Índice
Introdução
O entendimento de uma lógica social profunda passa pela imersão sociológica na particularidade de uma realidade empírica. Necessariamente, na perspectiva de Pierre Bourdieu, uma análise empírica de uma situação específica constrói um caso do possível, uma configuração particular num universo de configurações possíveis.
A análise social proposta por Bourdieu, que coloca em jogo conceitos como o de campo, habitus, espaço social, espaço simbólico, doxa e etc, “é a da história comparada, que se interessa pelo presente, ou a da antropologia comparativa, que se interessa por uma determinada região cultural, e cujo objetivo é apanhar o invariante, a estrutura, na variante observada”[1].
Para isso, a construção do espaço social é relevante e funciona como base à utilização do arcabouço conceitual de Bourdieu. O objetivo deste artigo é expor a noção tendo como base sua utilização em A distinção: crítica social do julgamento[2] e no texto Espaço social e espaço simbólico[3].
O modelo teórico com base empírica
Acho que, ao apresentar o modelo de espaço social e de espaço simbólico ao apresentar o modelo de espaço social e de espaço simbólico que construí a propósito do caso particular da França, falarei sempre do Japão (como, falando alhures, falarei dos Estados Unidos ou da Alemanha) […] gostaria de encorajá-los e ajudá-los a ultrapassar a leitura particularista que, além de constituir um ótimo sistema de defesa contra a análise, é o equivalente exato, da perspectiva da recepção, da curiosidade pelos particularismos exóticos que inspiraram tantos trabalhos sobre o Japão.[4]
O trabalho sociológico bourdieusiano visa apreender estruturas e mecanismos que escapam ao olhar, seja do nativo ou do estrangeiro, num dado espaço social delimitado. Escapam à percepção, presente no nível fenomenológico de apreensão do mundo social, escapam à regra explícita ou ao testemunho individual. Ao mesmo tempo, esses elementos operatórios constituem um olhar sociológico não substancialista ou supostamente realista: segundo Bourdieu, tais leituras consideram cada prática social e de consumo como algo em si mesmo, “independentemente do universo das práticas intercambiáveis e concebe a correspondência entre as posições sociais (ou as classes vistas como conjuntos substanciais) e os gostos ou as práticas como uma relação mecânica e direta”[5]. Desta forma, a análise comparativa de sociedades distintas acaba sendo prejudicada na busca por um conteúdo concreto universal na investigação de um campo específico. Por exemplo: pode-se imaginar refutar a proposta de investigação dos campos sociais através da construção dos espaços sociais ao se perceber que os intelectuais japoneses ou americanos dizem adorar a cozinha francesa, enquanto que intelectuais franceses frequentam restaurantes chineses ou japoneses. Como dar conta de um campo relativo com consumos tão distantes? Aqui, a visão relacional é necessária.
A visão substancialista, que insere a prática social como uma propriedade substancial, ou seja, como uma espécie de essência biológica ou cultural, também entrega dificuldades na análise de uma sociedade em períodos diferentes, na medida em que não pretende encontrar o jogo de forças do campo nas práticas sociais ou no consumo. Seu intento é descobrir o elemento fundamental que seria o conteúdo duro de uma prática específica para além do universo das práticas, portanto, para além das mudanças possíveis em períodos distintos de um campo social específico.
Desta forma, o espaço social
trata-se, portanto, em cada momento de cada sociedade, de um conjunto de posições sociais, vinculado por uma relação de homologia a um conjunto de atividades (a prática do golfe ou do piano) ou de bens (uma segunda casa ou o quadro de um mestre), eles próprios relacionalmente definidos.[6]
Este conjunto de posições sociais, por sua vez, é constituído por um conjunto de habitus que se referem às posições ocupadas pelos agentes. Cada posição social emerge, inclusive, com a tarefa incessante de incorporar no agente social o habitus relativo à sua prática social no campo, ou seja, com “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações”[7].
Por exemplo, em relação à análise do gosto proposta em A distinção…, o autor argumenta que:
De fato, por intermédio das condições econômicas e sociais que elas pressupõem, as diferentes maneiras, mais ou menos separadas ou distantes, de entrar em relação com as realidades e as ficções, de acreditar nas ficções ou nas realidades que elas simulam, estão estreitamente associadas às diferentes posições possíveis no espaço social e, por conseguinte, estreitamente inseridas nos sistemas de disposições (habitus) características das diferentes classes e frações de classe.[8]
Cada posição contida no espaço social se associa a práticas específicas que são a condição e o produto do próprio funcionamento do campo e das tomadas de posição dos agentes sociais presentes.
O esboço do campo
Em sua representação esquemática e ilustrativa, o espaço social foi descrito por Bourdieu em A distinção… como:
Trata-se de uma análise da sociedade francesa, como dito na citação inicial do artigo, mas que tem no modelo de funcionamento um potencial de universalidade. O esquema proposta acima mostra um primeiro nível, relativo ao capital global, em que os detentores deste acúmulo (professores universitários, empresários ou profissionais liberais) se opõem, por exemplo, aos operários não especializados. Ao mesmo tempo, da perspectiva do acúmulo específico de capital cultural e econômico, o professores universitários se opõem aos empresários (e, como consequência, tem maior probabilidade de voto na esquerda política, enquanto os empresários na direita).
É necessário, assim, compreender o espaço social de maneira específica, probabilística e relacional:
O espaço social é construído de tal modo que os agentes ou os grupos são aí distribuídos em função de sua posição nas distribuições estatísticas de acordo com os dois princípios de diferenciação que, em sociedades mais desenvolvidas, como os Estados Unidos, o Japão ou a França, são, sem dúvida, os mais eficientes – o capital econômico e o capital cultural.[9]
Já, na representação do espaço social construído, se tem a base para uma análise social, propostas de projetos políticos, econômicos ou sociais a partir de um mapeamento científico da estrutura social:
As distâncias espaciais no papel equivalem a distâncias sociais. Mais precisamente, como expressa o diagrama de La Distinction, no qual tentei representar o espaço social, os agentes são distribuídos, na primeira dimensão, de acordo com o volume global de capital (desses dois tipos diferentes) que possuam e, na segunda dimensão, de acordo com a estrutura de seu capital, isto é, de acordo com o peso relativo dos diferentes tipos de capital, econômico e cultural, no volume global de seu capital.[10]
É desta maneira que o traço distintivo aparece como elemento básico, mas não em sua feição inata, como “distinção natural” ou como elemento fundamental da existência humana (autenticidade, originalidade e unidade): distinção como diferença, ou seja, o elemento básico na análise foi a distinção enquanto diferenciação, propriedade relacional e que necessita de outras propriedades para existir no mundo social e movimentar qualquer sentido.
Considerações finais
O elemento distintivo aparece no papel, na representação do espaço social:
A ideia de diferença, de separação, está no fundamento da própria noção de espaço, conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e entre.[11]
E o habitus entra como elemento de articulação entre o nível fenomenológico e o nível estrutural, entra como a nova dimensão da relação entre os rejeitados objetivismo e subjetivismo. Esta nova dimensão também desarticula a oposição entre indivíduo e sociedade: não há indivíduos separados de suas práticas e nem práticas separadas de indivíduos que a pratiquem. Acima disso: não há prática social sem a transformação do indivíduo em agente social (transformação teórica) que retira a imprevisibilidade da noção de ator social (que teria um certo grau de reflexão e escolha subjetivas – e isoladas, autônomas, radicalmente imprevisíveis – segundo os cenários em que estiver inserido).
Ou seja, o indivíduo transformado em agente social é a consequência da noção de que indivíduos precisam ocupar posições sociais e são constituídos por elas para agir socialmente; e que essas posições não são criações formais ou ideais, são construções empírico-teóricas que mostram o elemento da diferença como central na disposição e relação entre os diferentes agentes sociais (indivíduos ou grupos).
Referências
[1] BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e espaço simbólico IN Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9ª edição, Campinas: Papirus, 2008, p.15.
[2] BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª edição, São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2017.
[3] BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e espaço simbólico IN Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9ª edição, Campinas: Papirus, 2008, p.13-33.
[4] BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e espaço simbólico… p.13-14.
[5] BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e espaço simbólico… p.16.
[6] BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e espaço simbólico… p.18.
[7] BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). A sociologia de Pierre Bourdieu, São Paulo: Editora Ática, 1994, n. 39. Coleção Grandes. Cientistas Sociais, p. 65.
[8] BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento… p.13.
[9] BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e espaço simbólico… p.19.
[10] BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e espaço simbólico… p.19.
[11] BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e espaço simbólico… p.18-19.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.