Em busca do Curso de Linguística Geral – Michel Arrivé

O trabalho de Arrivé no capítulo de Em Busca de Saussure referente à análise do Curso de Linguística Geral busca a instabilidade entre os conceitos-chave trazidos por Saussure. São analisados os conceitos de significante, significado, signo, os dois princípios de Saussure e as relações possíveis entre os elementos linguísticos.

Da série “Saussure e a AD”.

Livro Em Busca de Ferdinand de Saussure, de Michel Arrivé.
Livro base deste artigo, foi publicado em 2010 (Clique na imagem para adquirir o livro).

O presente artigo tem como objetivo mostrar a análise de Michel Arrivé sobre a obra Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure, feita em seu livro Em Busca de Ferdinand de Saussure, lançado pela editora Parábola e cedido gentilmente ao Colunas Tortas.

Arrivé foi um linguista francês com especialidade em Ferdinand de Saussure e na ligação entre sua linguística e a obra do psicanalista Jacques Lacan. Fez carreira como professor de linguística na Universidade de Paris X Nanterre.

O autor se esforça em mostrar as inconsistências internas do Curso e esclarece a função de conceitos-chave para a noção geral de Saussure sobre o funcionamento da língua e sua delimitação enquanto objeto da ciência.

É assim que os conceitos de significante e significado são analisados para posterior problematização, o mesmo vale para os dois princípios básicos de sua linguística apresentados por Saussure no Curso. Ao mesmo tempo, as consequências de cada problematização afetam o todo e, assim, entram em cena esclarecimentos a respeito da dicotomia entre as temporalidades sincrônica e diacrônica.

Entendendo o Curso de Linguística Geral

Arrivé toma para si o desafio de compreender o Curso de Linguística Geral (doravante CLG) a partir dos conceitos ali explicados e inserir num panorama crítico o livro mais famoso que Saussure não teve tempo de escrever.

É importante entender que o CLG não foi escrito por Saussure e nem foi publicado enquanto o autor ainda estava vivo. Se trata de um escrito póstumo organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye a partir dos cadernos de anotação de Francis Joseph dos cursos proferidos pelo linguista na Universidade de Genebra de 1906 até 1911.

Para Arrivé, é marcante como o signo é nuclear nos desenvolvimentos de Saussure, “um ponto central é introduzido sem muito barulho: o vínculo indissolúvel entre a noção de signo e a de sistema. Em Saussure, não existem signos fora dos sistemas que eles mesmos constituem”[1]. A língua é um desses sistemas e está integrada à linguagem, na medida em que é sua parte essencial.

No entanto, enquanto a língua é a parte essencial da linguagem, do outro lado da oposição está a fala, como sua parte acessória. Aqui se monta uma das grandes dicotomias provocadas pelo CLG: língua x fala. A relação hierárquica parece clara: a língua seria preferida por ser mais importante para a análise linguística.

Arrivé se debruça sobre este primeiro problema tomando posição contrária à interpretação comum: para o autor, não há marginalização feita à fala, ao contrário,

a própria presença do capítulo “Linguística da língua e linguística da fala”, com a figura quase oximórica da expressão “linguística da fala”, mostra explicitamente que a linguística tem de se encarregar da língua, é claro, mas também da fala.[2]

São os cadernos do aluno Emile Constantin que cravam uma visão diferente daquela do CLG. Estes escritos colocam as diferenças de importância da língua e da fala

de forma muito mais atenuada, quando não as anula totalmente […] “já dissemos, é o estudo da língua que, da nossa parte, perseguimos. Dito isso, não se deve concluir que na linguística da língua não se deva jamais lançar um olhar para a linguística da fala. <Isso pode ser útil, mas é um empréstimo tomado ao campo vizinho>”.[3]

São dois campos distintos não necessariamente hierarquizados. A diferença de foco decorre da escolha do objeto de análise, quando tomamos a versão de Constantin.

Passado o problema inicial da dicotomia entre língua e fala e sua suposta hierarquização, o signo retorna como objeto de Arrivé. O autor vê um problema substancial na solução proposta por Saussure através da formulação da oposição significante x significado. Para o autor, signo é a união arbitrária de uma imagem acústica (significante) com um conceito (significado).

A oposição teria como base a exclusão da coisa, do referente. Ou seja, tomando o primeiro princípio de que o signo é arbitrário, o significante e o significado se uniriam sem a intervenção do referente, objeto que daria essência a essa união e a tornaria necessária em vez de ocasional.

No entanto, significante e significado são termos que deslizam nas explicações de Saussure, que tenta mantê-los distantes dos objetos reais para evitar a noção da língua enquanto nomenclatura, ou seja, enquanto uma lista de palavras que designam coisas previamente colocadas sobre a mesa para serem nomeadas. Saussure não compreende a língua desta maneira, o autor não concorda com tal posicionamento e não vê no vínculo entre o nome e a coisa uma operação tão simples como a da nomenclatura[4].

O termo “operação” o diz claramente: o que se invoca aqui é o processo linguístico pelo qual o referente é assumido pelo signo […] a “operação” pela qual os “objetos” são “designados” decorre da fala. Ela pertence claramente à linguística, mas à linguística da “fala”, que, segundo acabamos de ver, Saussure exclui (provisoriamente?) de seu projeto, mesmo tendo afirmado sua legitimidade.[5]

Com o referente excluído da jogada, temos o signo linguístico como a união de imagem acústica e conceito, significante e significado, regidos pelo primeiro princípio, da arbitrariedade do signo.

Essa arbitrariedade, aliás, não é válida para o símbolo, que carrega uma determinação entre significado e significante, além de não fazer parte do sistema da língua. Um exemplo de símbolo é a estátua da justiça com os olhos vendados que, em teoria, seria identificada através da força histórica que o significante representa para seu significado.

Voltando ao signo: se é arbitrário, é imotivado, não é produto de necessidades externas a ele próprio. A ligação entre um significante e um significado é de uma maneira e poderia ser de qualquer outra, na medida em que não há motivação para sua união. Entretanto, frisa Arrivé, Saussure estabelece dois tipos de (i)motivação: uma imotivação (absoluto arbitrário) e uma motivação relativa. Exemplo: vinte é imotivado, qualquer palavra poderia significar duas dezenas, entretanto, vinte e um ocorre através de uma motivação relativa, na medida em que foi necessário unir dois significantes em uma ordenação lógica que trava qualquer tipo de arbitrariedade na sequência dos números. Vinte e um é um sintagma que depende logicamente de outros dois significantes previamente estabelecidos. À frente abordaremos a noção de sintagma.

A separação entre imotivação (ou arbitrário absoluto) e motivação relativa na análise da língua leva Saussure a categorizá-las em dois tipos: as lexicológicas, com alto grau de imotivação, e as gramaticais, com baixo grau de imotivação. É importante reparar que a referência para esta categorização é a imotivação, como se a motivação relativa fosse um resíduo pré-existente ou um erro, desvio, da imotivação. Nota-se a preferência pelo arbitrário e a força do primeiro princípio na linguística do suíço.

A preferência não é ilógica: a motivação relativa atua sobre os elementos internos da língua, não sobre a relação entre significante e significado, portanto, não atinge o primeiro princípio de arbitrariedade do signo. No entanto, como provar este arbitrário?

Para Saussure, não é possível afirmar que o significado irmã tem relação indissociável com o som de i-r-m-ã, não obstante, somente haja esta palavra para significar o que irmã significa. Como podemos provar o arbitrário se é sabida a ligação entre significante e significado que determina nossa comunicação? Apelando para a comparação com outras línguas? Para isso, há um problema também identificado pelo autor: não necessariamente a palavra irmã significa a mesma coisa que a palavra sister, por exemplo. A linguística de Saussure vai além e, em seus manuscritos, nega qualquer possibilidade de correspondência exata entre signos de línguas diferentes[6].

Arrivé busca em Édouard Pichon a ajuda necessária para lidar com essa situação. Para este, é claro que a tradução do mesmo significado para um significante diferente é a prova de que a língua é arbitrária. Saussure errou na medida em que inseriu, como dito mais acima, o referente em sua análise. É a partir da ideia da coisa concreta que Saussure cria a diferença indizível entre duas palavras que significariam a mesma coisa, pois, em sua análise, o significado deixa de ser a ideia geral da coisa e se transforma na própria coisa.

O segundo princípio, do caráter linear do significante, é ainda mais difícil de equilibrar que o primeiro. De início, é necessário observar sobre o que fala este princípio. O caráter linear do significante é uma maneira de dizer que a temporalidade do significante representa uma extensão mensurável em uma única dimensão, ou seja, é uma linha[7].

O significante é linear porque é material. É sua materialidade que leva os “elementos” (os “significantes acústicos”) a se manifestarem sucessivamente no tempo da fala, isto é, da atualização concreta da língua.[8]

Ao mesmo tempo, Saussure conclama o caráter incorpóreo do significante. O significante fora dos limites da coisa significada.

Como lidar com essa situação? Por um lado, o significante é atrelado ao som que o torna material, por outro lado, ele é incorpóreo, portanto, imaterial e não atrelado ao som. Essa questão não é respondida pelo próprio Saussure, que também passou a utilizar o termo “caráter linear da língua” no lugar de “caráter linear do significante” ao longo do CLG, que traz ainda mais problemas, já que a língua é um sistema de signos e, assim, a linearidade estaria neste sistema composto por junções de significantes e significados, de modo que o caráter linear do sistema de signos também suscita a questão sobre a possível linearidade do significado.

Arrivé conclui que o primeiro princípio é interessante para Saussure porque lhe da facilidade para explicar os conceitos de sistema (que depende da relação diferencial entre os elementos) e valor (que depende do lugar específico de um elemento e como ele funciona em relação aos outros), por isso o linguista não se preocupa em elaborar explicações para prová-lo. “Não há dúvida de que teria sido preferível apresentar o princípio por aquilo que ele é: um postulado não demonstrado”[9], afirma Michel Arrivé.

O segundo princípio é um ponto sem nó. Saussure passa da linearidade do significante para a linearidade do signo até chegar na consecutividade deste na formação de um sintagma. Este, diz Arrivé[10], é um tópico insatisfatoriamente explicado na teoria.

Talvez, os princípios não sejam rigorosamente explicados na teoria de Saussure por terem uma utilidade posterior, como se tivessem sido formulados após um primeiro ciclo de desenvolvimentos em que nasceu a noção de valor, suportada e possível graças à aceitação do primeiro princípio acima esclarecido e central na teoria saussuriana. Ela só pode ter lugar prático em seus escritos na medida em que a língua seja analisada de seu ponto de vista interno, na medida em que as unidades linguísticas não sejam definidas a partir de relações exteriores à suas próprias.

Esse é o motivo pelo qual é preciso instalar o arbitrário entre o signo e o referente. Mas como o referente não tem, de imediato, nada a fazer na língua, o único meio de instalar o arbitrário é deslocá-lo e situá-lo entre os únicos planos que têm alguma pertinência linguística: o significante e o significado.[11]

A noção de valor é essencial na linguística saussuriana, deixando o primeiro princípio, da arbitrariedade do signo, derivado da necessidade de dar suporte ao valor. O primeiro princípio tem importância derivada nesta arquitetura conceitual feita para dar condição de possibilidade a uma interpretação hermética da língua:

Para Saussure, é essa a concepção que importa [a concepção de valor]. Ela consiste em levar consideração, no estatuto das unidades linguísticas, apenas as relações que as unem no sistema de valores que elas constituem.[12]

É a noção de valor que impede considerar uma língua como uma soma de  simples associações entre sons e conceitos, como uma soma de todas essas partes, quando, na verdade, a situação é contrária: deve-se olhar o todo para entender seu funcionamento e, assim, o papel das partes. Mais que isso, o sistema da língua, definido através do valor, da diferença entre os significantes e significados, portanto, um sistema negativo, também carrega alguma positividade. A positividade do signo é garantida mesmo através da negatividade de significantes e significados: o exemplo de Saussure são os termos pai e mãe, que são  diferentes quando considerados sob o aspecto de significantes e significados, mas opostos quando vistos como signo.

Esta positividade restante é admitida por Arrivé como a possibilidade da comunicação. O circuito da fala não pode funcionar sem uma ponta de positividade instalada no signo: somente com a noção de valor, significantes e significados são negativizados.

É difícil compreender de onde esta ponta de positividade irá sair. Se ela garante a comunicação, o funcionamento do circuito da fala, então deve vir da ação humana, sendo assim, deve haver algo externo à língua pra dar positividade ao signo (e aqui entra a análise do discurso para explicar as escolhas de enunciados em situações, locais e interações diferentes).

Dicotomias

A construção de uma frase envolve o uso dos sintagmas, que são combinações de termos para geração de novos significados. Se trata de uma operação na linha do tempo, que caracteriza o segundo princípio, do caráter linear do significante, e é observado somente no discurso do falante, que, como hipótese, consideramos o acionador da comunicação e, assim, elemento que traz positividade ao signo.

Em oposição às relações sintagmáticas, as relações associativas são feitas através das associações não necessariamente funcionais entre signos. São associações que devem mais à forma da palavra que a seu significado, como a associação entre panela e parede, através da primeira sílaba pa. Para Arrivé, é neste ponto que Saussure se encontra com Freud e seus desenvolvimentos a respeito dos lapsos, já que a memória é elemento crucial nas relações associativas.

Ambas as associações dependem da dicotomia entre sincronia e diacronia. Anteriormente, havíamos começado a falar sobre o problema relativo ao segundo princípio, da linearidade do significante, e como os escritos de Saussure mostram um deslizamento entre o foco no significante e na língua. O caráter linear é no significante ou na língua? A resposta não pode ser encontrada nos desenvolvimentos do linguísta, que permaneceu em silêncio neste ponto e não demonstrou de qual elemento linear estava falando, no entanto, a diferença entre a sincronia e diacronia pode ajudar a visualizar a convivência entre os dois tipos de linearidade.

A sincronia, enquanto momento, portanto, recorte preso a um ponto na linha tempo, quase como uma fotografia da língua que enseja análise das relações que ali são destacadas, não é afetada pelo tempo; já a diacronia, enquanto movimento da língua sob os efeitos do tempo, tem uma temporalidade específica que lembra a linearidade do significante. A diferença está no objeto que é posto sob os efeitos do tempo: enquanto a linearidade do significante é um efeito da fala, é a língua que é alterada e reproduzida através da diacronia.

A linearidade, dependente da fala, se situa num tempo subjetivo, enquanto a diacronia num tempo objetivo, em que a língua é movimentada através da ação da massa falante[13].

Se uma pessoa, sozinha, muda a maneira como lida com a língua, não há garantias de que essa modificação se manterá ao longo do tempo, no entanto, com a ação da massa falante, portanto, não só de um indivíduo, mas uma mudança que afeta a sociedade em geral, há alguma garantia da força que essa modificação terá no sistema da língua. A diferença do tempo da fala e da diacronia é a presença da massa falante no lugar do enunciador solitário.

Considerações finais

O trabalho de Arrivé no capítulo de Em Busca de Saussure referente à análise do Curso de Linguística Geral busca a instabilidade entre os conceitos-chave trazidos por Saussure. Seu objetivo não é a explicação passiva da linguística desenvolvida pelo autor, mas a análise da lógica interna que os conceitos trazem para a arquitetura da linguística saussuriana e a busca pela rigorosidade na leitura dos textos do autor.

Devido a isso, fica patente a necessidade de autores complementares na resolução das questões que ficam em aberto sobre a dicotomia sincronia e diacronia, os dois princípios e a positividade como condição de possibilidade da comunicação.

Referências Bibliográficas

[1] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010, p.48.

[2] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.51.

[3] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.52. Citação a Engler, 1968 – 88.

[4] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.55.

[5] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.55.

[6] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.61.

[7] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.69.

[8] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.72.

[9] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.75.

[10] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.75.

[11] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.80-81.

[12] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.81.

[13] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure… p.92-93.

Deixe sua provocação! Comente aqui!