Da periferia ao centro, ou Do poder, por Roberto Machado – DROPS #45

Da periferia ao centro - Foucault

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder IN Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 13ª edição, 1998, p. XII – XV.

Uma coisa não se pode negar às análises genealógicas do poder: elas produziram um importante deslocamento com relação à ciência política, que limita ao Estado o fundamental de sua investigação sobre o poder. Estudando a formação histórica das sociedades capitalistas, através de pesquisas precisas e minuciosas sobre o nascimento da instituição carcerária e a constituição do dispositivo de sexualidade, Foucault, a partir de uma evidência fornecida pelo próprio material de pesquisa, viu delinear-se claramente uma não sinonímia entre Estado e poder.


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Descoberta que de modo algum é inteiramente nova ou inusitada. Quando revemos suas pesquisas anteriores sob esta perspectiva, não será indiscutível que aquilo que poderíamos chamar de condições de possibilidade políticas de saberes específicos, como a medicina ou a psiquiatria, podem ser encontradas, não por uma relação direta com o Estado, considerado como um aparelho central e exclusivo de poder, mas por uma articulação com poderes locais, específicos, circunscritos a uma pequena área de ação, que Foucault analisava em termos de instituição? Mais recentemente, esse fenômeno não só tem sido explicitado com maior clareza, mas analisado de modo mais minucioso e intencional. O que aparece como evidente e a existência de formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas e que são indispensáveis inclusive a sua sustentação e atuação eficaz.

Entretanto, essa valorização de um tipo especifico de poder formulou-se através de uma distinção, de uma dicotomia entre uma situação central ou periférica e um nível macro ou micro que talvez não seja multo apropriada por utilizar uma terminologia metafórica e espacial que não parece dar conta da novidade que a análise contém. O que ela visa é a distinguir as grandes transformações do sistema estatal, as mudanças de regime político ao nível dos mecanismos gerais e dos efeitos de conjunto e a mecânica de poder que se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder este que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.

O que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua. Dois aspectos intimamente ligados, na medida em que a consideração do poder em suas extremidades, a atenção a suas formas locais, a seus últimos lineamentos tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder que realizam um controle detalhado, minucioso do corpo – gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos.

Realidades distintas, mecanismos heterogêneos, esses dois tipos específicos de poder se articulam e obedecem a um sistema de subordinação que não pode ser traçado sem que se leve em consideração a situação concreta e o tipo singular de intervenção. O importante é que as análises indicaram claramente que os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de Estado. Não são necessariamente criados pelo Estado, nem, se nasceram fora dele, foram inevitavelmente reduzidos a uma forma ou manifestação do aparelho central. Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado, distinção que não parece, até então, ter sido muito relevante ou decisiva para suas análises.

O importante é que essa relativa independência ou autonomia da periferia com relação ao centro significa que as transformações ao nível capilar, minúsculo, do poder não estão necessariamente ligadas às mudanças ocorridas no âmbito do Estado. Isso pode acontecer ou nã0, e: não pode ser postulado aprioristicamente. Sem dúvida, Foucault salientou a importância da Revolução Francesa na criação ou transformação de saberes e poderes que dizem respeito à medicina, à psiquiatria ou ao sistema penal. Mas nunca fez dessas análises concretas uma regra de método. A razão é que o aparelho de Estado é um instrumento específico de um sistema de poderes que não se encontra unicamente nele localizado, mas o ultrapassa e complementa. O que me parece, inclusive, apontar para uma consequência política contida em suas análises, que, eventualmente, não tem apenas como objetivo dissecar, esquadrinhar teoricamente as relações de poder, mas servir como um instrumento de luta, articulado com outros instrumentos contra essas mesmas relações de poder. E que nem o controle nem a destruição do aparelho de Estado, como muitas vezes se pensa – embora, talvez cada vez menos – é suficiente para fazer desaparecer ou para transformar, em suas características fundamentais, a rede de poderes que impera em uma sociedade.

Do ponto de vista metodológico, uma das principais precauções de Foucault foi justamente procurar dar conta deste nível molecular de exercício do poder sem partir do centro para a periferia, do macro para o micro. Tipo de análise que ele próprio chamou de descendente, no sentido em que deduziria o poder partindo do Estado e procurando ver até onde ele se prolonga nos escalões mais baixos da sociedade, penetra e se reproduz em seus elementos mais atomizados. É verdade que livros como Vigiar e Punir e A Vontade de Saber, como também entrevistas, artigos ou cursos deste período, não refletiram explicitamente sobre o Estado e seus aparelhos, como fizeram com relação à questão dos poderes mais diretamente, ligados aos objetos de suas pesquisas. Não se tratava, porém, de minimizar o papel do Estado nas relações de poder existentes em determinada sociedade. O que se pretendia era se insurgir contra a idéia de que o Estado seria o órgão central e único de poder, ou de que a inegável rede de poderes das sociedades modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento ou uma simples difusão de seu modo de ação, o que seria destruir a especificidades dos poderes que a análise pretendia focalizar. Daí a necessidade de utilizar uma démarche inversa partir da especificidade da questão colocada, que para a genealogia que ele tem realizado é a dos mecanismos e técnicas infinitesimais de poder que estão intimamente relacionados com a produção de determinados saberes – sobre o criminoso, a sexualidade, a doença, a loucura, etc. – e analisar como esses micro-poderes, que possuem tecnologia e história especificas, se relacionam com o nível mais geral do poder constituído pelo aparelho de Estado. A análise
ascendente que Foucault não só propõe, mas realiza, estuda o poder não como uma dominação global e centralizada que se pluraliza, se difunde e repercute nos outros setores da vida social de modo homogêneo, mas como tendo uma existência própria e formas específicas ao nível mais elementar. O Estado não é o ponto de partida necessário, o foco absoluto que estaria na origem de todo tipo de poder social e do qual também se deveria partir para explicar a constituição dos saberes nas sociedades capitalistas. Foi muitas vezes fora dele que se instituíram as relações de poder, essenciais para situar a genealogia dos saberes modernos, que, com tecnologias próprias e relativamente autônomas, foram investidas, anexadas, utilizadas, transformadas, por formas mais gerais de dominação concentradas no aparelho de Estado.

 – Roberto Machado.

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