A história do surrealismo revolucionário não pode ser resumida em poucas páginas, mas um esforço rápido e dedicado de Michael Lowy pode nos introduzir a este mundo de rixas e desenlaces teóricos: A Estrela da Manhã – Surrealismo e Marxismo é seu livro sobre a história do surrealismo junto ao movimento comunista.
A história do surrealismo revolucionário – A construção de um novo mito
Primeiramente, é necessário entender que o movimento surrealista não era somente um movimento artístico. Nele havia uma intenção de liberdade que não se via em movimento artístico nenhum. Não se tratava de um novo cubismo ou futurismo, mas de uma nova visão do todo que se formava, quase como um romantismo. Na verdade, o surrealismo, ao buscar em Freud sua inspiração da liberdade do eu, via num mundo caótico a sua obrigação de existir e de agir.
Breton, em seu Primeiro Manifesto Surrealista, ao guiar os passos para realizar uma verdadeira arte surrealista, traz consigo as influências claras da psicanálise freudiana e dos estudos dos sonhos que Freud realizou magnificamente. Já no Segundo Manifesto, o que importa é realizar um ajuste de contas com alguns pensadores do movimento que se colocaram distantes dos objetivos surrealistas e deixar claro a filiação do movimento ao materialismo histórico. Breton não deixava de elogiar a genialidade deste método que, para ele, deveria ser a teoria do conhecimento universalizada.
Fora disso, o objetivo do surrealismo para ter seu impacto permanente era formar um novo mito. Se, segundo Weber, a nova sociedade que se forma com a emergência do capitalismo racionalizado é uma sociedade desmistificada e desencantada, a resposta surrealista era se apegar ao encanto. Construir uma nova mitologia era manter-se no encanto e, ao mesmo tempo, revolucionar a sociedade existente.
Não se trata de voltar ao passado: manter-se no encanto no sentindo de não rejeitá-lo em favor de um capitalismo de relações racionais-burocráticas. O mito, como explicação àquilo que não pode ser racionalizado, também funciona como uma substituição profana à religião – o cristianismo sempre foi alvo de diversas críticas do surrealistas.
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É necessário, então, traçar uma nova mitologia que, ao invés de se remeter ao passado, tivesse a força infinita de se pautar no futuro. A revolta surrealista não tinha limite objetivo, era a simples sensação de desajuste, de ver algo errado e modificar violentamente a sua existência.
Que mito é esse criado pelos surrealistas (apesar de não ter sido imposto eficientemente)? É o próprio surrealismo, é a união da liberdade, da poesia, da revolta e do amor.
O marxismo do partido
Pierre Naville era um artista nascido pouco antes do auge do surrealismo. Se tornou dirigente comunista muito cedo e era um grande debatedor nas reuniões do movimento surrealista, na França. Só havia um problema com Naville: ele estava no centro de uma crise no movimento. Enquanto alguns partidários acreditavam num sopro anarquista de revolução individual e espiritual (no sentido não-religioso), Naville só acreditava na ação política direta.
A posição da maioria dos surrealistas (inclusive de Breton) era na reconciliação da poesia e da política: não havia o por quê de separá-las e de ter que escolher entre uma delas. Entretanto, quadros fortes acabaram saindo do movimento justamente após os desentendimentos filosóficos provocados pela recusa de alinhamento do movimento com o Partido Comunista Francês, de linha estalinista.
Breton se aproximava cada vez mais da oposição de esquerda, comandada por Trosky, e chegou a fazer visitas em sua casa, no México.
Nâo se tratava de ver em Trotsky o comandante mor ou em sua pequena teoria, a teoria mais plausível, mas sim em ter em Trotsky a possibilidade de ainda preservar a liberdade na arte. Os surrealistas não estavam dispostos a sujeitar a arte a nada e o próprio Trotsky havia escrito que a a arte proletária era uma missão impossível. Naville não pensava dessa forma e, de pouco em pouco, se aproximou da linha estalinista do Partido, apesar de, no fim de sua vida, voltar ao surrealismo artístico, voltar a escrever sobre surrealismo e se alinhar com o Trotskysmo.
O movimento surrealista tinha, então, ainda um pé com o anarquismo, com seu espírito de não se sujeitar a nada. Mas o pé estava mais fincado em outra iniciativa: o pessimismo revolucionário.
Pessimismo revolucionário
Se trata aqui de entender que pessimismo revolucionário não é nada fatalista. O que é? Pessimismo revolucionário é entender que a história não está feita e que não há glória logo alí na esquina. A glória não existe, o que existe é luta. A vitória não é nossa, a vitória precisa ser arrancada. O pessimismo revolucionário, ou o chamado marxismo gótico, é aquele que entende que a realidade precisa ser sempre modificada e que não há momentos para adequação às estruturas vigentes.
Diferente da linha seguida pelo Partido Comunista Francês, os surrealistas não acreditavam em um destino glorioso que só precisava ser aguardado pela História. Havia uma realidade dura, concreta, que precisava de mudanças e que precisava de ação.
Walter Benjamin já havia percebido esta característica surrealista da ação. A violência, no surrealismo, é uma arma criativa, é a movimentação incessante, é o motor do pessimismo revolucionário. A ação, a violência, é uma energia de criatividade e liberdade, é aquilo que impede uma noção quase positivista da história – ou até mesmo determinista.
Em particular, Benjamin guardava críticas aos surrealistas e suas viagens lisérgicas (apesar de não ser nem mesmo um hábito dos surrealistas utilizar drogas para chegar ao estado de suas artes – preferiam ler sobre o efeito das drogas do que usá-las), mas via neles uma força capaz de manter viva a alma revoltosa e disciplinada unicamente com a destruição da realidade caótica que o marxismo deveria ter.
Talvez a grande contribuição do livro de Lowy seja mostrar este lado da combinação do marxismo com o surrealismo. Uma combinação que une a impossibilidade de se sujeitar à burocracia, à administração central, e ao mesmo tempo, a que permite o uso da energia vital para uma luta incessante.
Anos mais tarde, Guy Debord, que não se classificava como surrealista e nem era considerado como tal pelos surrealistas da época, demonstrou um pouco dessa revolta em Maio de 68, com seu incendiário A Sociedade do Espetáculo. Ele se classificava como herdeiro das tradições surrealistas e dadaístas, também dizia que tinha como objetivo superá-las. Nele, podemos ver o pessimismo revolucionário concentrado em uma luta nos meios de comunicação, utilizando a arte e a política para fazer da realidade concreta algo completamente diferente.
Assim o surrealismo ainda vive, com pequenos coletivos que não recebem a menor atenção da mídia. Não que isso seja importante para os surrealistas, o que eles querem é atividade. Qual atividade? A revolucionária.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
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