O que é comunismo? – Engels e Bukharine

Por Vinicius Siqueira.

Mas uma liberdade sem possessão é a única liberdade concreta real […] Essa liberdade exige uma transformação radical dos modos de reprodução material da vida. Ela exige que a atividade humana seja liberada da forma do trabalho produtor de valor, trabalho que faz da atividade uma ação unidimensional, disciplinar e alienante.

Ela exige que as relações humanas não sejam mais pensadas como as relações entre proprietários que passam entre si contratos. Ao movimento dessa transformação, Marx dá um nome: comunismo.

Vladimir Safatle[1]

Índice

  1. Introdução
  2. O que é comunismo?
  3. Como funciona o regime comunista?
  4. O que é a revolução comunista?
  5. O que é o modo de produção comunista?
  6. Como a ordem social comunista influenciará a família?
  7. Suplementos
    1. Fascismo
    2. Marxismo
  8. Referências
  9. Anexo: comunismo e liberdade

Introdução

Em 2016, João Cesar Melo afirmou no Instituto Liberal que Michel Temer era comunista, Bolsonaro, em 2018, afirmou que Geraldo Alkmin era “conivente com o comunismo” e, por fim, hoje o novo comunista é o procurador Deltan Dallagnol.

Atualmente, termo “comunismo” é objeto da polissemia contemporânea na esfera política. Este artigo utiliza dois textos de base para responder sua pergunta-título (o que é comunismo): consideraremos os textos Princípios Básicos do Comunismo[2], de Friedrich Engels e ABC do Comunismo[3], de Nikolai Bukharine e E. Preobrazhensky. Ambos, autores de pensamento marxista. Organizamos as dúvidas em relação ao comunismo em formato de entrevista, de forma que, nas respostas, para citações de Friedrich Engels, usaremos a sigla F.E. e para as de Nikolai Bukharine, N.B. será seu identificador.

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O que é comunismo?

F.E.: O comunismo é a doutrina das condições de libertação do proletariado.

“Domenico Losurdo explica: Nazismo, Fascismo e Comunismo”. Veja aqui:

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Como funciona o regime comunista?

N.B.: Para realizar o regime comunista, é preciso que o proletariado tenha nas mãos todo o poder, toda a força. Ele não poderá derrubar o velho mundo enquanto não possuir essa força, enquanto não constituir, por algum tempo, a classe dominante. Não é preciso dizer que a burguesia não cederá o poder sem luta. O comunismo significa para ela a perda de seu antigo predomínio, a perda de sua “liberdade” de subtrair ao operário o suor e o sangue, a perda de seu direito ao lucro, ao juro, à renda, etc. A Revolução comunista do proletariado, a transformação comunista da sociedade, chocam-se, por conseqüência, de encontro à resistência mais furiosa dos exploradores. A tarefa do poder operário é, pois, reprimir implacàvelmente essa resistência. E como tal resistência será inevitàvelmente muito forte, será preciso que o poder do proletariado seja uma ditadura operária. “Ditadura” significa um governo particularmente severo e muita decisão no reprimir os inimigos. Naturalmente, em semelhante estado de coisas, não se poderia cogitar da liberdade para todos os homens. A ditadura do proletariado é irreconciliável com a liberdade da burguesia. Ela é necessária, precisamente para privar a burguesia de sua liberdade, para amarrar-lhe os pés e as mãos e retirar-lhe toda a possibilidade de combater o proletariado revolucionário.

Sob a ditadura do proletariado — instituição temporária — os meios de produção não pertencem a toda a sociedade sem exceção, mas unicamente ao proletariado, à sua organização de Estado. A classe operária, isto é, a maioria da população, é que monopoliza temporariamente todos os meios de produção. Eis porque as relações de produção não são completamente comunistas. Existe ainda uma divisão da sociedade em classes; há ainda uma classe dominante: o proletariado; uma monopolização, por essa nova classe, de todos os meios de produção; um poder de Estado (o poder do proletariado) que submete seus inimigos. Mas, à medida que se quebra a resistência dos antigos capitalistas, proprietários, burgueses, generais e bispos, o regime da ditadura proletária converte-se, sem revolução alguma, no comunismo.

Na sociedade comunista não haverá classes. E, não havendo classes, não haverá mais Estado. O Estado não tem nenhuma utilidade, pois não há aí luta de classes, aí não existe ninguém que precise de freio, nem tão pouco alguém para segurar o freio.

— Mas como — perguntarão — poderá funcionar, sem direção nenhuma, uma organização tão formidável? Quem elaborará o plano da produção social? Quem repartirá as forças operárias? Quem calculará as receitas e as despesas comuns? Em resumo, quem velará pela manutenção da ordem?

A resposta não é difícil. A direção central caberá a diversas repartições de contabilidade e de estatística. Aí é que, dia a dia, serão calculadas as contas de toda a produção e de todas as suas necessidades; aí é que se indicará onde se deverá aumentar ou diminuir o número de operários e quanto é preciso trabalhar.

F.E.: Tirará a exploração da indústria e de todos os ramos da produção em geral das mãos de cada um dos indivíduos singulares em concorrência uns com os outros e, em vez disso, terá de fazer explorar todos esses ramos da produção por toda a sociedade, isto é, por conta da comunidade, segundo um plano da comunidade e com a participação de todos os membros da sociedade. Abolirá, portanto, a concorrência e estabelecerá, em lugar dela, a associação. Uma vez que a exploração da indústria por singulares tinha como consequência necessária a propriedade privada, e que a concorrência não é mais do que o modo da exploração da indústria pelos proprietários privados individuais, a propriedade privada não pode ser separada da exploração individual da indústria nem da concorrência. A propriedade privada terá, portanto, igualmente de ser abolida e, em seu lugar, estabelecer-se-á a utilização comum de todos os instrumentos de produção e a repartição de todos os produtos segundo acordo comum, ou a chamada comunidade dos bens. A abolição da propriedade privada é mesmo a expressão mais breve e mais característica desta transformação de toda a ordem social necessariamente resultante do desenvolvimento da indústria, e por isso é com razão avançada pelos comunistas como reivindicação principal.

Pelo facto de a sociedade retirar das mãos dos capitalistas privados o usufruto de todas as forças produtivas e meios de comunicação, assim como a troca e a repartição dos produtos, e os administrar segundo um plano resultante dos meios disponíveis e das necessidades de toda a sociedade, serão eliminadas, antes do mais, todas as consequências nefastas que agora ainda se encontram ligadas à exploração da grande indústria. As crises desaparecerão; a produção alargada que, para a ordem actual da sociedade.

A grande indústria, liberta da pressão da propriedade privada, desenvolver-se-á numa tal extensão que, comparado com ela, o seu actual desenvolvimento parecerá tão pequeno como o da manufactura comparada com a grande indústria dos nossos dias.

Do mesmo modo, a agricultura, que também em virtude da pressão da propriedade privada e do parcelamento tem sido impedida de apropriar os aperfeiçoamentos e os desenvolvimentos científicos já realizados, conhecerá um ascenso totalmente novo e colocará à disposição da sociedade uma quantidade plenamente suficiente de produtos.

A separação da sociedade em diversas classes opostas umas às outras tornar-se-á, assim, supérflua. Ela não se tornará, porém, apenas supérflua; será mesmo incompatível com a nova ordem social. A existência de classes proveio da divisão do trabalho, e a divisão do trabalho, no seu modo actual, desaparecerá totalmente.

A educação permitirá aos jovens passar rapidamente por todo o sistema de produção; colocá-los-á em condições de passar sucessivamente de um ramo de produção para outro, conforme o proporcionem as necessidades da sociedade ou as suas próprias inclinações. Retirar-lhes-á, portanto, o carácter unilateral que a actual divisão do trabalho impõe a cada um deles. Deste modo, a sociedade organizada numa base comunista dará aos seus membros oportunidade de porem em acção, integralmente, as suas aptidões integralmente desenvolvidas. Com isso, porém, desaparecerão também necessariamente as diversas classes. De tal maneira que, por um lado, a sociedade organizada numa base comunista é incompatível com a existência de classes e, por outro lado, a edificação dessa sociedade fornece ela própria os meios para suprimir essas diferenças de classes.

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O que é comunismo: e a revolução comunista?

F.E.: Os comunistas sabem muitíssimo bem que todas as conspirações são não apenas inúteis, como mesmo prejudiciais. Eles sabem muitíssimo bem que as revoluções não são feitas propositada nem arbitrariamente, mas que, em qualquer tempo e em qualquer lugar, elas foram a consequência necessária de circunstâncias inteiramente independentes da vontade e da direcção deste ou daquele partido e de classes inteiras.

A revolução do proletariado, que com toda a naturalidade se vai aproximando, só a pouco e pouco poderá, portanto, transformar a sociedade actual, e somente poderá abolir a propriedade privada quando estiver criada a massa de meios de produção necessária para isso.

A revolução comunista não será, portanto, uma revolução simplesmente nacional; será uma revolução que se realizará simultaneamente em todos os países civilizados, isto é, pelo menos em Inglaterra, na América, em França e na Alemanha. Ela desenvolver-se-á em cada um destes países mais rápida ou mais lentamente, consoante um ou outro país possuir uma indústria mais avançada, uma maior riqueza, uma massa mais significativa de forças produtivas. Na Alemanha ela será efectuada, portanto, mais lenta e dificilmente, em Inglaterra mais rápida e facilmente. Ela terá igualmente uma repercussão significativa nos restantes países do mundo, transformará totalmente e acelerará muito o seu actual modo de desenvolvimento. Ela é uma revolução universal e terá, portanto, também um âmbito universal.

N.B.: O proletariado realiza sua ditadura pela conquista do poder político. Mas, que é a conquista do poder? Muita gente acredita que arrancar o poder da burguesia é tão simples como passar uma bola de um bolso para outro.

Esse modo de ver é completamente falso e, refletindo um pouco, veremos onde reside o erro.

O Estado é uma organização. O Estado burguês é uma organização burguesa, em que determinados papéis são distribuídos aos homens: generais, escolhidos entre os ricos, estão à frente do exército; ministros, ricos igualmente, à frente da administração; etc. Quando o proletariado luta pelo poder, contra quem luta ele? Antes de tudo contra essa organização burguesa. Mas, se luta contra ela, sua tarefa é golpeá-la, destruí-la. E, como a força principal do Estado consiste em seu exército, é preciso, antes de tudo, para vencer a burguesia, minar e destruir o exército burguês.

“Para entender o que é o Estado”, por Alysson Mascaro. Veja aqui:

Sendo assim, a Revolução destrói o poder antigo e cria um poder novo. É claro que, neste novo poder entram certos elementos essenciais do antigo, mas eles aí encontram outra utilização. A conquista do poder de Estado não é, pois, a conquista da antiga organização, mas a criação de uma organização nova: a organização da classe que venceu na luta.

Essa questão tem um valor prático enorme. Censuram, por exemplo, os bolcheviques alemães (como outrora os bolcheviques russos) por desagregarem o exército e favorecerem a indisciplina, a desobediência aos generais, etc. Esta acusação parecia e ainda parece grave a muitas pessoas. E, no entanto, nada tem de estranha. Um exército que marcha contra os operários por ordem de generais e de burgueses, muito embora seja de nossos compatriotas, deve ser destruído, senão a Revolução está morta. Nada temos a temer dessa destruição do exército burguês e é um mérito para um revolucionário destruir o aparelho de Estado da burguesia. Onde a disciplina burguesa não foi rompida, a burguesia é invencível. Não se pode desejar submetê-la e, ao mesmo tempo, temer maltratá-la.

Sob a ditadura do proletariado — instituição temporária — os meios de produção não pertencem a toda a sociedade sem exceção, mas ünicamente ao proletariado, à sua organização de Estado. A classe operária, isto é, a maioria da população, é que monopoliza temporàriamente todos os meios de produção. Eis porque as relações de produção não são completamente comunistas. Existe ainda uma divisão da sociedade em classes; há ainda uma classe dominante: o proletariado; uma monopolização, por essa nova classe, de todos os meios de produção; um poder de Estado (o poder do proletariado) que submete seus inimigos. Mas, à medida que se quebra a resistência dos antigos capitalistas, proprietários, burgueses, generais e bispos, o regime da ditadura proletária converte-se, sem revolução alguma, no comunismo.

“Ditadura do proletariado”, por Antonio Carlos Mazzeo. Veja aqui:

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O que é comunismo: o modo de produção comunista

N.B.: O modo comunista de produção significa um desenvolvimento enorme das forças produtivas, de forma que cada trabalhador terá menos afazeres. A jornada de trabalho tornar-se-á cada vez mais curta e os homens ficarão livres das cadeias impostas pela natureza. Quando o homem despender pouco esforço para alimentar-se e vestir-se, consagrará parte do tempo ao seu desenvolvimento intelectual. A cultura humana elevar-se-á a uma altura jamais atingida. Tornar-se-á uma cultura geral, verdadeiramente humana, e não uma cultura de classe.

O modo comunista de produção não supõe mais a produção para o mercado e sim para as necessidades. Cada operário não trabalha para si, é toda a comunidade gigante que trabalha para todos. Não existem mercadorias, mas, somente, produtos. Estes produtos não são trocados uns pelos outros, nem comprados nem vendidos. São, muito simplesmente, depositados nos armazéns comunais e entregues aos que precisam deles.

Mas, os homens não terão interesse em tirar mais do que necessitarem? Absolutamente não. Hoje mesmo, ninguém teria a idéia de fazer, num bonde, três lugares, para ocupar somente um e deixar vazios os dois outros; esta necessidade não existe. Sucederá o mesmo com todos os produtos.

No princípio a repartição dos produtos será feita de acordo com o trabalho executado […] e mais tarde, quando houver de tudo em abundância, de acordo com as necessidades.

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O que é comunismo: como a ordem social comunista influenciará a família?

F.E.: Ela fará da relação de ambos os sexos uma pura relação privada, que diz respeito apenas às pessoas que nela participam e em que a sociedade não tem de imiscuir-se.

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Suplementos para compreender o que é comunismo

Abaixo, uma série de suplementos para entender o que é comunismo a partir de seus assuntos correlatos:

O que é fascismo?

O fascismo foi uma criação política do século XX. Um movimento que atendeu os interesses do grande capital e teve como base de massas a pequena burguesia.

É um movimento de direita que nasce num contexto econômico e político delicado em Itália e Alemanha, imperialistas de menor porte na Europa.

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O que é o marxismo?

Marxismo não é unicamente uma política e nem mesmo um movimento social. Marxismo é a filosofia advinda dos estudos de Karl Marx na economia, filosofia política e dialética. É a base para se compreender o que é comunismo.

Para Marx e Engels, a história de todas as sociedades após o surgimento da propriedade privada é a história da luta de classes. A partir disso, o momento atual da sociedade capitalista está centrado no antagonismo entre proletários e capitalistas, que utilizam sua força de trabalho para gerar mais-valia.

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Referências

[1] SAFATLE, Vladimir. Marx, esse desconhecido. Coluna para Folha de S.Paulo, 04 de mai de 2018. Disponível em <<http://bit.ly/2ZlKF4x>>. Acesso em 27 de ago de 2019.

[2] ENGELS, Friedrich. Princípios Básicos do Comunismo IN Obras Escolhidas em três tomos. Lisboa: Editorial Avante!, 1914. Disponível em <<http://bit.ly/2ZizDwE>>. Acesso em 27 de ago de 2019.

[3] BUKHARIN, Nikolai e PREOBRAZHENSKY, Evgeny. ABC do Comunismo. Versão digital por marxists.org. Disponível em <<http://bit.ly/2Zmbllm>>. Acesso em 27 de ago de 2019.

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Anexo

SAFATLE, Vladimir. Marx, esse desconhecido. Folha de S. Paulo, 4 de maio de 2018. Disponível aqui. Acesso em 08 de novembro de 2023.

Que Marx seja um pensador da liberdade e da emancipação, eis algo que vale sempre a pena lembrar. Sua pergunta fundamental não é apenas pelas condições sociais para a realização da liberdade, já que não posso ser livre em uma sociedade não livre, mesmo que acredite que me exilar em minha interioridade seja possível.

A questão de Marx gira em torno de uma crítica implacável a outros modelos de liberdade, em especial esse no interior do qual liberdade e propriedade estão associados. Pois temos a ilusão de podermos ser livres quando somos proprietários de nós mesmos, quando possuímos a nós mesmos.

A base material, jurídica e política das sociedades capitalistas se encontra na generalização da estrutura da propriedade, até mesmo para as relações a si. Mas uma liberdade sem possessão é a única liberdade concreta real, lembrará Marx.

Essa liberdade exige uma transformação radical dos modos de reprodução material da vida. Ela exige que a atividade humana seja liberada da forma do trabalho produtor de valor, trabalho que faz da atividade uma ação unidimensional, disciplinar e alienante.

Ela exige que as relações à natureza deixem de ser uma possessão para ser um “metabolismo”. Ela exige que as relações humanas não sejam mais pensadas como a relações entre proprietários que passam entre si contratos. Ao movimento dessa transformação, Marx dá um nome: comunismo.

Essa experiência comunista, experiência da emergência de um comum que não será posse de ninguém exige a reflexão sobre como sujeitos que não tem mais nada que os vincule à vida mutilada das sociedades capitalistas afirmam seu desejo de transformação e agem de forma revolucionária.

Uma revolução não apenas da estrutura do poder e de sua base econômica, mas da forma do exercício do poder e de desativação da exploração econômica.

Um dos teóricos fundamentais do pensamento econômico pensa, na verdade, em como permitir a emergência de uma sociedade pós-econômica, para além das injunções disciplinares que fizeram da economia a verdadeira forma de produção de subjetividades. O que um retorno a Marx nos permitiria seria repensar a importância de uma experiência comunista para nossa época.

 – Vladimir Safatle.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. O que é comunismo? – Engels e Bukharine. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-que-e-comunismo/>>.