Fora do Eixo, que em 2013 recebeu denúncias de não remunerar seus participantes.


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A divisão na crítica ao programa de Gotha

Por ser um dos poucos documentos onde Marx discute a sociedade comunista, seu programa e sua possibilidade de nascer, é dele que conseguimos citações que revelam como se daria uma divisão dos produtos do trabalho na sociedade igualitária. Segundo Marx, o produto final não pode ser dividido igualmente entre os produtores, justamente porque na sociedade há aqueles que não produzem.

Ao discutir os “proventos do trabalho” (expressão do programa de Gotha), Marx reclamava que:

“Se tomarmos, primeiro que tudo, as palavras «provento do trabalho» no sentido do produto do trabalho, então, o provento co-operativo do trabalho é o produto social total.

A isso há, então, que deduzir:

  • Em primeiro lugar: cobertura para reposição dos meios de produção gastos.
  • Em segundo lugar: uma parte adicional para expansão da produção.
  • Em terceiro lugar: um fundo de reserva ou de seguro contra acidentes, perturbações por fenómenos naturais, etc.

Estas deduções ao «provento não reduzido do trabalho» são uma necessidade económica e há que determinar a sua grandeza segundo os meios e as forças disponíveis, em parte por cálculo de probabilidades, mas de modo nenhum elas são calculáveis a partir da justiça.

Fica a outra parte do produto total, destinada a servir de meio de consumo.

Antes de se chegar à repartição individual, retira-se de novo dela:

  • Em primeiro lugar: os custos de administração gerais, não diretamente pertencentes à produção.
    Esta parte será, desde o início, limitada do modo mais significativo, em comparação com a sociedade atual, e diminui na mesma medida em que a nova sociedade se desenvolve.
  • Em segundo lugar: o que está destinado à satisfação comunitária de necessidades, como escolas, serviços sanitários, etc.
    Esta parte cresce significativamente, desde o início, em comparação com a sociedade atual e cresce na mesma medida em que a nova sociedade se desenvolve.
  • Em terceiro lugar: fundo para os incapazes de trabalho, etc, para o que hoje pertence à chamada assistência aos pobres oficial.”

Ou seja, o produto social total não pode ser somente divido, é necessário entender que há aqueles que não produzem e que há determinadas coisas que precisam ser administradas (o modo de produção precisa se reproduzir constantemente e, caso necessário, expandir). Eu queria somente comentar sobre este ponto para que a frase “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades “ comece a fazer mais sentido.

Marx assinala que, em uma sociedade com o sistema de trabalho assalariado abolido, a produção seria, então, segundo as capacidades dos produtores e distribuída segunda suas necessidades. Partir do pressuposto da divisão igual dos produtos sociais totais é partir do pressuposto que cada indivíduo é somente trabalhador. Cada indivíduo é trabalhador, pai, mãe, estudante e etc e etc. Não há como reduzir as esferas de atuação do indivíduo somente à econômica.

Onde eu quero chegar?

Crítica ao programa de Gotha e a casa Fora Do Eixo

Depois da entrevista de dois representantes da Mídia NINJA/Casa Fora Do Eixo no Roda Viva, alguns textos relatando a vivência no local brotaram na internet. Eu vou, aqui, tomar como base três textos: o de Beatriz Seigner, realizadora do Boolywood Dream, que fez uma longa denúncia a respeito de sua relação com a Casa FdE, Louise Akemi, trabalhadora do FdE Bauru e de Ney Hugriot, ex-integrante do Macaco Bong, que também trabalha na casa.

Teve um ponto que, num primeiro momento, me deixou espantado: Beatriz acusa a casa de ser um lugar de “trabalho escravo”,

como elas vivem e trabalham coletivamente no mesmo espaço, gera-se um frenesi coletivo por produtividade, que, aliado ao fato de todos ali não terem horário de trabalho definido, acreditarem no mantra ‘trabalho é vida’, e não receberem salário, e portanto se sentirem constantemente devedores ao caixa coletivo, da verba que vem da produção de ações que acontecem “na ponta”, em outros coletivos aliados à rede, faz com que simplesmente, na casa Fora do Eixo em São Paulo, não se encontre nenhum indivíduo lendo um livro, vendo uma peça, assistindo a um filme, fazendo qualquer curso, fora da rede.

Se trabalho = vida e vida é vivida 24 horas por dia, então o trabalho acontece 24 horas por dia. Há uma coisa interessante no comentário da Beatriz: o frenesi coletivo por produtividade. Volto a falar disso mais adiante. Antes, a resposta de Louise e Ney sobre o comentário de Beatriz,

Eu sou do Fora do Eixo por saber que é aqui onde eu vou ter as melhores oportunidades de superar meus próprios limites, de avançar em questões pessoais, dificuldades, inseguranças e medos. Não há dúvidas, é aqui, onde eu vou ter mais chances na vida de me tornar uma pessoa cada vez melhor, mais qualificada, mais ágil, mais preparada psicologicamente pra desafios e emoções. É aqui que os assuntos são tratados olho no olho, é aqui que trabalhamos uma horizontalidade onde todos podem falar, qualquer um pode entrar, qualquer um pode fazer parte. É aqui que estamos propondo possibilidades diferenciadas do que o mundo tem a nos oferecer, é aqui onde trabalhamos a humanização nos processos, a não hierarquia dentro de orgnanizações.
Por saber que é um laboratório, e todos que topam esse laboratório, são protagonistas de uma cena e uma proposta de vida que nem se quer se sabe onde pode chegar, o quanto pode transformar e como pode ficar, só se sabe que é preciso tentar, arriscar, solidarizar, desapegar e transformar. [Louise]

Sim, trabalhamos pra caralho, somos focados no bagulho. Mas tenho certeza que de nenhuma outra maneira teria visto tantos shows na minha vida… tanto de bandas novas quanto alguns crássicos. nunca teria viajado para tantos lugares, e nunca teria tocado para mais de 10 mil pessoas. ouço música o dia inteiro, leio (até gosto de livros, mas tenho preferência pela oralidade dos Mestres), ando de bike, faço um som e jogo futebol. no teatro eu nao vou, pq prefiro o teatro de rua. vejo muitos tb. Alguns deles construídos em parceria. ja ta tudo ali, a vivencia, o trabalho-vida é poder acender o banza no meio do trampo a hora que eu bem entendo, e não naquela lógica depois das 18h, qdo se bate o ponto, e se encerra o trabalho: “pronto, agora eu vou viver. Quem sabe ver um filminho…”

Alem disso vivemos a autoralidade coletiva. quem está em uma casa fde sabe que nao vai precisar apresentar um portfólio de suas fotos, texto, vídeos, ações, produções pra conseguir um freelazinho, pra suprir suas necessidades básicas e comprar seu prazer. E sabe que, enquanto coletivo, a mesma autoralidade coletiva que ele doa pra rede volta 2 mil vezes mais. vc coloca a sua força na autoralidade coletiva para uso de duas mil pessoas. E 2 mil pessoas colocam sua força na autoralidade coletiva que você pode usufruir. é matematicamente impossível sair no prejú por não ter “assinado uma criação”. [Ney]

O que eu percebi com os três relatos: o funcionamento que Beatriz destacou não é negado, ele realmente é do jeito que Beatriz denunciou. Lousie e Ney criticam a forma como Beatriz trata o funcionamento do trabalho no FdE. Ou seja, realmente as pessoas trabalham sem salário e sem crédito por suas realizações, a diferença é que Beatriz toma isso como exemplo da exploração, exemplo de um modo de existência monopolizante e coercitivo (já que retira a possibilidade de formar um portfólio), enquanto Ney e Louise tomam este funcionamento como algo libertador e horizontal.

Uma coisa é mais ou menos clara (e eu não comecei o texto com Marx à toa): “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades “ começa a fazer mais sentido. Entretanto, agora vem a questão: quais são as minhas capacidades? Qual é a minha necessidade?

Capacidade e necessidade não são categorias definidas individualmente e é por isso que eu acredito que Beatriz tocou num ponto interessante ao falar sobre o frenesi coletivo por produtividade.

Como definir “suas capacidades” e “suas necessidades”?

Primeiramente, eu não acredito que a definição das capacidades se dá somente na ordem objetiva e individual. É claro que há um limite corporal pra se fazer algo – um limite que vai desde a fadiga muscular até o cansaço da mente – mas há outros limites que definem o que é “normal” para ser produzido. Aquilo que é produzido “de acordo com minhas capacidades” é sempre um fruto de coerções sociais que definem o ponto mínimo inicial que minhas capacidades podem ser socialmente aceitas até seu ponto máximo. Dentro desta escala do mínimo aceito até o máximo aceito, em cada ponto da gradação, há também uma variação que envolve outras esferas: aqui eu acredito que a esfera simbólica entra. Vira uma questão de imperativo categórico e dívida moral. No caso do Fora do Eixo, como disse Beatriz, como ninguém recebe salário e como todos se utilizam dos fundos da casa, todos são ‘devedores’ de alguma forma.

Indo além, como deixou explícito Louise e Ney, além desta coerção externa, há uma construção de um “novo sujeito”, que, na verdade, entra em consonância com o sujeito líquido do trabalho pós-moderno: aquele que vê na desregulamentação do trabalho e em sua flexibilização, uma oportunidade de “conhecer de tudo um pouco”, de aprender a “lidar com a insegurança” e etc e etc. Como isso entra no Fora do Eixo: oras, o FdE é uma casa que nasceu na pós-modernidade e tem como bojo de produções, as crias do mundo líquido-moderno.

Não é novidade que seu ambiente de trabalho seja tão líquido quanto o de qualquer empresa, por mais “diferente” que a lógica horizontal possa ser (o que é muito questionável, afinal, uma das táticas das empresas é a horizontalização de suas estrutura junto com o enxugamento de seus quadros).

Então há a própria constituição do sujeito de maneira que o trabalho flexível e desregulamentado seja um sinônimo de liberdade, de novidade, de uma nova maneira (que parece ser) revolucionária de se entrar na esfera do trabalho.

O que eu quero dizer com isso? Que o frenesi de produtividade não é só por conta da “dívida eterna” com a casa, mas é uma disposição socialmente construída que não tem limites exatamente por não haver essa divisão clara entre trabalho e vida (vida sendo o não-trabalho formal). Melhor: porque o trabalho fica espalhado pela vida, estruturando o sujeito e sua noção de como a vida deve ser vivida (fornecendo a reprodução de valores como “liberdade”, “risco”, “flexibilidade” e etc. O frenesi de produtividade pode ser entendido como um imperativo, mais até do que uma coerção externa (que só vai ser sentida, na medida em que o sujeito não conseguiu praticar este imperativo – na medida em que não é um imperativo para ele).

Ao mesmo tempo, gasta-se o “necessário”, mas o necessário está sempre mediado com os privilégios de moradia gratuita e fundo coletivo que a Casa fornece. É por isso que Beatriz fala sobre sentir-se “constantemente devedor”. Se o fundo coletivo não é seu, então é sempre necessário prestar contas, mesmo que inconscientemente.

Considerações finais

Se levarmos em consideração que, no FdE Trabalho = Vida, no sentido do trabalho não ser uma coisa que se deve ter repulsa, que tem horário programado e que é sempre odiado, mas, muito pelo contrário, coincide com o prazer de viver, então poderíamos até mesmo chegar à conclusão de que a maneira como o microcosmo que é o FdE trabalha está próxima do tipo ideal “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades“. Mas, e tomando como base os depoimentos linkados ao longo do artigo, o que é possível perceber é uma estrutura de trabalho que não se difere das empresas flexíveis, pós-industriais e etc.

A máxima de Marx, que simboliza a liberdade do trabalhador e a essencialidade do trabalho, parece ser aplicável a primeiro momento, mas é necessário entender que as próprias noções de Capacidade e Necessidade são construídas e reproduzidas socialmente. Isso quer dizer que o trabalho libertador/flexível é aquilo que Bauman chama de sinóptico: o dispositivo de controle e vigilância que seduz. Não precisa mais de força coercitiva.

Fazendo o paralelo: o trabalho é libertador porque não há nem mesmo linguagem necessária pra dizer que “não”. O trabalho libertador atrai e é tido como realmente libertador porque a noção de liberdade está associada de maneira fundamental com a flexibilidade do trabalho oferecido. É como se o sujeito fosse constituído para isso. A casa se mostra, então, sincronizada com a estrutura de trabalho flexível, em rede (articulações) e desregulamentada.


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Crítica ao programa de Gotha para ler online

O livro pode ser baixado daqui, em PDF.

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