Por Alain Badiou, tradução de Vinicius Mendes*.
Na traduação abaixo, Alain Badiou afirma a necessidade de manter ativa a hipótese comunista, ou seja, a necessidade de compreender o comunismo não só dentro de uma prática política histórica ou a partir de um projeto econômico, mas também como hipótese filosófica de transformação social.
Tal hipótese permite manter um valor crítico e utópico ao comunismo, o que o transforma em base para compreender as ações individuais e coletivas no presente tendo em vista a busca por uma sociedade sem desigualdades e exploração. Sendo assim, trata-se do entendimento racional de que a transformação radical da sociedade não é só possível, mas tende a ser desejável e pode ser continuamente imaginada e reivindicada.
O período atual, em um país como a França, tem sido, de quase trinta anos para cá, um período desorientado. Quero dizer: um período que apresenta uma juventude, e particularmente uma classe trabalhadora jovem, sem princípios que orientem sua existência
Que desorientação é essa? Um das suas principais operações consiste em fazer com que o período anterior seja ilegível – o período que era, ao contrário, bem orientado. Essa manobra é característica de todos os retrocessos e períodos contra-revolucionários, como o que estamos vivendo desde o fim dos anos 1970.
Devemos, por agora, remarcar que o caracterizou a reação termidoriana, depois da conspiração do 9º Termidor e a execução sem julgamentos dos principais jacobinos, foi fazer o período anterior ilegível: sua redução à patologia de alguns criminosos sanguinários impediu qualquer compreensão política. Essa visão persistiu por décadas, procurando permanentemente desorientar o povo, que é visto – que é sempre visto – como revolucionário.
Tornar um período ilegível é muito mais do que simplesmente condená-lo. Um dos efeitos da ilegibilidade é impedir que se encontre no período em questão os mesmos princípios que podem prover uma saída para os becos sem saída. Se o período é considerado patológico, então não há nada nele que a orientação possa extrair para si, e a conclusão – cujos efeitos prejudiciais podemos ver no nosso cotidiano – é que devemos nos resignar à desorientação como um mal menor.
Vamos, portanto, postular, em relação ao período anterior, visivelmente próximo à política de emancipação, que ela deve permanecer legível para nós, e isso independentemente do seu julgamento final..
No debate sobre a racionalidade na Revolução Francesa que aconteceu na Terceira República, Clemenceau estabeleceu a famosa formulação: “A Revolução Francesa constitui um bloco unitário”. A formulação é notável em declarar a ilegibilidade integral do processo, quaisquer que tenham sido as trágicas mudanças no seu desenvolvimento.
Nos dias de hoje, está claro que o discurso predominante sobre o comunismo torna o período anterior uma patologia opaca. Portanto, ouso dizer que o período comunista, incluindo todas as nuances dentro desta idéia, tanto no poder como na oposição, também constitui um bloco unitário.
O que pode hoje, então, ser o princípio e o nome de uma verdadeira orientação? Em qualquer caso, proponho chamá-lo – por fidelidade à história da política emancipatória – de hipótese comunista.
Vamos notar que nossos críticos tentam descartar o termo “comunismo” sobre o pretexto de que uma experiência de comunismo de Estado que durou setenta anos falhou tragicamente. Que piada! Quando se trata de inverter a dominação pelos ricos e a natureza hereditária do poder, que tem durado milênios, nós somos reprovados por setenta anos de tentativas, de violência e de becos sem saída. Verdade seja dita, a ideia comunista teve somente um tempo minúsculo para sua verificação, sua implementação.
Qual é essa hipótese? Ela consiste em três axiomas.
Primeiro, a ideia igualitária. A ideia pessimista comum, que mais uma vez domina nossos tempos, é que a natureza humana está condenada à desigualdade, que é uma vergonha, mas que depois de derrubar algumas lágrimas é essencial persuadir-se dessa verdade e aceitá-la. A isso, a ideia comunista não responde exatamente por meio da proposição da igualdade como um programa – vamos trazer a igualdade fundamental que é imanente à natureza humana –, mas declarando que o princípio igualitário torna possível distinguir, em qualquer ação coletiva, o que é homogêneo à hipótese comunista, e portanto, a um valor real e aquilo que o contradiz. Portanto, nos traz de volta a uma visão animal da humanidade.
Logo vem a convicção que a existência de um Estado coercitivo não é necessária. Essa é a tese, comum a anarquistas e comunistas, do declínio do Estado. Existiram sociedades sem Estado, e é racional postular a possibilidade de outros. Mas para além deles, a ação política popular pode ser organizada sem ser sujeita à ideia de poder, de representação no Estado, de eleições, etc.
A restrição libertadora da ação organizada pode ser exercida de fora do Estado. Há muitos exemplos disso, incluindo alguns recentes: o inesperado poder do movimento de dezembro de 1995 atrasou por vários anos as medidas impopulares sobre as pensões na França. A ação militante em favor dos trabalhadores ilegais não impediu uma série de leis maléficas, mas tornou possível que eles fossem largamente reconhecidos como um elemento da nossa vida política e coletiva.
Axioma final: a organização do trabalho não envolve sua divisão, a especialização de tarefas, e particularmente a distinção opressiva entre os trabalhos intelectuais e manuais. Devemos e podemos imaginar uma natureza polimorfa essencial do trabalho humano. Essa é a matéria-prima para a desaparição de classes e de hierarquias sociais.
Esses três princípios não constituem um programa, mas orientam lemas, que qualquer pessoa pode se investir como um operador, para avaliar o que está dizendo e fazendo, pessoalmente ou coletivamente, em sua relação com a hipótese comunista.
A hipótese comunista teve dois estágios principais, e gostaria de apontar que estamos entrando no terceiro.
A hipótese comunista foi estabelecida em grande escala entre a Revolução de 1848 e a Comuna de Paris, em 1871. Seus temas dominantes são aqueles do movimento dos trabalhadores e da insurreição. A ele se seguiu um longo intervalo de quase 40 anos (entre 1871 e 1905), que corresponde ao apogeu do imperialismo europeu e a distribuição de muitas regiões do mundo. O período entre 1905 e 1976 (a revolução cultural na China) é um segundo período da hipótese comunista.
Seu tema dominante é o tema do partido e seu principal (e inquestionável) slogan: disciplina é a única arma para quem não tem nada. Em 1976 começa um segundo período de estabilização reativa que dura até nossos dias — um período em que nos encontramos, durante o qual temos testemunhado o colapso da única ditadura socialista de partido único criado no segundo período.
Minha crença é que um terceiro período histórico da hipótese comunista vai acontecer inevitavelmente – um período diferente dos dois anteriores, mas paradoxalmente mais próximo ao antigo do que ao último. Esse período compartilha com aquele do século 19 o fato de que o que estava em questão era a existência da hipótese comunista, que nos dias de hoje é constantemente negada. Podemos definir o que eu, ao lado de outros, estou tentando fazer, como um trabalho preliminar para a reinstalação dessa hipótese e o desdobramento do seu terceiro período.
Nós temos a necessidade, nesse novo começo do terceiro período na existência da hipótese comunista, de uma moralidade provisória para um período desorientado. O objetivo é manter minimamente uma consistente figura subjetiva, sem, portanto, ter o apoio da hipótese comunista que ainda não foi reinstalada em grande escala. O que é importante é encontrar um real objetivo em que se apoiar – qualquer que seja seu preço –, um objetivo “impossível” que não pode ser inscrito nas leis da situação. Devemos ter um objetivo real desse tipo e organizar suas consequências.
A prova cabal ao fato de que nossas sociedades são obviamente inumanas é, hoje em dia, o alienígena proletário ilegal: ele é a marca, imanente à nossa situação, do fato de que há um único mundo. Tratá-lo como se ele tivesse vindo de outro mundo é tarefa específica do “Ministério da Identidade Nacional”, que tem sua própria força policial (a “Polícia Fronteiriça”). Alegar, contra um dispositivo de Estado, que qualquer trabalhador ilegal vem do mesmo mundo que eu, e projetar as consequências práticas, igualitárias e militantes disso, é um exemplo de uma moralidade provisória, uma orientação local que é homogênea à hipótese comunista, dentro da desorientação global que somente sua reinstalação pode afastar.
A principal virtude que precisamos para isso é a coragem. Não é o caso universal: em outras circunstâncias, outras virtudes podem ser requisitadas como prioridade. Portanto, na época da guerra revolucionária na China, Mao promoveu a paciência como uma virtude essencial. Mas hoje em dia é a coragem. A coragem é a virtude que se manifesta, independentemente das leis do mundo, por meio da resistência do impossível. A coisa a se fazer é manter o objetivo impossível sem explicar a situação com um todo: a coragem, na medida em que é uma questão de tratar o objetivo como tal, é uma virtude local. Ela surge de uma moralidade local, e seu horizonte é a lenta reinstalação da hipótese comunista.
* Texto publicado originalmente por Alain Badiou no jornal francês Le Monde em 13 de fevereiro de 2010. Tradução de Vinícius Mendes do inglês publicado no JL em 2011
Originalmente publicado em 2019, atualizado em 2024.
É jornalista e cientista social. Atualmente é mestrando do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Escreve também no blog Arimandia.