“Há, porém, uma forma especificamente moderna de religião, nascida das contradições internas da vida pós-moderna, da forma especificamente pós-moderna em que se revelam a insuficiência do homem e a futilidade dos sonhos de ter o destino humano sob controle do homem. Essa forma veio a ser conhecida sob o nome inglês de fundamentalism [fundamentalismo] ou sob o nome francês de intégrisme, exibindo sua presença cada vez mais influente em toda a parte do mundo outrora dominada pelas religiões cristã, islâmica e judaica” (Mal Estar na Pós-Modernidade, Zygmunt Bauman)
E assim começa a digressão de Zygmunt Bauman sobre a emergência do fundamentalismo. Para o autor, não se trata de algo atemporal, mas de um fenômeno típico da pós-modernidade. O fundamentalismo nasce na modernidade líquida, pois é justamente nela que o indivíduo está jogado às incertezas, inseguranças e impossibilidades de satisfação plena que o fundamentalismo tenta ultrapassar.
Esse é um fenômeno, portanto, que visa absorver o desenvolvimento técnico e tecnológico, mas evitar todas as suas consequências desagregadoras. Citando Gilles Kepel, Bauman afirma que é impossível não concordar que os movimentos fundamentalistas são “verdadeiras crianças do nosso tempo: crianças não desejadas, talvez, bastardos da computação e do desemprego, ou da explosão demográfica e crescente alfabetização, e seus gritos ou queixas nesses anos de fechamento do século incitam-nos a buscar sua ascendência e a reconstituir sua desconhecida genealogia”.
Ele ainda continua, “como os movimentos dos trabalhadores no passado recente, os movimentos religiosos de hoje têm uma capacidade singular de revelar os males da sociedade, sobre os quais eles têm seu próprio diagnóstico”. A diferença é que a solução fundamentalista não tem nada a ver com a proposta dos movimentos de trabalhadores. O público das religiões fundamentalistas é composto por excluídos da ordem, por pessoas que não se adequaram à lógica do consumo, ou seja, por consumidores falhos. Desta forma, o fundamentalismo emerge na modernidade líquida como uma maneira de ultrapassar as incertezas impostas ao consumidor fracassado.
A grande gama de fundamentalistas está, segundo Bauman, composta pelos pobres que foram “deixados para trás na escalada dos bilhetes de acesso ao partido dos consumidores”. O que o fundamentalismo faz é retirar o peso da escolha das costas de seus membros, ele propõe uma solução pautada na crença em uma racionalidade não legitimada, mas consagrada anteriormente, afinal, a racionalidade religiosa não deixa de ter seu funcionamento sistêmico tão igual quanto a racionalidade científica.
A solução do fundamentalismo para a modernidade líquida
A mensagem do fundamentalismo contra a modernidade líquida é clara: o ser humano não é autossuficiente e precisa ser guiado; no entanto, diferente da mensagem anterior à modernidade, em que a fraqueza era própria da espécie humana (e por isso precisava de um guia), a conclusão atual é de que o insuficiente é o próprio indivíduo humano. A “oferta de racionalidade alternativa” proposta pelo fundamentalismo “dá expressão pública ao que muitas pessoas pressentem o tempo todo, embora lhes seja peremptoriamente dito para não acreditarem nisso ou sejam levadas a não pensar no assunto. Por outro lado, a estrutura da vida que o fundamentalismo oferece leva meramente a sua conclusão radical o culto do aconselhamento e orientação profissional”, escreve Bauman.
Uma outra solução é a “preocupação com a autodisciplina assistida por especialista”, sendo esta promovida pela cultura do consumidor pós-moderno. Não há nada de diferente no fundamentalismo, “pode-se concluir que o fundamentalismo religioso é um filho legítimo da pós-modernidade, nascido de suas alegrias e tormentos, e herdeiro, do mesmo modo, de seus empreendimentos e inquietações”, revela o autor.
Sendo assim, afirma o sociólogo, “o fundamentalismo promete desenvolver todos os infinitos poderes do grupo que – quando plenamente disposto – compensaria a incurável insuficiência de seus membros individuais, e justificaria, desta maneira, a indiscutível subordinação das escolhas individuais a normas proclamadas em nome do grupo”. Resta, então, não só negar a solução fundamentalista para a modernidade líquida por suas características claramente totalitárias (como quando pretende legislar sobre todas as esferas da vida, de maneira universal), como aprender com ela o que devemos evitar na tentativa de responder a questões genuínas sobre a vida em sociedade, que nos forçam a inventar solução para a fragilidade e insegurança humanas.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Gostei muito do artigo, entendo por fundamentalismo mais uma interpretação da Cristandade, que não reflete necessariamente a mensagem de Cristo, através da história o ser humano se dedicou a usar a Mensagem, porém em sua essência é quem usa o homem, no seu cerne a Mensagem transforma de fato todo o ser, mudando cada aspecto da sua vida, não em função de uma instituição, partido ou estado como o fundamentalismo parece indicar, porém em função primeiramente do próprio Cristo, e em seguida como reflexo disso muda-se a si mesmo em função do outro, o qual é a extensão da criação.
Obrigado pelo comentário, André!
Parabéns André , pelo seu ponto de vista sobre o fundamentalismo. Gostei muito.